Antes de declarar guerra aos islamitas, Telavive tolerou as suas atividades durante décadas

O Hamas nasceu e cresceu na Faixa de Gaza quando quem lá mandava, desde 1967, era Israel. Venceu as legislativas palestinianas de 2006, menos de um ano depois de Israel retirar tropas e colonos daquele território. Não terá Israel responsabilidade na dimensão que o grupo islamita ganhou?
As raízes do Hamas remontam à Mujama al-Islamiya, uma associação caritativa estabelecida em Gaza, em 1973, pelo clérigo tetraplégico Ahmed Yassin. Foi registada em Israel enquanto tal e, em 1979, reconhecida como “organização”. Foi criada uma ampla rede de escolas, infantários, clínicas e mesquitas. E estabelecida a Universidade Islâmica de Gaza, hoje vista como um viveiro de militância islamita e alvejada pela aviação israelita nas operações “Chumbo Fundido” (2008/2009) e “Barreira de Proteção” (2014).
“Para meu grande pesar, o Hamas é uma criação de Israel”, disse então o israelita Avner Cohen, com mais de 20 anos de serviço em Gaza, como responsável pelos assuntos religiosos, citado pelo “Wall Street Journal”. Também David Hacham, funcionário em Gaza nos anos 80 e 90 como especialista em assuntos árabes, dizia: “Vejo o filme dos acontecimentos e acho que cometemos um erro. Mas à época ninguém pensou nas consequências.”
Em 1984, durante uma rusga, Israel descobriu armas numa
mesquita. Yassin foi preso e condenado a 12 anos de prisão. Foi libertado ao fim de um ano… e regressou à Mujama.
Oficialmente, o Hamas nasceu em 1988 — já a primeira Intifada (revolta) estava na rua — como o ramo palestiniano da Irmandade Muçulmana (fundada no Egito em 1928 sob o lema “O Islão é a solução, o Corão é a nossa Constituição”). No preâmbulo da Carta fundadora, lê-se: “Israel existe e existirá até que o Islão o destrua, como já destruiu outros antes dele”.
Dividir para reinar
Durante a administração de Gaza pelo Governo egípcio, nacionalista e laico, de Gamal Abdel Nasser (o Egito perdeu Gaza para Israel em 1967), o ativismo islamita era reprimido, mas a ocupação israelita tolerou-o. Para Telavive, o Hamas (acrónimo de “Movimento de Resistência Islâmica”) era um contrapeso ao seu verdadeiro inimigo — a Organização de Libertação da Palestina (laica), responsável por ataques terroristas contra Israel, e a sua fação dominante, a Fatah de Yasser Arafat.
“O nosso principal inimigo era a Fatah”, reconheceria Yitzhak Segev, governador israelita de Gaza em 1979, para quem o xeque Yassin “era ainda 100% pacífico”. Segev encontrou-se com ele várias vezes numa altura em que os contactos com membros da OLP — inimigo comum de Israel e Hamas — estavam proibidos.
Foi após os Acordos de Oslo de 1993 que o Hamas se tornou a ‘besta negra’ dos israelitas. Os islamitas recusaram-se a reconhecer o Estado de Israel e a renunciar à violência. Com isso, posicionaram-se na fila da frente da resistência palestiniana ao ocupante judaico e conquistaram popularidade junto de quem, ainda que não concordando com a sua agenda ideológica e religiosa, se identificava com a sua estratégia de confronto.
A mutação do Hamas — de grupo religioso a força de combate — confirmou-se em 1994 quando passou a recorrer a ataques suicidas. Israel recuperou uma tática antiga — os assassínios seletivos — e, em 2004, matou o xeque Yassin, à saída de uma mesquita.
Em meados de 2005, Israel retiraria da Faixa de Gaza — 21 colonatos desmantelados por decisão do primeiro-ministro Ariel Sharon — e em janeiro de 2006, o Hamas vencia, sem contestação, as eleições legislativas. O resultado não foi reconhecido pela Fatah nem pela comunidade internacional que ameaçou cortar a ajuda financeira aos palestinianos.
O capítulo que se abriu de seguida dura até hoje. O Hamas tomou o poder em Gaza pela força e a Palestina, na prática, ficou bicéfala: na Cisjordânia manda a Fatah; o Hamas reina na Faixa de Gaza. Aqui, desde então, Israel já desencadeou três operações militares de grande envergadura. São “duas partes que parecem não conseguir viver uma com a outra”, diz Aaron David Miller, especialista no Centro Woodrow Wilson, de Washington DC. “Ou aparentemente uma sem a outro”.
Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de agosto de 2014
