Irão e Arábia Saudita: a nova Guerra Fria

A desagregação do Iraque e da Síria beneficia da rivalidade histórica entre iranianos e sauditas. O Líbano pode ser a próxima batalha

Os focos de incêndio não param de deflagrar no Médio Oriente. A redefinição das fronteiras ditadas pela I Guerra Mundial parece mais próxima do que nunca. Síria e Iraque são hoje uma manta de retalhos, onde os jihadistas do Estado Islâmico avançam sem oposição à altura. Na quarta-feira, conquistaram às forças sírias o posto fronteiriço de Quneitra, nos Montes Golã, e fizeram reféns 43 capacetes azuis das ilhas Fiji. Estão, pois, às portas de Israel.

Na terça-feira, os EUA iniciaram voos de reconhecimento sobre a Síria, visto como uma medida prévia à possível extensão dos bombardeamentos que já estão a realizar sobre posições jihadistas no norte do Iraque. “Ainda não temos uma estratégia”, para combater os jihadistas, admitiu Barack Obama na quinta-feira.

Na base desta ‘descida aos infernos’ de Síria e Iraque está, em grande parte, a histórica disputa entre Arábia Saudita e Irão pela supremacia na região. Os dois gigantes personificam as grandes rivalidades religiosas e culturais que caracterizam — e fragmentam — a região: a Arábia Saudita é um país árabe sunita; o Irão é persa e professa o ramo xiita do Islão.

À semelhança da Guerra Fria que opôs EUA e URSS durante mais de 40 anos, Riade e Teerão travam, hoje, ‘guerras por procuração’, acicatando divisões sectárias para expandir a sua influência. Isso acontece na Síria, no Líbano e no Iraque, este último palco de uma disputa sangrenta, nos últimos dez anos, entre sunitas e xiitas.

Na terça-feira, o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Hossein Amir-Abdollahian, deslocou-se a Jeddah para discutir com o homólogo saudita, o príncipe Saud Al-Faisal, o “vespeiro” iraquiano. Foi a visita bilateral mais importante desde a eleição do Presidente Hassan Rohani, há um ano. Os países não estão de relações cortadas, mas o diálogo é escasso, envolvidos que estão numa guerra de “soma zero” — o ganho de um representa a perda do outro — da qual apenas um pode sair vencedor.

Exportar ideologias

A desconfiança entre os dois países agravou-se com a Revolução Islâmica no Irão, em 1979, que fez coincidir, no poder, as ambições políticas persas e o zelo religioso xiita.

Um dos pilares do regime dos ayatollahs é a exportação da revolução que, hoje, passa pela preservação do chamado ‘arco xiita’ — Iraque (os xiitas estão no poder), Síria (os alauitas de Bashar al-Assad são xiitas) e Hezbollah (“Partido de Deus”, milícia xiita que participa no Governo do Líbano). Fontes do Hezbollah afirmaram, esta semana, ao sítio “Al-Monitor” que já identificaram dois prováveis campos de batalha na guerra que contam travar com o Estado Islâmico: o vale de Bekaa e a área de Tripoli, ambos no norte do Líbano.

A estratégia internacionalista consta igualmente da agenda da Arábia Saudita, também ela empenhada em divulgar a doutrina waabita (fundamentalista, que defende o regresso aos princípios básicos do Islão), para o que afeta quantias milionárias de petrodólares, seja para apoiar fações políticas seja para financiar mesquitas. Em 2008, Mohammed Maghraoui, um clérigo salafita de Marraquexe emitiu um decreto (fatwa) autorizando homens a casar com meninas de nove anos. Visado pela justiça marroquina, exilou-se na Arábia Saudita, que o financiava.

À SEMELHANÇA DA GUERRA FRIA ENTRE AMERICANOS E SOVIÉTICOS, IRÃO E ARÁBIA SAUDITA TRAVAM ‘GUERRAS POR PROCURAÇÃO’

Esta disputa geopolítica põe frente a frente os dois maiores e mais ricos países do Médio Oriente, situados nas margens do Golfo — Pérsico para os iranianos, Arábico para os sauditas —, por onde é transportado um quinto do petróleo consumido em todo o mundo. Na margem ocidental desse curso, os sauditas controlam a Península Arábica com rédea curta, exercendo uma influência quase absoluta sobre as outras petromonarquias (Kuwait, Emirados, Bahrain, Qatar e Omã).

