O regresso dos generais

As transições políticas pós-revolução tardam em produzir estabilidade. No Egito e na Líbia, dois militares agarraram o leme

O deposto Hosni Mubarak “na sombra” do general Mohssen ElFangari, membro do Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF) CARLOS LATTUF / WIKIMEDIA COMMONS

A revolução egípcia acaba de colocar um militar no poder — o marechal Abdel Fattah al-Sisi, eleito por sufrágio universal por uma maioria esmagadora. Na Líbia, um general na reserva declarou guerra às milícias islamitas e desencadeou uma ofensiva por conta própria, na região de Bengasi (leste). Líder de um país em guerra, o sírio Bashar al-Assad sobrevive ao conflito apoiado numas forças armadas que continuam a ser-lhe leais, apesar de múltiplas deserções no início dos protestos. São apenas três exemplos que revelam uma crescente preponderância do poder militar sobre regimes bafejados pela Primavera Árabe.

“Há uma grande preocupação nas populações árabes de que a relativa segurança e estabilidade em que viviam sob regimes autocráticos dê lugar ao caos e à desintegração das instituições, como acontece na Síria e, até certo ponto, na Líbia e no Iémen”, diz ao “Expresso” Manuel Almeida, editor da edição inglesa do jornal árabe “Asharq Al-Awsat”. “Neste contexto, as forças armadas, que eram uma pedra basilar dos regimes e que têm privilégios próprios a defender, são para muitos a principal garantia de que as transições políticas não deem lugar ao caos e de que, pelo menos, o exército zele pelo interesse nacional.”

Três anos após o início da Primavera Árabe — Manuel Almeida prefere chamar-lhe “despertar árabe”, por refletir a ideia de que os árabes acordaram de um sono induzido e não voltarão ao estado anterior de medo e indiferença —, é legítimo interrogar se este protagonismo dos militares não significará um regresso às ditaduras contra as quais os povos se rebelaram. “O risco de um retorno a regimes autocráticos e despóticos com os militares no topo da hierarquia existe”, defende o editor daquele conceituado jornal pan-árabe publicado em Londres.

Pelo povo e para o povo

Mas hoje, entre os árabes, nem tudo é exatamente como antes das revoluções, a começar pela forma como encaram os seus governantes. “O sentimento que se estabeleceu, nos últimos três anos, de que o poder político (seja de que natureza for) tem de prestar contas pelas suas decisões, implica que haja uma pressão maior sobre quem assumir o poder”, continua o editor português. “A necessidade de apresentar trabalho e resultados vai existir, seja o governo em causa democrático ou não, civil ou militar.”

Será assim com o marechal Sisi no Egito, apesar do apoio incondicional que recebeu nas presidenciais de maio (96,9% dos votos). “Sisi poderá ser alvo de um forte descontentamento popular a médio prazo, principalmente se não conseguir reavivar a economia e reduzir o desemprego. A reforma da economia vai inevitavelmente envolver medidas impopulares, como a diminuição dos subsídios. Para partilhar responsabilidades, acredito que Sisi se veja obrigado a garantir que, a breve prazo, haja um governo maioritariamente de civis e tecnocratas.”

Para Manuel Almeida, uma segunda razão concorre para a popularidade e ascensão política das forças armadas nos países árabes: “Uma reação ao poder dos islamitas, principalmente dos vários grupos nacionais da Irmandade Muçulmana”. Embora, em muitos casos, estivesse banida ou proibida de participar no processo político, “a Irmandade Muçulmana é um movimento extremamente determinado e organizado. Esse facto e a ausência de oposição ativa permitiu-lhe tirar partido das transições políticas e posicionar-se como uma das principais forças políticas, como aconteceu no Egito, Tunísia e Líbia.”

Precisamente a Líbia é, hoje, outro país onde o poder militar impõe as regras. Khalifa Haftar — um general na reforma, laico, que lutou ao lado dos rebeldes contra Muammar Kadhafi — lançou a “Operação Dignidade” contra posições islamitas na região de Bengasi, onde começaram os protestos antirregime, coordenando ataques terrestres e bombardeamentos com caças e helicópteros.

A Líbia organiza eleições legislativas a 25 de junho e o general já prometeu um cessar-fogo para essa altura.

