A desagregação do Iraque e da Síria beneficia da rivalidade histórica entre iranianos e sauditas. O Líbano pode ser a próxima batalha

Os focos de incêndio não param de deflagrar no Médio Oriente. A redefinição das fronteiras ditadas pela I Guerra Mundial parece mais próxima do que nunca. Síria e Iraque são hoje uma manta de retalhos, onde os jihadistas do Estado Islâmico avançam sem oposição à altura. Na quarta-feira, conquistaram às forças sírias o posto fronteiriço de Quneitra, nos Montes Golã, e fizeram reféns 43 capacetes azuis das ilhas Fiji. Estão, pois, às portas de Israel.
Na terça-feira, os EUA iniciaram voos de reconhecimento sobre a Síria, visto como uma medida prévia à possível extensão dos bombardeamentos que já estão a realizar sobre posições jihadistas no norte do Iraque. “Ainda não temos uma estratégia”, para combater os jihadistas, admitiu Barack Obama na quinta-feira.
Na base desta ‘descida aos infernos’ de Síria e Iraque está, em grande parte, a histórica disputa entre Arábia Saudita e Irão pela supremacia na região. Os dois gigantes personificam as grandes rivalidades religiosas e culturais que caracterizam — e fragmentam — a região: a Arábia Saudita é um país árabe sunita; o Irão é persa e professa o ramo xiita do Islão.
À semelhança da Guerra Fria que opôs EUA e URSS durante mais de 40 anos, Riade e Teerão travam, hoje, ‘guerras por procuração’, acicatando divisões sectárias para expandir a sua influência. Isso acontece na Síria, no Líbano e no Iraque, este último palco de uma disputa sangrenta, nos últimos dez anos, entre sunitas e xiitas.
Na terça-feira, o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão, Hossein Amir-Abdollahian, deslocou-se a Jeddah para discutir com o homólogo saudita, o príncipe Saud Al-Faisal, o “vespeiro” iraquiano. Foi a visita bilateral mais importante desde a eleição do Presidente Hassan Rohani, há um ano. Os países não estão de relações cortadas, mas o diálogo é escasso, envolvidos que estão numa guerra de “soma zero” — o ganho de um representa a perda do outro — da qual apenas um pode sair vencedor.
Exportar ideologias
A desconfiança entre os dois países agravou-se com a Revolução Islâmica no Irão, em 1979, que fez coincidir, no poder, as ambições políticas persas e o zelo religioso xiita.
Um dos pilares do regime dos ayatollahs é a exportação da revolução que, hoje, passa pela preservação do chamado ‘arco xiita’ — Iraque (os xiitas estão no poder), Síria (os alauitas de Bashar al-Assad são xiitas) e Hezbollah (“Partido de Deus”, milícia xiita que participa no Governo do Líbano). Fontes do Hezbollah afirmaram, esta semana, ao sítio “Al-Monitor” que já identificaram dois prováveis campos de batalha na guerra que contam travar com o Estado Islâmico: o vale de Bekaa e a área de Tripoli, ambos no norte do Líbano.
A estratégia internacionalista consta igualmente da agenda da Arábia Saudita, também ela empenhada em divulgar a doutrina waabita (fundamentalista, que defende o regresso aos princípios básicos do Islão), para o que afeta quantias milionárias de petrodólares, seja para apoiar fações políticas seja para financiar mesquitas. Em 2008, Mohammed Maghraoui, um clérigo salafita de Marraquexe emitiu um decreto (fatwa) autorizando homens a casar com meninas de nove anos. Visado pela justiça marroquina, exilou-se na Arábia Saudita, que o financiava.
À SEMELHANÇA DA GUERRA FRIA ENTRE AMERICANOS E SOVIÉTICOS, IRÃO E ARÁBIA SAUDITA TRAVAM ‘GUERRAS POR PROCURAÇÃO’
Esta disputa geopolítica põe frente a frente os dois maiores e mais ricos países do Médio Oriente, situados nas margens do Golfo — Pérsico para os iranianos, Arábico para os sauditas —, por onde é transportado um quinto do petróleo consumido em todo o mundo. Na margem ocidental desse curso, os sauditas controlam a Península Arábica com rédea curta, exercendo uma influência quase absoluta sobre as outras petromonarquias (Kuwait, Emirados, Bahrain, Qatar e Omã).
Quando a primavera árabe atingiu o Bahrain — regime sunita e população maioritariamente xiita —, tropas sauditas cruzaram a fronteira em socorro dos Al-Khalifa. Nos países onde os xiitas são minoritários, como na Arábia Saudita, Riade vê-os como uma ‘quinta coluna’ ao serviço de Teerão.
No Irão, a minoria árabe também luta pela vida. Em janeiro, foi enforcado o poeta Hashem Shaabani, 32 anos. Pertencia à organização cultural “Al-Hiwar” (diálogo), gerida pela minoria árabe ahwazi e ilegalizada pelo regime iraniano.