Quando a primavera árabe atingiu o Bahrain — regime sunita e população maioritariamente xiita —, tropas sauditas cruzaram a fronteira em socorro dos Al-Khalifa. Nos países onde os xiitas são minoritários, como na Arábia Saudita, Riade vê-os como uma ‘quinta coluna’ ao serviço de Teerão.

No Irão, a minoria árabe também luta pela vida. Em janeiro, foi enforcado o poeta Hashem Shaabani, 32 anos. Pertencia à organização cultural “Al-Hiwar” (diálogo), gerida pela minoria árabe ahwazi e ilegalizada pelo regime iraniano.

IRÃO

IDENTIDADE
A República Islâmica do Irão é um Estado persa, cuja população é muçulmana xiita. O primeiro império persa remonta ao século VI a.C., muito antes do advento do Islão (século VII).

LIDERANÇA
A pirâmide do poder é encabeçada pelo ayatollah Ali Khamenei, de 75 anos. Ayatollah é uma palavra persa que significa “sinal de Deus”.

IRAQUE
A invasão dos EUA (2003) depôs Saddam Hussein (que governou apoiado na minoria sunita) e catapultou os xiitas para o poder. O Irão passou a ter um poderoso aliado árabe, com quem partilha uma fronteira de 1500 km.

SÍRIA
Combatentes do Hezbollah (xiita libanês apoiado pelo Irão) lutaram na Síria ao lado das forças leais ao regime alauita de Bashar al-Assad (os alauitas são xiitas). Uma demonstração da dinâmica do ‘arco xiita’.

PRIMAVERA ÁRABE
O líder supremo Ali Khamenei comparou os protestos pró-democracia no mundo árabe ao “despertar islâmico” que significou a revolução iraniana de 1979. Mas dois anos antes, quando o Irão foi palco de manifestações semelhantes, Teerão reprimiu. Mir-Hussein Moussavi, um dos líderes da revolução verde, continua em prisão domiciliária.

ISRAEL-PALESTINA
Israel acusa o Irão de apoiar, logística e financeiramente, o movimento islamita Hamas, que controla a Faixa de Gaza, como acontece com outro grande inimigo israelita, o libanês Hezbollah. Israel sente-se ameaçado pela ambição nuclear iraniana, sobretudo desde que o ex-Presidente Mahmoud Ahmadinejad disse que Israel devia ser “varrido do mapa”.

NUCLEAR
Teerão diz que quer ter capacidade nuclear para produzir energia, mas sobram desconfianças. “Todas as sanções impostas ao Irão a propósito das suas atividades nucleares deverão ser levantadas em troca da nossa ajuda no Iraque”, terá dito o ministro dos Negócios Estrangeiros Javad Zarif, citado na semana passada pela agência iraniana IRNA. Teerão disse que foi mal interpretado.

TERRORISMO
Após o 11 de setembro, George W. Bush inscreveu o Irão no ‘eixo do mal’ que apoia o terrorismo. Por Guantánamo passaram três iranianos. Em 2011, os EUA implicaram Teerão num plano para matar o embaixador saudita em solo americano.

ARÁBIA SAUDITA

IDENTIDADE
O Reino da Arábia Saudita é árabe e professa o ramo sunita do Islão. Sobre o fundo verde da sua bandeira, lê-se a “shahada”, a profissão de fé muçulmana: “Não há outro deus senão Alá e Maomé é o seu mensageiro”.

LIDERANÇA
O reino é o berço do Islão. O monarca — atualmente Abdullah, de 90 anos — é, por inerência de cargo, o “guardião das duas mesquitas sagradas”, em Meca e Medina.

IRAQUE
As preocupações sauditas começaram com a guerra de George W. Bush que abriu as portas do poder em Bagdade aos xiitas. Riade partilha com as forças extremistas e com a Al-Qaeda uma afinidade ideológica (sunita) e o interesse em acabar com o domínio xiita.

SÍRIA
Durante a guerra civil, a Arábia Saudita tornou-se o maior fornecedor de armas aos rebeldes. Em novembro de 2013, o Presidente sírio acusou Riade de “liderar a maior operação de sabotagem direta contra todo o mundo árabe”.

PRIMAVERA ÁRABE
A Arábia Saudita adotou uma estratégia de tolerância zero em relação aos protestos pró-democracia na Península Arábica. Enviou tropas para o Bahrain em apoio do regime sunita e envolveu-se nas negociações de transferência de poder no Iémen.