“Este combate às milícias surgiu numa altura em que crescia a preocupação em relação ao domínio islamita — e da Irmandade Muçulmana em particular —, tanto no Parlamento como nas regiões estratégicas exportadoras de petróleo, como Bengasi”, explica Almeida. “Há certamente um interesse da parte de Haftar em reclamar para si uma posição de relevo, que procura desde há décadas no exílio (nos EUA). No entanto, o país está bastante fragmentado, existem demasiadas divisões regionalistas e tribais, assim como milícias fortemente armadas, para permitir que um general assuma o controlo facilmente.”

Na falta de um projeto nacional que una as diferentes fações líbias — regionais, tribais, religiosas ou seculares —, a possibilidade de o país se desintegrar não é ficção. “O mais grave é o facto de não existir qualquer tipo de monopólio do uso da força. Há dezenas de milícias e grupos armados e uma forte presença de jihadistas nacionais e de outros países árabes. É uma receita explosiva.”

Militares impiedosos

No contexto das revoltas árabes, dois países preocupam particularmente o editor. Por um lado, o Iémen, palco de uma tragédia humana com tendência para se agravar. “O Iémen quase não tem petróleo e espera-se que a sua população duplique em menos de 20 anos.” Por outro, a Síria. “Talvez a Síria não tenha matado a Primavera Árabe, mas foi certamente um travão.”

No Norte de África, a Argélia destoa por ser o único país onde não se fizeram sentir esses “ventos da mudança”. “Além do eterno Abdelaziz Bouteflika, que foi reeleito recentemente para um quarto mandado presidencial — apesar da deterioração da sua saúde indicar que provavelmente não o irá terminar —, a Argélia é dominada pelos militares e pelos serviços secretos de uma maneira particularmente eficiente e impiedosa”, diz o editor do “Asharq Al-Awsat” (“Médio Oriente”, na língua árabe). “Existe não só a preocupação da oposição em não ir longe demais na exigência de reformas para não dar azo a instabilidade, mas há também reformas tímidas”, como as legislativas de 2012, que a oposição considerou serem um esquema do Governo para prolongar o poder de Bouteflika, mas que foram um passo no sentido da democracia.

Também os fantasmas da guerra civil dos anos 90 — a repressão à violência islamita por parte das forças de segurança provocou, em números redondos, 200 mil mortos — inibem os argelinos na hora de sair à rua para reivindicar.

“Para muitos” no mundo árabe, conclui Manuel Almeida, “a intervenção política das Forças Armadas é, no máximo, um mal menor. Mas inevitavelmente há um preço a pagar, por se colocar o futuro das transições políticas nas mãos dos militares. Como diz o ditado, quando se tem um martelo, todos os problemas começam a assemelhar-se a pregos.”

O QUE CONQUISTARAM
OS PAÍSES DA PRIMAVERA ÁRABE?

TUNÍSIA: Avanço a conta-gotas

Ben Ali fugiu do país a 14 de janeiro de 2011, mas só a 27 de janeiro passado foi aprovada a primeira Constituição pós-revolução. Governo, oposição e sociedade civil discutem agora se realizam primeiro legislativas ou presidenciais. Estes sufrágios concluirão a fase de transição, que foi liderada pelos islamitas do Movimento Ennahda (moderado), vencedor das eleições de 2011 para a Assembleia Constituinte.

O processo tunisino avança lentamente e com recuos, como o assassínio de dois líderes da oposição laica, em 2013. Mas é notória a procura de consensos. A 9 de janeiro, o primeiro-ministro Ali Larayedh (Ennahda) demitiu-se para desbloquear o impasse político e viabilizar a aprovação da Constituição.

Capa do “El País” de 15 de janeiro de 2011

EGITO: De volta à estaca zero

Com a eleição de Abdel Fattah al-Sisi, os militares regressaram à cadeira do poder de onde os revolucionários da Praça Tahrir tinham apeado Hosni Mubarak a 11 de fevereiro de 2011. Como previsto na Constituição aprovada em janeiro, o Governo interino demitiu-se segunda-feira, tendo Sisi reconduzido o primeiro-ministro Ibrahim Mehleb, que formará Governo até novas legislativas, previstas para este ano.

