Acordo no papel, conflito nas ruas

Presidente e rebeldes assinaram um acordo apelando ao fim das hostilidades, que provocaram mais de 100 mortos em três dias, e à formação de um novo Governo. Mas huthis a norte e separatistas a sul fazem temer pela unidade nacional do Iémen

O Governo do Iémen e os rebeldes huthis assinaram, este domingo, um acordo de paz visando o fim da crise política e dos confrontos nas ruas que provocaram mais de 100 mortos em três dias.

O documento prevê a formação de um novo Governo de unidade nacional e compromete o Presidente Abd-Rabbu Manasour Hadi, o presidente do Parlamento Yahya al-Rae’I, o enviado especial das Nações Unidas Jamal Binomar e representantes de movimentos e partidos políticos, incluindo o “Ansar Allah”, ou seja os huthis (minoria xiita).

Os huthis têm estado no centro da crise e, apesar do acordo, continuam a ocupar edifícios governamentais, incluindo o Ministério da Defesa, o quartel-general do exército, o Parlamento, o Banco Central e a rádio e televisão nacionais, todos tomados no domingo.

Milhares de huthis iniciaram protestos a 18 de agosto, sitiando ministérios e bloqueando a rua de acesso ao principal aeroporto da capital. Para além da deposição do Governo, exigem a reposição dos subsídios aos combustíveis (que o Governo cortou) e mais representatividade política, no âmbito da Conferência de Diálogo Nacional — o processo político que se iniciou após a deposição do ditador Ali Abdullah Saleh, no contexto da Primavera Árabe.

Xiitas a norte, separatistas a sul

A rebelião huthi transformou-se numa ação militar após protestos em frente à sede do Governo terem sido violentamente reprimidos, a 9 de setembro. Sábado e domingo, o ministério da Educação suspendeu as aulas nas escolas da capital devido a confrontos entre rebeldes e forças governamentais que desde quinta-feira à noite já provocaram mais de 100 mortos.

Os huthis (“Ansar Allah”) são uma minoria xiita, a quem se atribui ligações ao gigante xiita Irão. Controlam a província de Sa’dah, no norte do Iémen.

O outro grande desafio ao poder central de Sana e à unidade do país é colocado pelo “Ansar al-Shari’a”, um grupo separatista com ligações à Al-Qaeda na Península Arábica — um dos braços mais ativos da organização terrorista —, localizado na região de Abyan (no sul).

Em fevereiro passado, um grupo de trabalho presidido pelo Presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi e constituído por representantes dos principais partidos políticos aprovou a transformação do Iémen numa federação de seis regiões.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de setembro de 2014. Pode ser consultado aqui

A fotografia engana (mas é boa). Este homem não está sozinho no novo Governo iraquiano

Iraquianos formaram um Governo de unidade nacional. E Barack Obama prepara-se para apresentar a estratégia internacional de combate aos jihadistas no Iraque

Haider al-Abadi, o novo primeiro-ministro, durante a sessão parlamentar que aprovou o seu Governo THAIER AL-SUDANI / REUTERS

O Iraque tem finalmente um Governo, mais de quatro meses após as eleições. Em Bagdade, o Parlamento aprovou segunda-feira um executivo liderado pelo xiita Haider al-Abadi, deixando para mais tarde a escolha dos titulares das pastas da Defesa e do Interior.

O novo primeiro-ministro nomeou três vices — um curdo (Hoshyar Zebari), um xiita (Baha Arraji) e um sunita (Saleh al-Mutlak) —, respondendo assim aos apelos internos e internacionais para que formasse uma equipa mais inclusiva e mais representativa da sociedade iraquiana.

A marginalização da minoria sunita tem sido apontada como uma das causas para a grande implantação do Estado Islâmico (EI, igualmente sunita), que a 29 de junho declarou um Califado no Iraque e na Síria e tem espalhado o terror nos territórios que controla.

À espera de Obama

A Casa Branca tem em curso a formação de uma coligação internacional para combater a ameaça jihadista. John Kerry, o chefe da diplomacia norte-americana, está de partida para o Médio Oriente, onde, entre quarta e quinta-feira, tem previstos encontros com os homólogos do Iraque, Egito, Jordânia, Líbano e dos seis países do Golfo (Arábia Saudita, Kuwait, Bahrain, Qatar, Omã e Emirados Árabes Unidos).