ISRAEL-PALESTINA
Em 2002, partiu de Riade uma das mais credíveis iniciativas de paz para o conflito israelo-palestiniano. Elaborada pelo rei Abdullah (então príncipe herdeiro) oferecia o reconhecimento de todos os países árabes em relação ao Estado de Israel se este recuasse até às fronteiras anteriores à guerra de 1967.

NUCLEAR
A Arábia Saudita não acredita no discurso pacifista de Teerão e considera que o nuclear será usado em armamento. Riade já fez saber que se os iranianos continuarem com o programa, os sauditas sentir-se-ão pressionados a desenvolver o nuclear também.

TERRORISMO
Quinze dos 19 piratas do ar do 11 de setembro eram sauditas, tal como Osama bin Laden. Entre os detidos em Guantánamo, suspeitos de atividades terroristas, a nacionalidade saudita é a segunda mais representada, só superada pela afegã. O reino reconhece ter um problema interno. Na terça-feira, um tribunal local condenou 18 pessoas (seis sauditas) a penas de prisão por planearem ataques terroristas no reino.

Artigo publicado no Expresso, a 30 de agosto de 2014

“Leva-me para o teu país, seja onde for”

Milhares de cristãos iraquianos fugiram de casa com medo de serem mortos pelos extremistas islâmicos. Uma espanhola descreve ao Expresso a sua visita a centros onde estão estes refugiados, no norte do Iraque. “Um bispo disse-nos que se nada não for feito para mudar a situação, estão a escrever-se as últimas linhas da história do cristianismo no Iraque”

As igrejas estão transformadas em casas sobrelotadas, os jardins são albergues a céu aberto e, na via pública, há espaços repletos de tendas. Erbil, no norte do Iraque, é hoje uma montra do desespero de milhares de cristãos, forçados a partir de um dia para o outro quando extremistas islâmicos lhes entraram aldeia dentro.

“Durante o dia, eles estão tranquilos, mas a situação é fantasmagórica”, conta ao Expresso Maria Lozano, vice-diretora da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), regressada de uma visita à região. “O mais importante para estas pessoas é terem um teto sobre a cabeça. Anqawa tornou-se numa enorme sala de espera. Eles perguntam: ‘O que se vai passar connosco?’”

Anqawa é o bairro cristão da cidade de Erbil (a capital do Curdistão iraquiano). Ali estão refugiados cerca de 70 mil cristãos, fugidos de Qaraqosh — cidade de maioria cristã e sede do Arcebispado de Mossul — após a chegada das forças jihadistas, na noite de 6 para 7 de agosto. “Estão distribuídos por 22 centros de ajuda: colégios, edifícios em construção, pequenos ginásios, escolas, salões paroquiais, jardins… Na catedral vivem umas 700 famílias, o jardim está cheio. E com temperaturas a rondar os 44 graus, tudo se torna mais difícil. Quem está em jardins ou parques tenta agrupar-se como pode em lugares onde haja um pouco de sombra.”

A vida ficou, subitamente, virada do avesso para quem teve de fugir, mas também para quem se dispôs a estender a mão aos refugiados. Aradin, um pequeno povoado da região de Erbil onde viviam 50 famílias cristãs, abriu as portas a 250 outras… “As pessoas fazem tudo para ajudar os refugiados, mas isto tem um grande impacto nas comunidades”, explica Maria Lozano.

Mais a norte, em Duhok, está um outro grande grupo de cristãos, fugidos de Mossul, após a conquista desta cidade pelos jihadistas, a 10 de junho. “Ameaçaram que lhes cortavam a cabeça se não se convertessem ao Islão ou não pagassem o imposto religioso. Estava claro para os cristãos que mesmo que pagassem o imposto, outras cobranças se seguiriam a quem mostrasse ter dinheiro.”

Maria Lozano estima que chegaram a Duhok cerca de 60 mil cristãos. “Ali estão mais distribuídos, em casas de familiares e amigos”. Em 2003, viviam em Mossul 35 mil cristãos, hoje não resta nenhum.

Da boca dos cristãos, Maria não ouviu histórias de que algum tenha sido assassinado por recusar a conversão ao Islão. “As zonas cristãs despovoaram-se rapidamente. Quando começaram a ouvir falar da chegada dos jihadistas, meteram-se nos carros e fugiram, deixando tudo para trás. Como cristã, penso que foi um pequeno milagre terem podido fugir e salvar as suas vidas daquilo que parecia ser um massacre iminente. Quase não houve mortos.”