Em mais de dois anos, a transição egípcia decorreu ao estilo de uma falsa partida. Sempre que o povo votou (legislativas, presidenciais e referendo constitucional), a Irmandade Muçulmana venceu. A experiência islamita no país dos faraós terminou a 3 de julho de 2013, quando os militares, liderados por Sisi, afastaram o Presidente Mohamed Morsi após, num abaixo-assinado, milhões terem pedido a sua demissão.

Capa do “The New York Times” de 4 de julho de 2013

LÍBIA: Muitas armas na rua

Muammar Kadhafi foi executado a 20 de outubro de 2011. Desde então, o país continua refém das milícias (muitas delas armadas durante a intervenção da NATO em apoio dos rebeldes), que se recusam a depor as armas até que a sua participação na “libertação” da Líbia se traduza em ganhos políticos.

A segurança no país é intermitente, interrompida ocasionalmente por episódios de violência extrema, como o ataque ao consulado dos EUA em Bengasi, a 11 de setembro de 2012 (o embaixador Christopher Stevens foi um dos 11 mortos). Também a 10 de outubro de 2013, o então primeiro-ministro Ali Zeidan foi levado por homens armados do Hotel Corinthia, em Tripoli, sendo libertado horas depois.

A Líbia elegeu uma Assembleia Constitucional a 20 de fevereiro passado e realiza legislativas a 25 de junho. As últimas, em julho de 2012, foram ganhas por uma aliança composta por 58 partidos. Delas saiu um Parlamento interino que, em fevereiro, por pressão popular, acordou a sua dissolução. Os líbios responsabilizam os deputados pelo caos generalizado.

Árabes e árabes-berberes (amarelo), tubus (azul), tuaregues (vermelho), berberes (preto), zona desabitada (branco) CBC / RADIO-CANADA

IÉMEN: O poder das tribos

Ali Abdullah Saleh abandonou o poder a 23 de novembro de 2011, após dez meses de protestos pró-democracia e após garantir imunidade total. Sucedeu-lhe o seu vice, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, para um mandato de dois anos — prorrogado, em janeiro, por mais um ano.

Lançada em março de 2013, a Conferência para o Diálogo Nacional aprovou, em fevereiro, um sistema federativo que divide o país em seis regiões. “É uma resposta às reivindicações das regiões que se sentem historicamente marginalizadas pelo poder central”, diz Manuel Almeida, editor no jornal “Asharq al-Awsat”. “É o modelo que mais poderá contribuir para a resolução dos gravíssimos problemas do Iémen.”

O país foi unificado em 1990, mas enfrenta uma rebelião huthi (xiita) a norte e pretensões separatistas a sul. Alberga ainda a Al-Qaida na Península Arábica, um dos braços mais ativos da organização. “Julgo que não voltará a haver dois Estados. Mesmo regiões como Hadramaut, historicamente parte do Iémen do Sul, escolheram ser autónomas e não integrar uma solução de dois Estados, o que foi um sério revés para o movimento separatista do sul, baseado em Aden.”

O Iémen antes da unificação, em 1990 WIKIMEDIA COMMONS

SÍRIA: Guerra sem fim

A 3 de junho, Bashar al-Assad fez-se reeleger Presidente, por 88,7%, indiferente ao facto de já não mandar em todo o país (os curdos declararam autonomia a norte e fações rebeldes, algumas islamitas radicais, disputam parcelas de território), mas convicto de que o seu “reinado” está para durar. A Constituição aprovada em 2012 — com a guerra em curso — instituiu o multipartidarismo (nas presidenciais de 3 de junho houve três candidatos) e permitirá a recandidatura de Assad. Se sobreviver politicamente ao conflito poderá ficar no poder até 2028.

A contestação ao Presidente começou a 15 de março de 2011 com o mesmo espírito de Tunis e do Cairo. Assad não hesitou em recorrer às armas e à supremacia aérea para reprimir a oposição. Porém, “o fator desequilibrador da guerra tem sido o enorme apoio, a todos os níveis, que Assad tem recebido do Irão, do Hizbullah (a milícia xiita libanesa), e da Rússia”, diz Almeida. “Comparativamente, o apoio à oposição política e militar dos EUA e de países da União Europeia e do Golfo fica muito aquém daquele que Assad tem recebido.”