Esta quarta-feira, Barack Obama vai apresentar os detalhes dessa estratégia global. Durante o fim de semana, o Presidente norte-americano revelou as grandes fases dessa batalha: “Nos próximos meses, vamos enfraquecer sistematicamente as capacidades [do EI], vamos diminuir o território que eles controlam e, por último, vamos derrotá-los”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de setembro de 2014. Pode ser consultado aqui

Sem lei nem ordem e permeável ao jihadismo

Outrora unidas na luta contra Kadhafi, muitas milícias líbias combatem, hoje, umas contra as outras. O Expresso falou com um líbio apoiante de uma milícia e pediu a um especialista que explique por que razão, quase três anos após a morte de Muammar Kadhafi, a Líbia tarda em estabilizar

Desapareceram onze aviões do Aeroporto Internacional de Tripoli e nos Estados Unidos já há quem recorde que está próximo mais um aniversário do 11 de setembro. “Há uma série de aviões comerciais na Líbia que estão desaparecidos. Nós descobrimos no 11 de Setembro o que pode acontecer com aviões sequestrados”, alertou na semana passada um responsável norte-americano não identificado, citado pelo sítio noticioso “The Washington Free Beacon”.

Os serviços secretos norte-americanos já entregaram ao Governo dos EUA relatórios sobre os aparelhos em falta, referindo a hipótese de poderem ser usados em ataques por alturas do aniversário do 11 de Setembro, que se assinala na próxima quinta-feira.

“Não há aviões no aeroporto que estejam funcionais”, diz ao Expresso o líbio Bassit Habara, 33 anos. “Quando as milícias fugiram do aeroporto queimaram-nos todos.”

A milícia de que Bassit fala é a Zintan que, até 23 de agosto, ocupava o aeroporto da capital líbia. Nesse dia, após confrontos, o controlo mudou de mãos, passando para a milícia Despertar da Líbia, uma coligação de grupos em que se incluem fações tão distintas quanto a Ansar al-Sharia (salafita) e as Brigadas de Misrata, uma das milícias mais poderosas após a revolução contra Kadhafi e que Bassit — natural dessa cidade, onde trabalha num banco — apoia.

Unidos durante a luta contra o ditador líbio — que foi assassinado em outubro de 2011 —, muitos grupos armados lutam hoje uns contra os outros. “Há uma fraca identidade nacional”, explica ao Expresso Manuel Almeida, ex-editor da edição inglesa do jornal árabe “Asharq Al-Awsat”. “Os vários grupos armados que ajudaram a derrubar Kadhafi mantiveram as suas armas e postura agressiva como única via para garantirem os seus interesses e os das suas regiões. Há um conjunto de grupos de interesse que diferem e que chocam a nível social, económico e regional e cujas divisões não se definem apenas pela tribo ou pelo caráter islamista ou não-islamista.”

O que querem então estas milícias? “Não existe um único objetivo ou plano linear”, continua Manuel Almeida. “Na ausência de um poder central forte e principalmente legítimo aos olhos de alguns dos principais grupos e perante o agravar da violência e anarquia, as milícias pretendem, acima de tudo, garantir a sua própria segurança e os seus interesses específicos que podem não passar pela tomada do poder. Além de que o poder na Líbia está tão disperso que o objetivo de o conquistar não parece estar ao alcance de um só grupo.”

Guerrilheiros na piscina

Outra estrutura tomada, recentemente, pela milícia Despertar da Líbia foi um edifício anexo à embaixada dos Estados Unidos em Tripoli, que tinha sido evacuada a 26 de julho. Um vídeo colocado no Youtube mostra homens a saltar de um primeiro andar para uma piscina, em clima de grande animação. Segundo a agência Reuters, pensa-se que façam parte de “uma milícia maioritariamente originária de Misrata”.

Na Líbia, as clivagens entre regiões e o sentimento de pertença tribal de muitos grupos levantam dúvidas sobre o futuro da Líbia como um país unido num território só. “A noção de que as fronteiras formais da Líbia, assim como as do Iraque e da Síria, não correspondem à realidade tribal e étnica é, muitas vezes, referida em debates sobre a possibilidade de se redesenhar essas fronteiras, como uma possível solução para a instabilidade nestes países”, explica Manuel Almeida, especialista em questões do Médio Oriente e Estados falhados.

