Muitas iranianas estão a desafiar o regime dos “ayatollahs”, tirando fotografias sem o véu na cabeça. A jornalista que criou a página no Facebook onde essas fotos proibidas são publicadas conta ao “Expresso” como nasceu a ideia
Sempre que publicava, no Facebook, fotos do seu quotidiano em Londres, onde vive exilada, a jornalista iraniana Masih Alinejad recebia mensagens de compatriotas dizendo-se frustradas por, no Irão, não poderem fazer o mesmo. “Eu postava fotos minhas, em liberdade e sem o ‘hijab’ (véu) e recebia emails de iranianas a dizer que eu tinha muita sorte por usufruir dessas liberdades”, conta ao “Expresso”.
“Comecei então a pensar se outras iranianas sentiriam o mesmo e quereriam ter uma oportunidade para tirar ‘selfies’ sem estarem cobertas da cabeça aos pés. Apelei a que me mandassem fotografias e comecei a publicá-las na minha página no Facebook. Mas começaram a ser tantas que achei que devia criar uma página só para isso.”

Assim nasceu, a 3 de maio passado, a página “Stealthy Freedoms of Iranian Women” (“Liberdades Furtivas das Mulheres Iranianas”), que já tem quase 200 mil seguidores. Masih deu o exemplo e partilhou um dos seus momentos secretos, longe de olhares reprovadores, num campo de papoilas cor de laranja, na berma de uma estrada perto de Ghomikola, onde nasceu, no norte do Irão.
De imediato, começaram a chover fotos de iranianas de cabelos ao vento — ao volante, junto ao mar ou a um monumento, no meio de estradas ou da natureza, sozinhas ou em grupo, jovens e mais velhas. Algumas surgem de costas ou ocultam a cara; a esmagadora maioria enfrenta a câmara fotográfica com um sorriso. As identidades não são reveladas e as mulheres aproveitam para juntar mensagens e desabafos às fotos que publicam.
Masih, de 37 anos, tem “fotos proibidas” de sobra nos seus álbuns pessoais. “A ideia das ‘Liberdades Furtivas’ surgiu depois de eu olhar para fotos minhas no Irão sem o ‘hijab’, tiradas secretamente num campo qualquer ou num local sossegado”, diz. “Era um prazer culpabilizante, uma forma de eu exigir a minha própria liberdade, longe dos olhares fixos da polícia cultural ou até mesmo da reprovação da sociedade. Era uma forma de eu exercer a minha própria independência.”

Brigadas da moralidade
No Irão, o uso do véu é obrigatório para as mulheres, nativas ou visitantes, muçulmanas ou não. Quando se viaja de avião para a antiga Pérsia, por exemplo, momentos antes do aparelho aterrar, um aviso informa que as mulheres devem cobrir a cabeça antes de pisarem solo iraniano. Não há exceções, nem mesmo para chefes de Estado.
Nas ruas, brigadas da chamada polícia moral passam revista à indumentária dos transeuntes, advertindo as mulheres que circulam com o véu descaído, com roupas justas ou maquilhagem carregada. Como não pode haver contacto físico entre homens e mulheres que não sejam da mesma família, muitas vezes as iranianas são interpeladas por agentes do sexo feminino, vestidas com o chador preto, que identifica maior devoção religiosa na República Islâmica.
“Eu respeito o direito das mulheres que querem usar o véu”, continua Masih, que trabalha como repórter num programa satírico do serviço persa da Voz da América e é correspondente da Rádio Farda. “A minha mãe é uma delas e muitas mulheres da minha família sentem-se mais confortáveis a usar o véu ou um lenço. Mas eu quero ter a possibilidade de escolher o que vestir e não ser forçada a usar o véu por causa de pressões culturais ou religiosas. Não sou uma ativista. Iniciei esta página por curiosidade e estou surpreendida pela quantidade de fotos e emails enviados pelas iranianas. Quaisquer ações no futuro, a haver, vão depender das iranianas. Tenho esperança que ações deste género obtenham uma resposta por parte do Governo, mas não espero muito.”

O assunto do momento
De acordo com os códigos morais e legais do regime dos “ayatollahs”, que governa o Irão desde a Revolução Islâmica de 1979, só é aceitável que as mulheres exibam o cabelo — que entendem ser fonte de sedução — dentro de casa. A 19 de abril, o país assinalou o Dia da Mulher, coincidindo essa efeméride com o aniversário de nascimento de Fatima Zahra, filha do profeta Maomé. Este ano, o papel da mulher na sociedade iraniana originou uma polémica entre as duas principais figuras do regime, o Líder Supremo e o Presidente.
Num discurso em Teerão, diante de centenas de mulheres vestidas com o chador negro, o “ayatollah” Ali Khamenei considerou que “um dos maiores erros do Ocidente em relação às mulheres é a igualdade de género”, disse. “Por que razão um emprego masculino deverá ser dado a uma mulher? Que orgulho pode ter uma mulher num emprego masculino?”

Para o líder religioso, de 74 anos, a mulher está destinada a cuidar do lar e zelar pelo bem estar da família. “Mulheres dentro de casa trazem paz ao homem e às crianças. Uma mulher que é humilhada, injuriada, pressionada pelo trabalho, não pode ser uma boa dona de casa nem administrar o lar.”
No dia seguinte, também Hasan Rohani, o Presidente reformista de 65 anos eleito há menos de um ano, homenageou as mulheres em termos contrários aos do guia espiritual. “As mulheres devem ter oportunidades, benefícios e direitos sociais iguais. Será possível marginalizar metade da sociedade?” Disse ainda que as iranianas estão a ganhar protagonismo em todas as áreas da sociedade, mas admitiu que “ainda falta muito para atingir a meta” da igualdade de género.
“Nos países economicamente avançados”, continua a criadora da campanha #mystealthyfreedom, “as mulheres podem chegar aos mais altos cargos, ser executivas em empresas, juízas do Supremo Tribunal ou líderes políticas e chefes de Governo”. “No Irão não podem sequer escolher a forma de se vestir, muito menos alcançar posições de topo na sociedade.” Para Masih Alinejad, o maior obstáculo a essas conquistas “é o Governo”. “Antes da Revolução Islâmica, havia iranianas laicas que se vestiam como as mulheres ocidentais e outras com origens tradicionais ou religiosas. Ambas eram toleradas. Agora, a via islâmica não tolera qualquer diferença de opinião.”
O QUE DIZ A LEI IRANIANA
Segundo o código penal islâmico iraniano de 1991, “as mulheres que surjam em público sem um véu adequado deverão ser presas entre dez dias a dois meses”. As penas podem ser substituídas pelo pagamento de uma multa. Na prática, a ausência de uma definição clara sobre o que é um “véu adequado” sujeita as mulheres a interpretações arbitrárias por parte de quem aplica a lei. As regras de indumentária não visam, porém, apenas as iranianas. Um homem de calções pode ter a polícia de costumes à perna.
FOTOGALERIA DA LIBERDADE
FOTOS FACEBOOK MY STEALTHY FREEDOM
(Foto de abertura: A autora da campanha, fotografada sem véu num campo junto à sua cidade natal, no norte do Irão FACEBOOK MY STEALTHY FREEDOM)
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 15 de maio de 2014. Pode ser consultado aqui