Notícia da Al-Jazeera de 5 de junho de 2014

MARROCOS: Um rei com visão

Mohammed VI foi hábil a tirar conclusões das consequências da Primavera Árabe noutras latitudes e antecipou-se a problemas. Com o Movimento 20 de Fevereiro nas ruas, reivindicando mais democracia, o monarca promoveu uma revisão constitucional, aprovada em referendo a 1 de julho de 2011.

O novo texto obriga o rei a nomear para primeiro-ministro uma personalidade do partido mais votado, a transferir prerrogativas para o primeiro-ministro, como a possibilidade de dissolver o Parlamento, e outras para o Parlamento, como a concessão de amnistias. E torna o berbere língua oficial. O rei também convocou eleições antecipadas, que foram ganhas, a 25 de novembro de 2011, pelo Partido Justiça e Desenvolvimento (islamita).

Notícia do “El Mundo” de 16 de fevereiro de 2011

BAHRAIN: Luta já não é notícia

O Bahrain é a única monarquia do Golfo com uma população etnicamente divergente da família real: os bahrainis são maioritariamente xiitas e os Al-Khalifa sunitas. A tensão entre povo e poder é, por isso, latente. A 18 de março de 2011, as autoridades mandaram derrubar a estátua do centro da Praça da Pérola, em Manama, que fora palco de protestos que pediam, entre outros, reconhecimento político para os xiitas e que foram reprimidos com a ajuda de tanques enviados pela Arábia Saudita (sunita).

A revolução desapareceu das televisões, mas, na internet, o Centro para os Direitos Humanos do Bahrain noticia diariamente atentados à liberdade e à condição humana. A 1 de junho, Firas al-Saffar, de 15 anos, foi levado de casa por polícias à paisana. Num posto de Manama, foi interrogado e acusado de “filmar reuniões não autorizadas”.

“Direitos humanos não são permitidos no Bahrain”, lê-se neste “aviso” acompanhado pela imagem do ativista Nabeel Rajab CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no Expresso, a 13 de junho de 2014

Os bastidores de uma entrevista histórica

O Papa Francisco escolheu Henrique Cymerman para dar a sua primeira entrevista, no Vaticano, a uma televisão. Ao “Expresso”, o jornalista partilha momentos a sós entre os dois e descreve a sua reação quando o Papa lhe chamou “anjo da paz”

Quando ia a caminho da Residência de Santa Marta, no Vaticano, para entrevistar o Papa Francisco, o jornalista Henrique Cymerman temeu o pior. “Recebemos a informação que o Papa estava doente e que todos os seus compromissos para aquele dia estavam a ser cancelados. Chegamos e o secretário do Papa disse-me que ele queria que eu fosse vê-lo ao quarto. Sem câmaras. Sentamo-nos e ele disse: ‘Henrique, para mim, tu foste um anjo da paz. Muito obrigado pelo teu papel. Sem ti, a oração de ontem não teria acontecido’. Eu respondi que tinha sido um trabalho de equipa e ele contrapôs: ‘É verdade, mas o principal papel foi o teu’.”

Na véspera, domingo passado, o Papa tinha reunido, no Vaticano, os Presidentes israelita e palestiniano numa oração pela paz. Em entrevista ao “Expresso”, o jornalista confessa que ao ouvir o elogio do Papa, teve “vontade de rir”. “Ele tem muito sentido de humor, faz piadas e ri-se muito. Eu pensava que ele estava a brincar comigo. Quando ele disse que eu era um anjo quase lhe respondi: ‘Não, não tenho asas’. Mas logo percebi que ele falava a sério. Fiquei um bocado à rasca, reconheço.”

Ao recordar o momento, Cymerman admite ter ficado “chocado” com a simplicidade dos aposentos papais. “Ele vive num pequeno apartamento, que mais parece um hotel de três estrelas dos anos 70. É um local simples, com mobílias simples, uns sofás verdes de veludo. O quarto deve ter uns 10 metros quadrados, a sala é um pouco maior. Tem também uma espécie de escritório, que é um cantinho cheio de papéis e livros. ‘Aqui não se atrevem a tocar porque eu não deixo’, disse ele.”