O desespero de passar pelo mesmo

Os cristãos iraquianos dividem-se na hora de pensar o futuro. Uns querem continuar a viver no Iraque, onde as suas famílias ali vivem há gerações, outros querem abandonar o país. “Alguns pedem-nos ajuda para regressarem a suas casas. Todas as pessoas que viviam em Qaraqosh têm a esperança de aí regressar. Mas dizem que isso só pode acontecer se alguém lhes garantir a segurança. Não querem voltar a passar pelo mesmo sofrimento”, conta Maria Lozano.

“Depois, há um grupo de pessoas que já acumula várias experiências duras, que já teve de partir mais do que uma vez. Esses, que fugiram de Mossul, por exemplo, estão bastante mais desesperados. Têm o trauma de um país que se está a esvair em sangue e dizem que não podem continuar a viver ali. Alguns diziam: ‘Leva-me para o teu país, seja onde for. Não queremos viver mais num país em guerra, onde os direitos dos cristãos não são respeitados ou defendidos’.”

Na semana passada, a bordo do avião que o trouxe da Coreia do Sul (onde cumpriu uma visita de cinco dias), o Papa Francisco — questionado se aprovava os bombardeamentos dos EUA sobre posições jihadistas — defendeu que todos os esforços para travar os militantes islamitas que ameaçam as minorias religiosas iraquianas são lícitos.

“Nestes casos, quando há uma agressão injusta, apenas posso dizer que é lícito parar o agressor injusto. Sublinho o verbo ‘parar’. Não digo ‘bombardear’ ou ‘fazer a guerra’. Com que meios devem ser parados? Isso tem de ser avaliado”, defendeu o chefe da Igreja Católica. O Papa referiu também que a decisão de intervir não deve ser tomada por um país unilateralmente, mas deve ser uma resposta internacional coletiva.

O fim de uma igreja antiga?

Além da recolha de testemunhos, Maria Lozano e dois outros elementos da Fundação AIS que se deslocaram ao Iraque procuraram fazer um diagnóstico das carências diárias dos refugiados cristãos para canalizar ajuda. Desde o início desta crise humanitária, a fundação já enviou 230 mil euros para fazer face, sobretudo, à necessidade de cobertores, alimentos, água potável e medicamentos.

A AIS também contactou bispos, padres, religiosas e voluntários para aferir das suas preocupações. “Um bispo disse-nos que se nada não for feito para mudar a situação, estão a escrever-se as últimas linhas da história do cristianismo no Iraque.”

As estatísticas dizem que em 1991 havia cerca de cinco milhões de cristãos no Iraque; hoje, não serão mais de 300 mil. A Igreja do Iraque é das mais antigas do mundo. Maria recorda que há 1500 anos — ainda antes do advento do Islão — 80% dos iraquianos eram cristãos. “Agora são menos de 1% da população.”

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de agosto de 2014. Pode ser consultado aqui

 

 

 

Aeroporto de Tripoli muda de mãos, para outra milícia

Forças islamitas conquistam o aeroporto internacional de Tripoli e acusam Egito e Emirados de bombardearem a capital

Os Estados Unidos terão sido apanhados de surpresa. Segundo quatro responsáveis norte-americanos citadas pelo diário “The New York Times”, duas séries de bombardeamentos, na semana passada contra milícias islamitas líbias em Tripoli, foram levadas a cabo pelo Egito e pelos Emirados Árabes Unidos.

Os dois países árabes terão agido sem consulta prévia às autoridades norte-americanas, de quem são aliados e parceiros militares.

“Os responsáveis afirmaram que os Emirados Árabes Unidos – que ostentam uma das forças aéreas mais eficazes do mundo árabe, graças a equipamento e treino americanos – forneceram os pilotos, os aviões de guerra e os aviões de reabastecimento necessários aos caças para o bombardeamento a Tripoli, a partir de bases no Egito”, escreveu o jornal norte-americano. “Não ficou claro se os aviões ou munições eram de fabrico americano.” Internamente, os regimes egípcios e emiratis têm reprimido as forças islamitas. Mas ambas as capitais negam este envolvimento.

