Os curdos são o maior povo sem Estado. A destruição do Iraque reacende o sonho da independência

No Iraque, são os curdos que estão na linha da frente do combate aos radicais islâmicos. Esta semana, o Governo alemão disse estar pronto para lhes fornecer armas — diretamente e sem passar pelas autoridades de Bagdade, enfraquecidas pela incapacidade em conter a ameaça jihadista. A mesma intenção já tinha sido expressa por franceses, britânicos, italianos e espanhóis. Os Estados Unidos já estão a fornecer armas aos curdos à revelia de Bagdade. A manobra é politicamente sensível: confere estatuto aos curdos, que sonham há gerações com a criação de um Estado que os coloque em pé de igualdade com qualquer outro país.
Osamah Mohammed, um curdo de 29 anos, sente que um Curdistão independente está mais próximo do que nunca. “Há uns anos, os políticos curdos falavam da marginalização do nosso povo e não eram escutados. Na Casa Branca, ninguém estava interessado em receber os nosso líderes”, diz ao Expresso, em entrevista telefónica a partir do Curdistão iraquiano. “Agora, todos estão interessados. Os ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos e da Alemanha vieram cá desenvolver contactos diretos. O Curdistão está muito próximo da independência. E já é tempo!”
A região curda iraquiana (as províncias de Duhok, Erbil e Suleimaniah) goza de autonomia limitada desde 1970. Mas para os curdos (cerca de 15% dos iraquianos), esse estatuto especial não os tem poupado a problemas. “Quando o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL, entretanto batizado Estado Islâmico) tomou Mossul, a 10 de junho, o exército iraquiano fugiu e não protegeu os curdos”, recorda Osamah. “Mesmo agora, há centenas de milhares de pessoas em fuga à violência extremista e as for- ças iraquianas não estão lá. Desde o estabelecimento do Iraque como um Estado moderno (o mandato britânico terminou em 1932) que os curdos enfrentam a opressão e sofrem campanhas genocidas. É só recordar o que aconteceu em 1988, aqui, onde eu moro…”
Osamah vive em Halabja onde, já na reta final da guerra Irão-Iraque (1980-1988), cerca de 5000 pessoas foram mortas num único dia (16 de março), durante um ataque com armas químicas ordenado por Saddam Hussein. O regime tinha em curso a operação Anfal, que consistia em ataques sistemáticos contra populações não-árabes: curdos, assírios, shabaks, turcomenos, iazidis, judeus e mandeus. Hoje, para os curdos, a invasão do Iraque de 2003 — que depôs Saddam — foi uma guerra de “libertação”.
À espera do referendo
O desconforto curdo em relação aos restantes iraquianos assenta numa identidade cultural distinta. Os curdos são muçulmanos (de credo maioritariamente sunita), mas não são árabes e têm uma língua própria, de raiz indo-europeia. “Sentimos que não fazemos parte do Iraque”, continua Osamah. “Se continuarmos a integrar o país, os problemas prosseguirão. É o que está a acontecer agora. Há forças do EIIL a atacar o povo curdo a propósito de um problema que não é nosso. A maioria dos combatentes do EIIL é árabe e estão a lutar em nome de um Estado islâmico, que é algo em que os curdos nunca pensaram. Nunca tivemos problemas religiosos, temos um problema étnico com o resto do Iraque, que está a piorar.”
Em julho, Massoud Barzani, Presidente da região autónoma do Curdistão desde 2005, solicitou ao Parlamento regional a formação de uma comissão para organizar um referendo à independência. “É uma questão de meses”, garantiu então em entrevista à BBC. “O Iraque está agora efetivamente dividido. Devemos continuar nesta situação trágica que o país está a viver?”, continuou Barzani. “Já afirmei muitas vezes que a independência é um direito natural do povo do Curdistão. E todos estes desenvolvimentos recentes o reafirmam.” Osamah acredita que, se o referendo for avante, “mais de 90%” da população aprovará a independência. Em 2005, num referendo informal, o “sim” obteve 98,98%.
Aproveitando o vácuo ao nível da segurança, o Governo regional curdo, a 11 de julho, enviou peshmergas para a área dos campos petrolíferos de Kirkuk, explorados pela estatal iraquiana North Oil Company. Em teoria, esse valioso recurso permitiria aos curdos acrescentarem mais 500 mil barris à sua produção diária de petróleo. Mas com o Governo iraquiano a não abdicar da negociação de todo o crude, têm escasseado compradores para o petróleo curdo.