A sós, no quarto, o Papa expressou vontade de agradecer ao jornalista português diante das câmaras. “Saímos e enquanto cruzávamos toda a Santa Marta íamos conversando sobre coisas que tinham acontecido durante a oração. Ele levava um saco na mão que me parecia bastante pesado.” Quando as câmaras se ligaram, o Papa repetiu os elogios e ofereceu-lhe uma escátula, “uma obra de arte de um artista de Roma de há um século que se chama ‘o anjo da paz’ e na qual se vê o anjo da paz a vencer o diabo da guerra”. “É uma condecoração que, normalmente, ele dá aos reis e chefes de Estado. Para mim, foi um pouco exagerado. Mas foi assim que ele sentiu. Foi do coração. Foi um momento muito emotivo que vou lembrar para o resto da vida”, assegura.

Entrevista sem pré-condições

A entrevista que se seguiu, e que é transmitida esta sexta-feira na SIC, durou 52 minutos. “Senti que podíamos ter continuado mais duas horas, mas ele estava doente e denotava algum cansaço. Fez um grande esforço para dar esta entrevista”, a primeira a uma estação de televisão realizada no Vaticano.

A conversa foi combinada sem pré-condições. “Eu acho que ele tem bastante confiança em mim”, diz Cymerman, que admite que essa química é recíproca. “Eu já disse ao Papa que sou totalmente judeu. Mas na minha forma de ver o mundo, sou bergogliano. Partilho com ele muitos valores.”

Francisco fala também do seu futuro e revela que, aberto o precedente por Bento XVI, que se tornou Papa Emérito, não hesitará em renunciar ao Pontificado quando sentir que a saúde lhe falta. “O Papa não tem tempo. Ele diz, na brincadeira, que os ritmos dos diplomatas e dos burocratas são muito lentos para ele. Almoça e janta em 15 minutos. Com ele, é tudo muito rápido, muito direto.”

Na entrevista, o chefe da Igreja Católica fala de abusos cometidos pelo clero e de uma certa opulência que o incomoda e desagrada, revela quais são as suas intenções em relação aos arquivos do Vaticano sobre o Holocausto e diz o que sentiu após ler um livro sobre a Inquisição em Espanha e Portugal.

A discrição de um hotel de 3 estrelas

A pressa em obter resultados fez-se sentir sobre Henrique Cymerman durante o processo de organização da “oração pela paz”, que fez o jornalista ir seis vezes ao Vaticano, a custas próprias, no último ano. “No dia da Canonização de João Paulo II (a 27 de abril passado), reuni-me, com israelitas e palestinianos, numa pequena sala no terceiro andar do Relais Dei Papi, um hotel de três estrelas (em Roma). Não queríamos ir a hotéis grandes para não chamar a atenção. Ninguém tinha a mínima ideia do que estávamos ali a fazer.”

A viagem papal à Terra Santa já estava marcada (entre 24 e 26 de maio) e as partes tentavam encaixar a “oração da paz” no programa. “O Papa pressionava-me muito. Dizia: ‘Tens de ajudar-me, tens de salvar isto. Pode ser em qualquer lugar, a qualquer hora, eu estou disposto a tudo’.”

A hipótese do encontro realizar-se em Jerusalém colocava a iniciativa em perigo. “Os palestinianos colocaram problemas. Diziam que o Presidente Mahmud Abbas não queria ir a Jerusalém temendo que isso pudesse provocar uma humilhação, por parte das forças de segurança israelitas, nos checkpoints.”

Passada a histórica oração, o correspondente do “Expresso” em Israel diz ter a impressão que o Papa Francisco não ficará por aqui, no que a iniciativas de paz para o conflito israelo-palestiniano diz respeito. “Ele é uma pessoa com os pés na terra. Entende que não podemos esperar que, de repente, haja uma paz messiânica em toda a região, mas acredita que é preciso dar passos”, passos modestos na direção certa.

A PROMESSA A DILMA

Na entrevista à SIC, Francisco explica por que motivo não tem medo de contactar com as pessoas, sabendo que isso pode custar-lhe a vida, e partilha a promessa que fez — sendo ele argentino — à Presidente brasileira, Dilma Rousseff, a propósito do Mundial de Futebol. Para saber qual, tem de ver a reportagem que passa na SIC esta sexta-feira, no Jornal da Noite, e depois na SIC Notícias, às 22h30, seguida de debate. (Link da entrevista de Henrique Cymerman ao Papa Francisco)

(Foto principal: Papa Francisco e Henrique Cymerman, na residência de Santa MArta, no Vaticano HENRIQUE CYMERMAN)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 13 de junho de 2014. Pode ser consultado aqui

Corrupio diplomático em vésperas de negociações nucleares

Iranianos e ocidentais têm até 20 de julho para aprovar um acordo final sobre o nuclear do Irão. Por estes dias, as diplomacias andam agitadas

Negociadores iranianos rumaram esta quarta.feira a Genebra e a Roma para conversações diretas sobre o seu programa nuclear com representantes franceses e russos, respetivamente.

