Brasileiro descreve como Alepo, nas mãos dos rebeldes, passou ao lado das eleições
Bashar al-Assad foi reeleito, na terça-feira, com 88,7% dos votos. Ficou aquém dos 97,6% que obteve no último referendo presidencial, em 2007, mas a ‘derrapagem’ é apenas aparente… Ao abrigo da Constituição de 2012 — que instituiu o multipartidarismo na Síria (nestas eleições, houve três candidatos) —, Bashar poderá recandidatar-se à presidência ainda mais uma vez. Se sobreviver politicamente à guerra civil que destrói o país há mais de três anos, poderá eternizar-se no poder até 2028, ficando só a um ano de igualar o pai, Hafez, que ‘reinou’ 29 anos.
A autoridade do Presidente não se estende à totalidade do território, pelo que as urnas de voto só chegaram às áreas controladas pelo regime. Não se votou, por exemplo, nas regiões curdas do norte onde, em janeiro, foi estabelecida uma administração autónoma, nem em Alepo. “Não foi possível votar aqui”, confirmou ao Expresso o fotógrafo brasileiro Gabriel Chaim, desde a segunda cidade síria, controlada pelos rebeldes do Exército Livre da Síria (ELS), apoiado pelo Ocidente.
“Os rebeldes fecharam as duas passagens que dão para a zona controlada pelo regime, impedindo as pessoas de ir votar. Assad queria reabrir essas passagens e intensificou os bombardeamentos. Os rebeldes fizeram três tiros de morteiro sobre as zonas de votação. Assad avisou que por cada granada retaliaria com três bombas de barril deitadas de avião. Lançou 22.”
As bombas de barril são uma especificidade síria. São latões cheios com pedaços de ferro, petróleo e TNT. Lançadas de avião, “matam de todas as formas, através da explosão, do cheiro forte e dos estilhaços que dilaceram”, diz Gabriel. São projéteis “made in Síria para matar sírios”.
Oito homens e um foguete
Numa recente visita a uma zona castigada pela aviação de Assad, o brasileiro viu-se diante de uma prova da demência do regime. “Em Kfar Hamara, que parecia uma cidade-fantasma, levaram-me a ver um míssil que não tinha explodido. Abriram-no e dentro havia cloro. Sentiu-se logo o cheiro. Nesse local, guardavam todas as bombas lançadas por Assad e que não tinham rebentado. Vi mais de 30 bombas diferentes…”
Em maio, a Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) enviou uma equipa para investigar o uso pela ditadura de ogivas com cloro. Este gás, usado como arma asfixiante na I Guerra Mundial não consta da lista de substâncias proibidas pela Convenção sobre Armas Químicas, mas desde que aceitou desmantelar o seu arsenal químico, Assad está proibido de usar qualquer gás para fins bélicos.
“Aqueles foguetes eram grandes”, continuou Gabriel. “Só podem ter sido transportados por caças. Não há forma de os disparar à superfície. São precisos oito homens para pegar neles.”
Segundo o calendário Segundo o calendário estabelecido pelo Conselho de Segurança da ONU, o arsenal químico da Síria devia ser totalmente destruído até 30 de junho. Esta semana, a OPAQ admitiu que o prazo não será cumprido e que, agora, a urgência prende-se com a remoção dos 7,2% de substâncias químicas declaradas que ainda restam no país.
O medo de viver no alto
Nos últimos dez meses, Gabriel Chaim passou mais tempo na Síria do que no Brasil. Em Alepo, vive na cave de um prédio de cinco andares onde, diz, nem assim se sente a salvo dos bombardeamentos diários. “O que mais me amedronta é o barulho dos caças. Sei que vão lançar bombas, mas não sei onde. Qualquer um pode ser vítima.”
Quem pode escolher, opta por viver no subsolo. Quem mora em andares altos, vive com medo. “As pessoas andam nas ruas e vão olhando para o céu, com pavor das bombas. Antes, os bombardeamentos eram à noite; agora, são também de dia, em horários de movimento nas ruas. O regime quer atacar as famílias dos combatentes que estão na frente. Geralmente, lançam duas bombas de barril, uma a seguir à outra: soltam uma, esperam que as pessoas acorram ao local e soltam outra.”
Em Alepo, não há mais de 500 metros entre as hostes rebeldes e as forças leais ao regime. No bairro de Salahidin, cinco atiradoras furtivas revezam-se num posto de vigia, que Gabriel visitou. “Faziam parte do Jaish al-Mujahidin (Exército de Combatentes)”, grupo rebelde que faz parte do ELS. “A líder era uma professora de inglês. Elas não lutam com os homens, ficam sozinhas”, de olho atento na mira.
Dois portugueses
Bashar al-Assad é o inimigo número um dos revoltosos sírios, mas batalhas ferozes entre vários grupos rebeldes aumentaram o caos e “estão a acabar com a legitimidade da revolução”, diz Gabriel. “Os radicais islamitas querem tirar Alepo das mãos do ELS e, dentro deste, há grupos que começam a ter condutas desonestas. Há corrupção, desvio de ajuda humanitária e fazem-se sequestros para angariar dinheiro.”
Na quinta-feira, um carro com um grupo de combatentes, “uns oito”, chamou a atenção do brasileiro. “Eram tailandeses e combatiam pela Frente al-Nusra”, um grupo jihadista rival dos radicais do Estado Islâmico do Iraque e do Levante, que foram expulsos de Alepo e estão concentrados, aos milhares, a noroeste da cidade. Gabriel sabe que há estrangeiros nas fileiras de ambos. Já ouviu falar de canadianos, americanos, ingleses, franceses, coreanos, alemães, espanhóis e até de um compatriota brasileiro. E também de dois portugueses.
(Foto: Interior de uma mesquita destruída, em Alepo FOTO GABRIEL CHAIM)
Artigo publicado no “Expresso”, a 7 de junho de 2014
