Com um terço do território iraquiano controlado pelos extremistas islâmicos, a classe política em Bagdade não dá sinais de entendimento
Os iraquianos estão encurralados entre o perigo islamita e… a teimosia dos políticos. Oriundo da comunidade xiita (como a maioria dos iraquianos), o primeiro-ministro Nuri al-Maliki recusa abandonar o cargo, como pedem adversários internos e a comunidade internacional. O seu afastamento, dizem, viabilizaria a formação de um Governo mais inclusivo e representativo das várias sensibilidades étnico-religiosas iraquianas. E fortaleceria o combate aos extremistas do Estado Islâmico (ex-Estado Islâmico do Iraque e do Levante), que ameaça a unidade do país.
Esta segunda-feira à tarde, o Presidente iraquiano incumbiu o vice-presidente do Parlamento, Haider al-Abadi, de formar um novo Governo. “O país está agora nas suas mãos”, disse-lhe o chefe de Estado Fouad Masoum. Abadi, que tem agora 30 dias para formar governo, é xiita como Nuri al-Maliki e pertence ao mesmo partido político, mas não é certo que o atual primeiro-ministro aceite a escolha e abdique de lutar por um terceiro mandato.
Domingo, por volta da meia-noite, Maliki surgiu determinado nas televisões, acusando o Presidente iraquiano, um curdo (eleito pelo Parlamento a 24 de julho último), de fazer arrastar o processo de nomeação de um primeiro-ministro. Maliki ameaçou mesmo levar Masoum a tribunal por não cumprir a Constituição e não convidar o líder da formação política mais votada nas eleições (ou seja, Maliki) a formar Governo.
Maliki tem a seu favor a legitimidade do voto. Nas eleições de 30 de abril, a sua coligação política foi a mais votada (elegeu 94 deputados em 328 possíveis). Porém, o seu nome não é consensual. É acusado de defender uma agenda sectária, hostilizando deliberadamente a minoria sunita (em que se apoiou Saddam Hussein). Descontentes com o poder central, muitos sunitas “vingam-se” dando apoio ao Estado Islâmico, que controla um terço do Iraque (cinco vezes maior do que Portugal) e parte importante da vizinha Síria.
Tanques nas ruas, pontes encerradas
Esta segunda-feira, vários sites noticiosos deram conta de um forte aumento do dispositivo de segurança na região de Bagdade, com mais milícias xiitas e forças leais ao chefe de Governo nas ruas e arredores da capital. Este aparato é atribuído à vontade de Maliki demonstrar influência.
“Nuri al-Maliki recusa demitir-se. Agora, ele mobilizou não apenas forças de segurança que lhe são leais, mas também unidades do exército que colocaram tanques nas ruas”, comentou à CNN o analista militar Rick Francona. “Algumas pontes foram encerradas. Parece que ele está a tentar bloquear a cidade numa espécie de confronto com o Presidente. Não é um bom presságio.”
Maliki, que é primeiro-ministro desde 2006 (tinha a intervenção americana no Iraque começado há três anos), parece apostado na fuga para a frente, consciente de que um novo mandato parece cada vez mais distante. A aliança política que lidera – Estado de Direito – foi fortemente pressionada para lhe retirar o apoio e indicar outro nome para a chefia do Governo – o que aconteceu esta segunda-feira de tarde.
E até dos Estados Unidos Maliki perdeu o apoio. “O processo de formação do Governo é crítico para a manutenção da estabilidade e calma no Iraque”, afirmou esta segunda-feira o secretário de Estado norte-americano, John Kerry. “Temos esperança de que Maliki não vá agitar essas águas.”
A hora dos curdos
Os Estados Unidos têm em curso bombardeamentos aéreos contra alvos do Estado Islâmico, no norte do Iraque, e o Departamento de Estado norte-americano anunciou esta segunda-feira o fornecimento direto de armas aos curdos (até agora, esse apoio era feito através de Bagdade). Notícias dão conta de que os peshmerga (forças curdas) estão prestes a lançar uma contraofensiva para reconquistar território ao grupo jihadista.
“Os bombardeamentos dos EUA fortaleceram a moral dos peshmerga”, disse um assessor de um comandante peshmerga, que pediu anonimato, citado pelo sítio “Al Monitor”. “Os peshmerga estão agora à espera de ordem para atacar posições do Estado Islâmico e avançar. Estão à espera da hora H.”
Segundo o Comando Central dos EUA (CentCom), os bombardeamentos com caças e drones prosseguiram no domingo em defesa das posições curdas, perto de Irbil. Um C-17 e três C-130 procederam, também, ao quarto lançamento de água e comida sobre a Montanha de Sinjar, para onde fugiram milhares de iraquianos da minoria yazidi, após verem-se cercados pelos jihadistas. Até ao momento, os EUA já distribuíram mais de 74 mil refeições e 75 mil litros de água potável.
O ministro iraquiano dos Direitos Humanos confirmou no domingo a execução de pelo menos 500 yazidis às mãos dos combatentes do Estado Islâmico, após a entrada dos jihadistas em Sinjar. Mohammed Shia al-Sudani esclareceu que algumas pessoas, incluindo mulheres e crianças, foram enterradas vivas e que cerca de 300 mulheres foram feitas escravas. “Temos provas conclusivas obtidas de sobreviventes yazidis, bem como fotos dos sítios dos crimes que não deixam margem para dúvidas.”
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 11 de agosto de 2014. Pode ser consultado aqui