No domingo, será a vez de negociadores alemães irem a Teerão com o mesmo intuito. Já na segunda e terça-feira, Irão e Estados Unidos — que não têm relações diplomáticas — tinham-se reunido em Genebra.

Este corrupio de encontros bilaterais visa preparar a próxima ronda de conversações entre o Irão e o Grupo 5+1 — os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (Reino Unido, China, França, Rússia e Estados Unidos) e a Alemanha — que decorrerá em Viena, na próxima semana (de 16 a 20).

As partes comprometeram-se com a celebração de um acordo final até 20 de julho, mas crescem dúvidas sobre a concretização desse objetivo. 

Os países ocidentais procuram conter o Irão nas suas pretensões nucleares, suspeitando que tenha objetivos militares, enquanto Teerão, que insiste que o seu programa nuclear visa fins pacíficos, designadamente a produção energética, quer ver levantadas as sanções económicas decretadas por Estados Unidos e União Europeia.

Esta semana, o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Abbas Araqchi, disse que era “muito cedo para julgar” se será necessário mais tempo, para além de 20 de julho, para as partes chegarem a acordo. 

Em entrevista à Rádio France Internationale, o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Laurent Fabius, concretizou quais os obstáculos que estão a dificultar o diálogo. “Continuamos a esbarrar contra a parede num ponto absolutamente fundamental que é o número de centrifugadoras para enriquecimento” de urânio, disse. “Nós dizemos que podem ter algumas centenas, mas os iranianos querem milhares. Isso significa que não estamos no mesmo enquadramento.”

Segundo a Agência Internacional de Energia Atómica, o Irão tem cerca de 19.000 centrifugadoras, das quais à volta de 10.000 estão a funcionar. O urânio enriquecido pode ter aproveitamento civil e militar, dependendo do grau de refinamento.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de junho de 2014. Pode ser consultado aqui

Oração, fraternidade e… política

Oficialmente desavindos, os líderes de Israel e da Palestina rezaram juntos em Roma por iniciativa do Papa. O Vaticano diz, porém, que Francisco não quer ser mediador do conflito. O Expresso ouviu a reação dos dois embaixadores em Lisboa

O Papa Francisco cumpriu o prometido e reuniu, nos jardins do Vaticano, os chefes de Estado de Israel e da Palestina. O líder da Igreja Católica instou Shimon Peres e Mahmud Abbas a “darem resposta” aos apelos de paz dos dois povos e a encontrarem forças para “persistir num diálogo destemido”.

Os dois Presidentes apertaram a mão e plantaram uma oliveira – símbolo da paz e da região mediterrânica, palco do conflito.”

Os encontros simbólicos têm toda a importância, nomeadamente quando são, como foi o caso da cerimónia do Vaticano, transmitidos na íntegra e em direto pela CNN e seguidos no mundo inteiro”, comenta ao Expresso Carlos Gaspar, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais, da Universidade Nova de Lisboa.

“Em junho de 1979, o Papa João Paulo II visitou pela primeira vez a Polónia e, nessa ocasião, o cardeal Karol Wojtyla quis dizer aos polacos uma frase singela: ‘Não tenham medo’. As consequências das suas palavras são bem conhecidas.”

Francisco afirmou que “fazer a paz requer coragem, muito mais do que guerra”, qualificou de “inaceitável” a suspensão das conversações israelo-palestinianas e mostrou-se esperançado de que este encontro possa significar “uma nova jornada” no sentido da paz no Médio Oriente.

O Vaticano fez saber que a iniciativa papal consistiu numa “aproximação espiritual”, não tendo quaisquer motivações políticas associadas, pelo que não estão previstos outros eventos concretos.