A polémica estalou após a força islamita Fajr Libya (Amanhecer da Líbia) ter anunciado, no fim de semana, a conquista do aeroporto internacional de Tripoli. Desde a queda do regime de Muammar Kadhafi, em 2011, que o aeroporto estava nas mãos de uma milícia rival, a Zintan.

Mohamed al-Ghariani, porta-voz da milícia islamita reconheceu que os islamitas sofreram um ataque aéreo que provocou dez mortos entre os seus combatentes. “Os Emirados e o Egito estão envolvidos nessa agressão”, disse.

Dois Parlamentos e dois Governos

À instabilidade das ruas soma-se o caos político. Segunda-feira, o Congresso Geral Nacional – o Parlamento eleito em 2012 (onde os islamitas tinham voz forte) e que foi entretanto dissolvido – voltou a reuniu-se e escolheu um primeiro-ministro, Omar al-Hasi, apoiado pelos islamitas. 

Isto coloca a Líbia com duas lideranças e duas assembleias, cada qual apoiada por diferentes fações armadas. Em junho passado, tinha sido eleito um novo Parlamento, a Casa dos Representantes (dominada por liberais e federalistas), cuja legitimidade os islamitas não reconhecem. 

A Casa reúne na cidade de Tobruk (leste), longe das confusões em Tripoli e Bengasi. “A Casa dos Representantes é o único órgão legítimo na Líbia”, reagiu o primeiro-ministro Abdullah al-Thinni, um dos dois chefes de Governo líbios.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de agosto de 2014. Pode ser consultado aqui

A hora do Curdistão

Os curdos são o maior povo sem Estado. A destruição do Iraque reacende o sonho da independência

Combatentes peshmergas espetam no solo a bandeira do Curdistão ERFAN.KURDI / WIKIMEDIA COMMONS

No Iraque, são os curdos que estão na linha da frente do combate aos radicais islâmicos. Esta semana, o Governo alemão disse estar pronto para lhes fornecer armas — diretamente e sem passar pelas autoridades de Bagdade, enfraquecidas pela incapacidade em conter a ameaça jihadista. A mesma intenção já tinha sido expressa por franceses, britânicos, italianos e espanhóis. Os Estados Unidos já estão a fornecer armas aos curdos à revelia de Bagdade. A manobra é politicamente sensível: confere estatuto aos curdos, que sonham há gerações com a criação de um Estado que os coloque em pé de igualdade com qualquer outro país.

Osamah Mohammed, um curdo de 29 anos, sente que um Curdistão independente está mais próximo do que nunca. “Há uns anos, os políticos curdos falavam da marginalização do nosso povo e não eram escutados. Na Casa Branca, ninguém estava interessado em receber os nosso líderes”, diz ao Expresso, em entrevista telefónica a partir do Curdistão iraquiano. “Agora, todos estão interessados. Os ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos e da Alemanha vieram cá desenvolver contactos diretos. O Curdistão está muito próximo da independência. E já é tempo!”

A região curda iraquiana (as províncias de Duhok, Erbil e Suleimaniah) goza de autonomia limitada desde 1970. Mas para os curdos (cerca de 15% dos iraquianos), esse estatuto especial não os tem poupado a problemas. “Quando o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL, entretanto batizado Estado Islâmico) tomou Mossul, a 10 de junho, o exército iraquiano fugiu e não protegeu os curdos”, recorda Osamah. “Mesmo agora, há centenas de milhares de pessoas em fuga à violência extremista e as for- ças iraquianas não estão lá. Desde o estabelecimento do Iraque como um Estado moderno (o mandato britânico terminou em 1932) que os curdos enfrentam a opressão e sofrem campanhas genocidas. É só recordar o que aconteceu em 1988, aqui, onde eu moro…”

Osamah vive em Halabja onde, já na reta final da guerra Irão-Iraque (1980-1988), cerca de 5000 pessoas foram mortas num único dia (16 de março), durante um ataque com armas químicas ordenado por Saddam Hussein. O regime tinha em curso a operação Anfal, que consistia em ataques sistemáticos contra populações não-árabes: curdos, assírios, shabaks, turcomenos, iazidis, judeus e mandeus. Hoje, para os curdos, a invasão do Iraque de 2003 — que depôs Saddam — foi uma guerra de “libertação”.