Segundo o sítio de análise geopolí- tica Stratfor, os curdos venderam um primeiro carregamento a um israelita e ficaram-se por aqui. Quatro petroleiros andaram “à deriva” em diferentes latitudes — um deles ao largo de Marrocos —, sem que ninguém autorizasse o descarregamento. O “United Kalavryta” dirigiu-se para a costa do Golfo, nos EUA, e fez disparar os alarmes… “Guarda Costeira, Departamento de Estado, Departamento de Seguran- ça Interna e Conselho de Segurança Nacional foram mandados à pressa quando um cargueiro tentou descarregar 100 mil barris de crude curdo”, revela a Stratfor.
Rodeados de tubarões
Nesta estratégia de desafio ao Governo de Bagdade, os curdos têm um aliado improvável — a Turquia, que alberga uma minoria curda com pretensões separatistas e que, até 1991, proibia o uso da língua curda. (Em 2012, Ancara admitiu, pela primeira vez, o ensino do curdo nas escolas, como disciplina de opção.) É através do oleoduto que liga o norte do Iraque ao porto turco de Ceyhan que sai o petróleo curdo.
Ainda assim, não deixou de causar surpresa a visita que o Presidente curdo, Barzani, fez a Ancara, a 16 de julho, onde se encontrou com o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan. “Não espero receber assistência ativa nem oposição”, disse Barzani, referindo-se ao assunto “independência”.
“Estamos rodeados de tubarões”, disse um membro do Governo curdo, citado pelo “Financial Times”, sob anonimato. “A independência significa atarmo-nos à Turquia, o maior tubarão da vizinhança.” A questão curda pressiona quatro países, todos com minorias curdas de milhões de pessoas. Além da Turquia e do Iraque, a Síria continua a sucumbir à guerra civil, com parte do território nas mãos do EIIL. E a leste, o Irão também teme um contágio doméstico de uma eventual emancipação dos curdos.
A Jerusalém dos curdos
Porém, a tensão não se sente apenas nos países limítrofes. Dentro do Iraque, Kirkuk, por exemplo, é um potencial campo de batalha. Se hoje o centro político curdo é Erbil, Kirkuk é a capital desejada. Há quem diga que está para os curdos como Jerusalém está para os palestinianos.
No entanto, além dos curdos, também turcomenos e árabes reclamam o controlo da cidade: os primeiros, alegam direitos históricos e uma maioria populacional no seu centro; os últimos, a quem chamam “os árabes dos dez mil” (chegaram ali no âmbito de um programa de arabização do regime que lhes dava 10 mil dinares de ajuda), querem ficar e ter voz política.
Osamah garante que o novo país seria socialmente estável. “Fiz a universidade em Duhok, onde agora estão refugiadas milhares de pessoas (que fugiram à violência jihadista). Havia iazidis, cristãos, muçulmanos, árabes, curdos, que viviam em comunidade. Nunca senti que algum iazidi ou cristão não fazia parte da nossa sociedade. Tenho cinco amigos que foram afetados pelos recentes acontecimentos em Sinjar (perseguições aos iazidis). Um deles teve de fugir para a montanha. Ligava-lhe todos os dias para saber se estava em segurança. E como eu, também outros amigos muçulmanos.”
CURIOSIDADES
- Saladino, o grande herói dos árabes que conquistou Jerusalém aos cruzados, era curdo. Nasceu em 1138, em Tikrit, onde também nasceu e está sepultado Saddam Hussein.
- Após a I Guerra Mundial, o Tratado de Sèvres (1920), celebrado entre Aliados e o derrotado Império Otomano, contemplou a criação de um Curdistão, no atual território turco. De fora ficariam os curdos do Irão, do Iraque (controlado por britânicos) e da Síria (tutelada pela França). Tratados posteriores silenciaram o assunto.
- Em janeiro de 1946, apoiados pela União Soviética, os curdos do Irão fundaram a República Mahabad, no Nordeste do país. A experiência terminou no fim do ano com a tomada do território por forças iranianas.
- Os peshmergas (“os que enfrentam a morte”, em curdo) têm brigadas femininas, comandadas por mulheres. Atualmente, estão envolvidas em combates contra os jihadistas. Em 2003, já tinham participado na guerra do Iraque e, no ano anterior, em combates contra o Ansar al-Islam (grupo salafita maioritariamente curdo), em Halabja.
Artigo publicado no “Expresso”, a 23 de agosto de 2014