“Não há nenhum sinal de que o Papa venha a tornar-se um mediador diplomático entre o Estado de Israel e a Autoridade Palestiniana e, muito menos, de que queira ter uma intervenção política direta nos conflitos internacionais”, continua Carlos Gaspar. 

“A cerimónia da Santa Sé concentrou-se nas orações e quis reconhecer os participantes pela sua religião, como resulta também da importância dada à presença do patriarca de Constantinopla. Pela sua parte, tanto Shimon Peres como Mahmud Abbas corresponderam à vontade do Papa, não só pelo tom das suas orações respetivas como pela relativa moderação das suas intervenções. Os EUA foram, são e vão continuar a ser os únicos com o poder e a credibilidade indispensáveis para impor a sua vontade numa mediação diplomática entre o Estado de Israel e a Autoridade Palestiniana”, frisa

Recados de parte a parte

Em declarações ao Expresso, os embaixadores de Israel e da Palestina em Portugal congratularam-se com a realização desta iniciativa. A diplomata israelita Tzipora Rimon afirma que o encontro “não irá resolver todas as questões”. “Mas criou um precedente único e uma atmosfera muito positiva para aproximar os dois lados e um encorajamento para continuarmos a lutar pela paz, que só poderá ser alcançada através do diálogo”, adianta.

A diplomata refere que para que a paz seja alcançada a comunidade internacional tem de “fazer todos os esforços para que a liderança da Autoridade Palestiniana não se limite apenas a declarações, mas que mostre mudanças no terreno, nomeadamente, o reconhecimento do Estado de Israel por parte do Hamas, a renúncia à violência e também o respeito pelos acordos internacionais previamente assinados.”

Por seu lado, o embaixador palestiniano em Lisboa, Hikmat Ajjuri, recordou que, no passado, já o Papa João Paulo II afirmou que “a paz na Terra Santa precisade pontes, não de muros”. Acrescenta que “talvez com a bênção do Papa Francisco, este encontro no local sagrado do Vaticano ajude a derreter o gelo entre israelitas e palestinianos, a derrubar muros e a construir pontes. E que a solução de dois Estados, que é a única solução para o conflito aprovada internacionalmente, seja concretizada, tornando os dois Estados uma realidade, mais cedo do que tarde”.

O embaixador Ajjuri recorda que as Nações Unidas decretaram 2014 como o Ano da Solidariedade para com o Povo Palestiniano. “Por isso, esperamos que este ano seja o fim da única ocupação militar que resta à face da Terra, que é a ocupação israelita do Estado da Palestina”, conclui.

IMAGEM Pomba da paz com espinhos PUBLIC DOMAIN VECTORS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de junho de 2014. Pode ser consultado aqui

Assad vence farsa eleitoral mas só nas áreas que controla

Brasileiro descreve como Alepo, nas mãos dos rebeldes, passou ao lado das eleições

Bashar al-Assad foi reeleito, na terça-feira, com 88,7% dos votos. Ficou aquém dos 97,6% que obteve no último referendo presidencial, em 2007, mas a ‘derrapagem’ é apenas aparente… Ao abrigo da Constituição de 2012 — que instituiu o multipartidarismo na Síria (nestas eleições, houve três candidatos) —, Bashar poderá recandidatar-se à presidência ainda mais uma vez. Se sobreviver politicamente à guerra civil que destrói o país há mais de três anos, poderá eternizar-se no poder até 2028, ficando só a um ano de igualar o pai, Hafez, que ‘reinou’ 29 anos.

A autoridade do Presidente não se estende à totalidade do território, pelo que as urnas de voto só chegaram às áreas controladas pelo regime. Não se votou, por exemplo, nas regiões curdas do norte onde, em janeiro, foi estabelecida uma administração autónoma, nem em Alepo. “Não foi possível votar aqui”, confirmou ao Expresso o fotógrafo brasileiro Gabriel Chaim, desde a segunda cidade síria, controlada pelos rebeldes do Exército Livre da Síria (ELS), apoiado pelo Ocidente.

“Os rebeldes fecharam as duas passagens que dão para a zona controlada pelo regime, impedindo as pessoas de ir votar. Assad queria reabrir essas passagens e intensificou os bombardeamentos. Os rebeldes fizeram três tiros de morteiro sobre as zonas de votação. Assad avisou que por cada granada retaliaria com três bombas de barril deitadas de avião. Lançou 22.”