IRÃO
IDENTIDADE
A República Islâmica do Irão é um Estado persa, cuja população é muçulmana xiita. O primeiro império persa remonta ao século VI a.C., muito antes do advento do Islão (século VII).
LIDERANÇA
A pirâmide do poder é encabeçada pelo ayatollah Ali Khamenei, de 75 anos. Ayatollah é uma palavra persa que significa “sinal de Deus”.
IRAQUE
A invasão dos EUA (2003) depôs Saddam Hussein (que governou apoiado na minoria sunita) e catapultou os xiitas para o poder. O Irão passou a ter um poderoso aliado árabe, com quem partilha uma fronteira de 1500 km.
SÍRIA
Combatentes do Hezbollah (xiita libanês apoiado pelo Irão) lutaram na Síria ao lado das forças leais ao regime alauita de Bashar al-Assad (os alauitas são xiitas). Uma demonstração da dinâmica do ‘arco xiita’.
PRIMAVERA ÁRABE
O líder supremo Ali Khamenei comparou os protestos pró-democracia no mundo árabe ao “despertar islâmico” que significou a revolução iraniana de 1979. Mas dois anos antes, quando o Irão foi palco de manifestações semelhantes, Teerão reprimiu. Mir-Hussein Moussavi, um dos líderes da revolução verde, continua em prisão domiciliária.
ISRAEL-PALESTINA
Israel acusa o Irão de apoiar, logística e financeiramente, o movimento islamita Hamas, que controla a Faixa de Gaza, como acontece com outro grande inimigo israelita, o libanês Hezbollah. Israel sente-se ameaçado pela ambição nuclear iraniana, sobretudo desde que o ex-Presidente Mahmoud Ahmadinejad disse que Israel devia ser “varrido do mapa”.
NUCLEAR
Teerão diz que quer ter capacidade nuclear para produzir energia, mas sobram desconfianças. “Todas as sanções impostas ao Irão a propósito das suas atividades nucleares deverão ser levantadas em troca da nossa ajuda no Iraque”, terá dito o ministro dos Negócios Estrangeiros Javad Zarif, citado na semana passada pela agência iraniana IRNA. Teerão disse que foi mal interpretado.
TERRORISMO
Após o 11 de setembro, George W. Bush inscreveu o Irão no ‘eixo do mal’ que apoia o terrorismo. Por Guantánamo passaram três iranianos. Em 2011, os EUA implicaram Teerão num plano para matar o embaixador saudita em solo americano.
ARÁBIA SAUDITA
IDENTIDADE
O Reino da Arábia Saudita é árabe e professa o ramo sunita do Islão. Sobre o fundo verde da sua bandeira, lê-se a “shahada”, a profissão de fé muçulmana: “Não há outro deus senão Alá e Maomé é o seu mensageiro”.
LIDERANÇA
O reino é o berço do Islão. O monarca — atualmente Abdullah, de 90 anos — é, por inerência de cargo, o “guardião das duas mesquitas sagradas”, em Meca e Medina.
IRAQUE
As preocupações sauditas começaram com a guerra de George W. Bush que abriu as portas do poder em Bagdade aos xiitas. Riade partilha com as forças extremistas e com a Al-Qaeda uma afinidade ideológica (sunita) e o interesse em acabar com o domínio xiita.
SÍRIA
Durante a guerra civil, a Arábia Saudita tornou-se o maior fornecedor de armas aos rebeldes. Em novembro de 2013, o Presidente sírio acusou Riade de “liderar a maior operação de sabotagem direta contra todo o mundo árabe”.
PRIMAVERA ÁRABE
A Arábia Saudita adotou uma estratégia de tolerância zero em relação aos protestos pró-democracia na Península Arábica. Enviou tropas para o Bahrain em apoio do regime sunita e envolveu-se nas negociações de transferência de poder no Iémen.
ISRAEL-PALESTINA
Em 2002, partiu de Riade uma das mais credíveis iniciativas de paz para o conflito israelo-palestiniano. Elaborada pelo rei Abdullah (então príncipe herdeiro) oferecia o reconhecimento de todos os países árabes em relação ao Estado de Israel se este recuasse até às fronteiras anteriores à guerra de 1967.
NUCLEAR
A Arábia Saudita não acredita no discurso pacifista de Teerão e considera que o nuclear será usado em armamento. Riade já fez saber que se os iranianos continuarem com o programa, os sauditas sentir-se-ão pressionados a desenvolver o nuclear também.
TERRORISMO
Quinze dos 19 piratas do ar do 11 de setembro eram sauditas, tal como Osama bin Laden. Entre os detidos em Guantánamo, suspeitos de atividades terroristas, a nacionalidade saudita é a segunda mais representada, só superada pela afegã. O reino reconhece ter um problema interno. Na terça-feira, um tribunal local condenou 18 pessoas (seis sauditas) a penas de prisão por planearem ataques terroristas no reino.
Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de agosto de 2014



