“Leva-me para o teu país, seja onde for”

Milhares de cristãos iraquianos fugiram de casa com medo de serem mortos pelos extremistas islâmicos. Uma espanhola descreve ao Expresso a sua visita a centros onde estão estes refugiados, no norte do Iraque. “Um bispo disse-nos que se nada não for feito para mudar a situação, estão a escrever-se as últimas linhas da história do cristianismo no Iraque”

As igrejas estão transformadas em casas sobrelotadas, os jardins são albergues a céu aberto e, na via pública, há espaços repletos de tendas. Erbil, no norte do Iraque, é hoje uma montra do desespero de milhares de cristãos, forçados a partir de um dia para o outro quando extremistas islâmicos lhes entraram aldeia dentro.

“Durante o dia, eles estão tranquilos, mas a situação é fantasmagórica”, conta ao Expresso Maria Lozano, vice-diretora da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), regressada de uma visita à região. “O mais importante para estas pessoas é terem um teto sobre a cabeça. Anqawa tornou-se numa enorme sala de espera. Eles perguntam: ‘O que se vai passar connosco?’”

Anqawa é o bairro cristão da cidade de Erbil (a capital do Curdistão iraquiano). Ali estão refugiados cerca de 70 mil cristãos, fugidos de Qaraqosh — cidade de maioria cristã e sede do Arcebispado de Mossul — após a chegada das forças jihadistas, na noite de 6 para 7 de agosto. “Estão distribuídos por 22 centros de ajuda: colégios, edifícios em construção, pequenos ginásios, escolas, salões paroquiais, jardins… Na catedral vivem umas 700 famílias, o jardim está cheio. E com temperaturas a rondar os 44 graus, tudo se torna mais difícil. Quem está em jardins ou parques tenta agrupar-se como pode em lugares onde haja um pouco de sombra.”

A vida ficou, subitamente, virada do avesso para quem teve de fugir, mas também para quem se dispôs a estender a mão aos refugiados. Aradin, um pequeno povoado da região de Erbil onde viviam 50 famílias cristãs, abriu as portas a 250 outras… “As pessoas fazem tudo para ajudar os refugiados, mas isto tem um grande impacto nas comunidades”, explica Maria Lozano.

Mais a norte, em Duhok, está um outro grande grupo de cristãos, fugidos de Mossul, após a conquista desta cidade pelos jihadistas, a 10 de junho. “Ameaçaram que lhes cortavam a cabeça se não se convertessem ao Islão ou não pagassem o imposto religioso. Estava claro para os cristãos que mesmo que pagassem o imposto, outras cobranças se seguiriam a quem mostrasse ter dinheiro.”

Maria Lozano estima que chegaram a Duhok cerca de 60 mil cristãos. “Ali estão mais distribuídos, em casas de familiares e amigos”. Em 2003, viviam em Mossul 35 mil cristãos, hoje não resta nenhum.

Da boca dos cristãos, Maria não ouviu histórias de que algum tenha sido assassinado por recusar a conversão ao Islão. “As zonas cristãs despovoaram-se rapidamente. Quando começaram a ouvir falar da chegada dos jihadistas, meteram-se nos carros e fugiram, deixando tudo para trás. Como cristã, penso que foi um pequeno milagre terem podido fugir e salvar as suas vidas daquilo que parecia ser um massacre iminente. Quase não houve mortos.”

O desespero de passar pelo mesmo

Os cristãos iraquianos dividem-se na hora de pensar o futuro. Uns querem continuar a viver no Iraque, onde as suas famílias ali vivem há gerações, outros querem abandonar o país. “Alguns pedem-nos ajuda para regressarem a suas casas. Todas as pessoas que viviam em Qaraqosh têm a esperança de aí regressar. Mas dizem que isso só pode acontecer se alguém lhes garantir a segurança. Não querem voltar a passar pelo mesmo sofrimento”, conta Maria Lozano.

“Depois, há um grupo de pessoas que já acumula várias experiências duras, que já teve de partir mais do que uma vez. Esses, que fugiram de Mossul, por exemplo, estão bastante mais desesperados. Têm o trauma de um país que se está a esvair em sangue e dizem que não podem continuar a viver ali. Alguns diziam: ‘Leva-me para o teu país, seja onde for. Não queremos viver mais num país em guerra, onde os direitos dos cristãos não são respeitados ou defendidos’.”

Na semana passada, a bordo do avião que o trouxe da Coreia do Sul (onde cumpriu uma visita de cinco dias), o Papa Francisco — questionado se aprovava os bombardeamentos dos EUA sobre posições jihadistas — defendeu que todos os esforços para travar os militantes islamitas que ameaçam as minorias religiosas iraquianas são lícitos.

“Nestes casos, quando há uma agressão injusta, apenas posso dizer que é lícito parar o agressor injusto. Sublinho o verbo ‘parar’. Não digo ‘bombardear’ ou ‘fazer a guerra’. Com que meios devem ser parados? Isso tem de ser avaliado”, defendeu o chefe da Igreja Católica. O Papa referiu também que a decisão de intervir não deve ser tomada por um país unilateralmente, mas deve ser uma resposta internacional coletiva.

O fim de uma igreja antiga?

Além da recolha de testemunhos, Maria Lozano e dois outros elementos da Fundação AIS que se deslocaram ao Iraque procuraram fazer um diagnóstico das carências diárias dos refugiados cristãos para canalizar ajuda. Desde o início desta crise humanitária, a fundação já enviou 230 mil euros para fazer face, sobretudo, à necessidade de cobertores, alimentos, água potável e medicamentos.

A AIS também contactou bispos, padres, religiosas e voluntários para aferir das suas preocupações. “Um bispo disse-nos que se nada não for feito para mudar a situação, estão a escrever-se as últimas linhas da história do cristianismo no Iraque.”

As estatísticas dizem que em 1991 havia cerca de cinco milhões de cristãos no Iraque; hoje, não serão mais de 300 mil. A Igreja do Iraque é das mais antigas do mundo. Maria recorda que há 1500 anos — ainda antes do advento do Islão — 80% dos iraquianos eram cristãos. “Agora são menos de 1% da população.”

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de agosto de 2014. Pode ser consultado aqui

 

 

 

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