As bombas de barril são uma especificidade síria. São latões cheios com pedaços de ferro, petróleo e TNT. Lançadas de avião, “matam de todas as formas, através da explosão, do cheiro forte e dos estilhaços que dilaceram”, diz Gabriel. São projéteis “made in Síria para matar sírios”.

Oito homens e um foguete

Numa recente visita a uma zona castigada pela aviação de Assad, o brasileiro viu-se diante de uma prova da demência do regime. “Em Kfar Hamara, que parecia uma cidade-fantasma, levaram-me a ver um míssil que não tinha explodido. Abriram-no e dentro havia cloro. Sentiu-se logo o cheiro. Nesse local, guardavam todas as bombas lançadas por Assad e que não tinham rebentado. Vi mais de 30 bombas diferentes…”

Em maio, a Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) enviou uma equipa para investigar o uso pela ditadura de ogivas com cloro. Este gás, usado como arma asfixiante na I Guerra Mundial não consta da lista de substâncias proibidas pela Convenção sobre Armas Químicas, mas desde que aceitou desmantelar o seu arsenal químico, Assad está proibido de usar qualquer gás para fins bélicos.

“Aqueles foguetes eram grandes”, continuou Gabriel. “Só podem ter sido transportados por caças. Não há forma de os disparar à superfície. São precisos oito homens para pegar neles.”

Segundo o calendário Segundo o calendário estabelecido pelo Conselho de Segurança da ONU, o arsenal químico da Síria devia ser totalmente destruído até 30 de junho. Esta semana, a OPAQ admitiu que o prazo não será cumprido e que, agora, a urgência prende-se com a remoção dos 7,2% de substâncias químicas declaradas que ainda restam no país.

O medo de viver no alto

Nos últimos dez meses, Gabriel Chaim passou mais tempo na Síria do que no Brasil. Em Alepo, vive na cave de um prédio de cinco andares onde, diz, nem assim se sente a salvo dos bombardeamentos diários. “O que mais me amedronta é o barulho dos caças. Sei que vão lançar bombas, mas não sei onde. Qualquer um pode ser vítima.”

Quem pode escolher, opta por viver no subsolo. Quem mora em andares altos, vive com medo. “As pessoas andam nas ruas e vão olhando para o céu, com pavor das bombas. Antes, os bombardeamentos eram à noite; agora, são também de dia, em horários de movimento nas ruas. O regime quer atacar as famílias dos combatentes que estão na frente. Geralmente, lançam duas bombas de barril, uma a seguir à outra: soltam uma, esperam que as pessoas acorram ao local e soltam outra.”

Em Alepo, não há mais de 500 metros entre as hostes rebeldes e as forças leais ao regime. No bairro de Salahidin, cinco atiradoras furtivas revezam-se num posto de vigia, que Gabriel visitou. “Faziam parte do Jaish al-Mujahidin (Exército de Combatentes)”, grupo rebelde que faz parte do ELS. “A líder era uma professora de inglês. Elas não lutam com os homens, ficam sozinhas”, de olho atento na mira.

Dois portugueses

Bashar al-Assad é o inimigo número um dos revoltosos sírios, mas batalhas ferozes entre vários grupos rebeldes aumentaram o caos e “estão a acabar com a legitimidade da revolução”, diz Gabriel. “Os radicais islamitas querem tirar Alepo das mãos do ELS e, dentro deste, há grupos que começam a ter condutas desonestas. Há corrupção, desvio de ajuda humanitária e fazem-se sequestros para angariar dinheiro.”

Na quinta-feira, um carro com um grupo de combatentes, “uns oito”, chamou a atenção do brasileiro. “Eram tailandeses e combatiam pela Frente al-Nusra”, um grupo jihadista rival dos radicais do Estado Islâmico do Iraque e do Levante, que foram expulsos de Alepo e estão concentrados, aos milhares, a noroeste da cidade. Gabriel sabe que há estrangeiros nas fileiras de ambos. Já ouviu falar de canadianos, americanos, ingleses, franceses, coreanos, alemães, espanhóis e até de um compatriota brasileiro. E também de dois portugueses.

(Foto: Interior de uma mesquita destruída, em Alepo FOTO GABRIEL CHAIM)

Artigo publicado no Expresso, a 7 de junho de 2014