“No entanto, embora o elemento tribal (e não sectário, pois a esmagadora da população líbia é sunita) seja ainda um fator forte de identidade na Líbia, não me parece que seja o principal elemento que explica as atuais tensões e violência. Existe uma grande clivagem entre islamistas e não-islamistas, que também não explica tudo. A atual crise deve-se principalmente ao vácuo de poder que se sucedeu à queda de Kadhafi. O novo sistema parlamentar revelou-se incapaz, não foi alcançado um consenso político mínimo para uma transição suave e os novos líderes e o pequeno exército líbio não conseguiram assumir o controlo.”

Dois Parlamentos em funções

Três anos e meio após a revolução de 17 de fevereiro, a Líbia tem hoje dois Parlamentos. A 7 de julho de 2012, foi eleito o Congresso Geral Nacional (200 lugares), dominado por fações islamitas, com a tarefa de elaborar uma Constituição, num prazo de 18 meses — o que não aconteceu.

A 25 de junho de 2014, os líbios foram novamente a votos, para eleger, desta vez, os 200 deputados à Casa dos Representantes. Os candidatos eram independentes e não personalidades inscritas em listas partidárias. Num ato eleitoral pouco participado (a afluência ficou-se pelos 10%), venceram correntes liberais e nacionalistas.

A confusão política instalou-se após o general Khalifa Haftar — dissidente do regime de Kadhafi e regressado do exílio nos EUA após a revolução — ter desencadeado, em maio, na região de Bengasi, uma ofensiva militar contra forças islamitas. O Parlamento em funções (ou seja, a Casa dos Representantes) apoiou a operação, levando as fações islamitas a pressionaram o Parlamento anterior (ou seja, o Congresso) a retomar funções, o que aconteceu a 25 de agosto. Nem todos os deputados estiveram presentes.

O Congresso trabalha em Tripoli. Para escapar à violência da capital, a Casa dos Representantes reúne-se em Tobruk, junto à fronteira com o Egito. “Um Parlamento em Tobruk?”, questiona Bassit. “Mas Tobruk é a cidade de onde descolam os aviões que estão a bombardear as populações de Bengasi. Como é que esse Parlamento pode ser legal?”

Todas estas cisões têm facilitado a implantação na Líbia de grupos jihadistas — muitos deles expulsos do norte do Mali pela intervenção militar francesa (Operação Serval), desencadeada em janeiro de 2013. Algumas notícias dão também conta que jihadistas líbios que combateram na Síria e no Iraque estão a regressar ao país natal para lutar contra as forças do general Haftar.

Para Manuel Almeida, a Líbia é permeável ao jihadismo por várias razões: “A fraqueza do Estado, a permeabilidade das suas fronteiras, o desemprego, o ambiente de anarquia e violência (que é perfeito para o germinar do extremismo e radicalismo) e ainda o longo historial de atividade jihadista de milhares de líbios no Médio Oriente e na Ásia Central”. No entanto, alerta, “é importante relembrar que os jihadistas e os radicais continuam a ser uma minoria muito pequena”.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 8 de setembro de 2014. Pode ser consultado aqui

Terror com humor se paga

Várias televisões árabes emitem programas de animação gozando com os extremistas do Estado Islâmico e ridicularizando a sua ambição religiosa

A cena passa-se algures no Médio Oriente. Um jihadista entra num táxi e logo começa a reclamar porque o rádio está ligado. Para tentar acalmar o passageiro, o taxista oferece-se para ligar o ar condicionado, provocando ainda mais protestos. Afinal, nos primórdios do Islão, não havia nem rádios nem ar condicionado. O jihadista não abandona o registo e desanca no taxista quando este atende o telemóvel, outro objeto que o Alcorão não contempla.

Farto de aturar o cliente, o taxista entra no jogo e pergunta ao jihadista: “Nos primórdios havia táxis?” A resposta é pronta: “Não! Mil vezes não!” O taxista pontapeia o passageiro para fora da viatura e sugere-lhe que espere que passe um camelo.

Este é um dos sketches produzidos para o “Ktir Salbe Show”, da televisão libanesa, um dos programas que, por todo o Médio Oriente, satiriza com os jihadistas do Estado Islâmico e ridiculariza as suas pretensões religiosas. A 29 de junho, o grupo proclamou um Califado (um sistema de governo liderado por alguém que se reclama ser sucessor do Profeta) em vastas áreas da Síria e do Iraque.