À espera do referendo

O desconforto curdo em relação aos restantes iraquianos assenta numa identidade cultural distinta. Os curdos são muçulmanos (de credo maioritariamente sunita), mas não são árabes e têm uma língua própria, de raiz indo-europeia. “Sentimos que não fazemos parte do Iraque”, continua Osamah. “Se continuarmos a integrar o país, os problemas prosseguirão. É o que está a acontecer agora. Há forças do EIIL a atacar o povo curdo a propósito de um problema que não é nosso. A maioria dos combatentes do EIIL é árabe e estão a lutar em nome de um Estado islâmico, que é algo em que os curdos nunca pensaram. Nunca tivemos problemas religiosos, temos um problema étnico com o resto do Iraque, que está a piorar.”

Em julho, Massoud Barzani, Presidente da região autónoma do Curdistão desde 2005, solicitou ao Parlamento regional a formação de uma comissão para organizar um referendo à independência. “É uma questão de meses”, garantiu então em entrevista à BBC. “O Iraque está agora efetivamente dividido. Devemos continuar nesta situação trágica que o país está a viver?”, continuou Barzani. “Já afirmei muitas vezes que a independência é um direito natural do povo do Curdistão. E todos estes desenvolvimentos recentes o reafirmam.” Osamah acredita que, se o referendo for avante, “mais de 90%” da população aprovará a independência. Em 2005, num referendo informal, o “sim” obteve 98,98%.

Aproveitando o vácuo ao nível da segurança, o Governo regional curdo, a 11 de julho, enviou peshmergas para a área dos campos petrolíferos de Kirkuk, explorados pela estatal iraquiana North Oil Company. Em teoria, esse valioso recurso permitiria aos curdos acrescentarem mais 500 mil barris à sua produção diária de petróleo. Mas com o Governo iraquiano a não abdicar da negociação de todo o crude, têm escasseado compradores para o petróleo curdo.

Segundo o sítio de análise geopolí- tica Stratfor, os curdos venderam um primeiro carregamento a um israelita e ficaram-se por aqui. Quatro petroleiros andaram “à deriva” em diferentes latitudes — um deles ao largo de Marrocos —, sem que ninguém autorizasse o descarregamento. O “United Kalavryta” dirigiu-se para a costa do Golfo, nos EUA, e fez disparar os alarmes… “Guarda Costeira, Departamento de Estado, Departamento de Seguran- ça Interna e Conselho de Segurança Nacional foram mandados à pressa quando um cargueiro tentou descarregar 100 mil barris de crude curdo”, revela a Stratfor.

Rodeados de tubarões

Nesta estratégia de desafio ao Governo de Bagdade, os curdos têm um aliado improvável — a Turquia, que alberga uma minoria curda com pretensões separatistas e que, até 1991, proibia o uso da língua curda. (Em 2012, Ancara admitiu, pela primeira vez, o ensino do curdo nas escolas, como disciplina de opção.) É através do oleoduto que liga o norte do Iraque ao porto turco de Ceyhan que sai o petróleo curdo.

Ainda assim, não deixou de causar surpresa a visita que o Presidente curdo, Barzani, fez a Ancara, a 16 de julho, onde se encontrou com o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan. “Não espero receber assistência ativa nem oposição”, disse Barzani, referindo-se ao assunto “independência”.

“Estamos rodeados de tubarões”, disse um membro do Governo curdo, citado pelo “Financial Times”, sob anonimato. “A independência significa atarmo-nos à Turquia, o maior tubarão da vizinhança.” A questão curda pressiona quatro países, todos com minorias curdas de milhões de pessoas. Além da Turquia e do Iraque, a Síria continua a sucumbir à guerra civil, com parte do território nas mãos do EIIL. E a leste, o Irão também teme um contágio doméstico de uma eventual emancipação dos curdos.

A Jerusalém dos curdos

Porém, a tensão não se sente apenas nos países limítrofes. Dentro do Iraque, Kirkuk, por exemplo, é um potencial campo de batalha. Se hoje o centro político curdo é Erbil, Kirkuk é a capital desejada. Há quem diga que está para os curdos como Jerusalém está para os palestinianos.

No entanto, além dos curdos, também turcomenos e árabes reclamam o controlo da cidade: os primeiros, alegam direitos históricos e uma maioria populacional no seu centro; os últimos, a quem chamam “os árabes dos dez mil” (chegaram ali no âmbito de um programa de arabização do regime que lhes dava 10 mil dinares de ajuda), querem ficar e ter voz política.