“Esta gente não representa verdadeiramente o Islão. Ao ridicularizá-los, mostramos que estamos contra eles”, refere Nabil Assaf, produtor e argumentista do “Ktir Salbe Show”, à agência Associated Press. “Claro que é um tema sensível, mas esta é uma forma de rejeitarmos o extremismo e mostrarmos que as pessoas não têm medo.”

Rir é o melhor remédio

Num outro episódio, um jovem jihadista, com tiques de trapalhão, deixa cair o lança-roquetes no pé do seu chefe. Composta a situação, olha pela mira e dispara, aparentemente na direção de um posto militar, mas na realidade ao contrário, acertando no chefe. 

Na Síria, apresentadores de programas surgem nos ecrãs disfarçados, fingindo temer retaliações dos jihadistas. No Iraque, um programa na televisão estatal mostra uma grande quantidade de personagens a fugir dos militares iraquianos, incluindo jovens militantes Estado Islâmico e velhos funcionários do regime de Saddam Hussein.

“Estamos todos contra estas organizações terroristas”, diz Alaa al-Majedi, do canal estatal Al-Iraqiya. “A comédia é uma forma de consciencializar.” Para muitas populações, que veem o avanço dos jihadistas como uma ameaça imparável, é também uma forma de afastar receios.

Num outro sketch, um cristão jordano aproxima-se de dois jihadistas que se envolvem numa luta tentando definir qual deles iria matar o “infiel” e, com isso, receber a “bênção”. Aterrorizado, o cristão sofre um ataque cardíaco e morre. Os terroristas ficam devastados. 

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de setembro de 2014. Pode ser consultado aqui

Pode estar em curso a construção do maior colonato judeu dos últimos 30 anos

Política israelita de expansão de colonatos em território palestiniano é considerada ilegal pela União Europeia

Israel anunciou este domingo a expropriação de 400 hectares de terras palestinianas no sul da Cisjordânia. Os terrenos situam-se junto ao pequeno colonato de Gva’ot, próximo de Belém, onde vivem dez famílias. 

“Tanto quanto sabemos, pelo seu alcance, esta declaração não tem precedentes desde a década de 80. E pode mudar dramaticamente a realidade em Gush Etzion [um aglomerado de colonatos a sul de Jerusalém] e na região de Belém”, reagiu a organização não governamental israelita Peace Now (Paz Agora), que pugna pela solução de dois Estados para a resolução do conflito israelo-palestiniano e que tem no escritor Amos Oz um dos seus fundadores.

O departamento do exército israelita que está encarregado da administração civil nos territórios ocupados afirmou que a medida decorre das decisões políticas tomadas após o rapto e morte de três jovens judeus, a 12 de junho, perto de Gush Etzion. 

O Conselho de Colonatos de Etzion saudou o anúncio das autoridades de Telavive. “O objetivo dos assassinos daqueles três jovens era semear o medo entre nós, perturbar o nosso quotidiano e lançar dúvidas sobre o nosso direito à terra”, reagiu em comunicado. “A nossa resposta é o reforço do colonato.”

O diário israelita “Haaretz” informou, porém, que os planos de construção nesta área já estão na agenda israelita desde 2000 e que, no ano passado, o Governo de Telavive convidou à apresentação de propostas de construção de 1000 novas casas naquele local.

Planos antigos

Gva’ot foi fundado em 1984 como uma base militar israelita entre as aldeias palestinianas de Al Jab’a e Nahhalin. Durante a década de 90, os militares foram substituídos por alunos de uma escola religiosa judaica (yeshiva) e, em 1998, o local foi incluído dentro das delimitações oficiais do colonato de Alon Shvut.

Segundo a organização Peace Now, a nova decisão “irá permitir ainda mais a expansão do colonato e é possível que vá unir Gva’ot à Linha Verde”, que oficialmente serve de fronteira entra Israel e a Palestina.

“Este anúncio representa claramente a intenção deliberada de Israel varrer qualquer presença palestiniana e impor voluntariamente uma solução de um Estado”, reagiu Hanan Ashrawi, dirigente histórica da Organização de Libertação da Palestina, entidade que representa o povo palestiniano junto das Nações Unidas.

A política israelita de expansão de colonatos em território palestiniano é considerada ilegal pela União Europeia e um “obstáculo à paz” pelos Estados Unidos. Washington reagiu à decisão de Telavive considerando-a “contraprodutiva”. “Pedimos ao Governo de Israel que reverta a decisão”, reagiu o Departamento de Estados dos EUA.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de setembro de 2014. Pode ser consultado aqui