Osamah garante que o novo país seria socialmente estável. “Fiz a universidade em Duhok, onde agora estão refugiadas milhares de pessoas (que fugiram à violência jihadista). Havia iazidis, cristãos, muçulmanos, árabes, curdos, que viviam em comunidade. Nunca senti que algum iazidi ou cristão não fazia parte da nossa sociedade. Tenho cinco amigos que foram afetados pelos recentes acontecimentos em Sinjar (perseguições aos iazidis). Um deles teve de fugir para a montanha. Ligava-lhe todos os dias para saber se estava em segurança. E como eu, também outros amigos muçulmanos.”

CURIOSIDADES

  • Saladino, o grande herói dos árabes que conquistou Jerusalém aos cruzados, era curdo. Nasceu em 1138, em Tikrit, onde também nasceu e está sepultado Saddam Hussein.
  • Após a I Guerra Mundial, o Tratado de Sèvres (1920), celebrado entre Aliados e o derrotado Império Otomano, contemplou a criação de um Curdistão, no atual território turco. De fora ficariam os curdos do Irão, do Iraque (controlado por britânicos) e da Síria (tutelada pela França). Tratados posteriores silenciaram o assunto.
  • Em janeiro de 1946, apoiados pela União Soviética, os curdos do Irão fundaram a República Mahabad, no Nordeste do país. A experiência terminou no fim do ano com a tomada do território por forças iranianas.
  • Os peshmergas (“os que enfrentam a morte”, em curdo) têm brigadas femininas, comandadas por mulheres. Atualmente, estão envolvidas em combates contra os jihadistas. Em 2003, já tinham participado na guerra do Iraque e, no ano anterior, em combates contra o Ansar al-Islam (grupo salafita maioritariamente curdo), em Halabja.

Artigo publicado no Expresso, a 23 de agosto de 2014

Mortes palestinianas aumentam durante o cessar-fogo

Alguns palestinianos não resistiram aos ferimentos, levando o número de mortos na Faixa de Gaza a superar a fasquia dos 2000. Mais de 500 são crianças

Os bombardeamentos israelitas pararam na Faixa de Gaza, mas o número de palestinianos mortos continua a subir. O Ministério palestiniano da Saúde informou, esta segunda-feira, que as vítimas mortais resultantes da última operação israelita no território são já 2016, após o falecimento de alguns feridos internados em hospitais de Gaza, Cairo e Jerusalém.

Entre os mortos, há 541 crianças, 250 mulheres e 96 idosos, detalhou o ministério. A troca de fogo entre as forças de segurança israelitas e o movimento islamita Hamas, que controla o território, provocou também 10.196 feridos.

Por seu lado, as autoridades israelitas confirmaram que durante a operação militar morreram 64 soldados, cinco dos quais na sequência de “fogo amigo”, ou seja, fogo disparado do lado de Israel. Foram mortos ainda três civis.

Presentemente, vigora na Faixa de Gaza uma trégua mediada pelo Egito, que expira à meia-noite (22h em Lisboa) de hoje. Mas prosseguem no Cairo negociações indiretas entre israelitas e palestinianos visando a obtenção de um cessar-fogo duradouro.

O levantamento do bloqueio ao território imposto por Israel e pelo Egito desde 2007 é a principal exigência do Hamas e também o principal obstáculo à celebração de um acordo.

Israel destrói casas de suspeitos

Na Cisjordânia, o outro território palestiniano, a tensão continua latente. Esta segunda-feira, Israel destruiu as casas de dois palestinianos suspeitos de terem participado no rapto e morte de três jovens judeus, em junho, perto de Hebron, crime que desencadeou a intervenção militar em Gaza. Ambos – Amir Abu Eisha e Husam al-Qawasmi – continuam a monte.

Segundo a agência palestiniana Ma’an, as forças israelitas chegaram durante a noite de domingo, ordenaram às famílias que abandonassem as casas, artilharam-nas com explosivos e detonaram-nas.

Esta é uma tática usada por Israel contra suspeitos de participação em atos terroristas, contestada por organizações de defesa dos Direitos Humanos que a consideram uma forma de “punição coletiva”, que castiga populações inocentes.

A casa de Marwan Qawasmi, um terceiro suspeito, foi selada com betão. Este está detido em Israel desde julho, acusado de ter ordenado aos outros dois o rapto dos três jovens judeus.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de agosto de 2014. Pode ser consultado aqui