Outrora unidas na luta contra Kadhafi, muitas milícias líbias combatem, hoje, umas contra as outras. O Expresso falou com um líbio apoiante de uma milícia e pediu a um especialista que explique por que razão, quase três anos após a morte de Muammar Kadhafi, a Líbia tarda em estabilizar

Desapareceram onze aviões do Aeroporto Internacional de Tripoli e nos Estados Unidos já há quem recorde que está próximo mais um aniversário do 11 de setembro. “Há uma série de aviões comerciais na Líbia que estão desaparecidos. Nós descobrimos no 11 de Setembro o que pode acontecer com aviões sequestrados”, alertou na semana passada um responsável norte-americano não identificado, citado pelo sítio noticioso “The Washington Free Beacon”.
Os serviços secretos norte-americanos já entregaram ao Governo dos EUA relatórios sobre os aparelhos em falta, referindo a hipótese de poderem ser usados em ataques por alturas do aniversário do 11 de Setembro, que se assinala na próxima quinta-feira.
“Não há aviões no aeroporto que estejam funcionais”, diz ao Expresso o líbio Bassit Habara, 33 anos. “Quando as milícias fugiram do aeroporto queimaram-nos todos.”
A milícia de que Bassit fala é a Zintan que, até 23 de agosto, ocupava o aeroporto da capital líbia. Nesse dia, após confrontos, o controlo mudou de mãos, passando para a milícia Despertar da Líbia, uma coligação de grupos em que se incluem fações tão distintas quanto a Ansar al-Sharia (salafita) e as Brigadas de Misrata, uma das milícias mais poderosas após a revolução contra Kadhafi e que Bassit — natural dessa cidade, onde trabalha num banco — apoia.
Unidos durante a luta contra o ditador líbio — que foi assassinado em outubro de 2011 —, muitos grupos armados lutam hoje uns contra os outros. “Há uma fraca identidade nacional”, explica ao Expresso Manuel Almeida, ex-editor da edição inglesa do jornal árabe “Asharq Al-Awsat”. “Os vários grupos armados que ajudaram a derrubar Kadhafi mantiveram as suas armas e postura agressiva como única via para garantirem os seus interesses e os das suas regiões. Há um conjunto de grupos de interesse que diferem e que chocam a nível social, económico e regional e cujas divisões não se definem apenas pela tribo ou pelo caráter islamista ou não-islamista.”
O que querem então estas milícias? “Não existe um único objetivo ou plano linear”, continua Manuel Almeida. “Na ausência de um poder central forte e principalmente legítimo aos olhos de alguns dos principais grupos e perante o agravar da violência e anarquia, as milícias pretendem, acima de tudo, garantir a sua própria segurança e os seus interesses específicos que podem não passar pela tomada do poder. Além de que o poder na Líbia está tão disperso que o objetivo de o conquistar não parece estar ao alcance de um só grupo.”
Guerrilheiros na piscina
Outra estrutura tomada, recentemente, pela milícia Despertar da Líbia foi um edifício anexo à embaixada dos Estados Unidos em Tripoli, que tinha sido evacuada a 26 de julho. Um vídeo colocado no Youtube mostra homens a saltar de um primeiro andar para uma piscina, em clima de grande animação. Segundo a agência Reuters, pensa-se que façam parte de “uma milícia maioritariamente originária de Misrata”.
Na Líbia, as clivagens entre regiões e o sentimento de pertença tribal de muitos grupos levantam dúvidas sobre o futuro da Líbia como um país unido num território só. “A noção de que as fronteiras formais da Líbia, assim como as do Iraque e da Síria, não correspondem à realidade tribal e étnica é, muitas vezes, referida em debates sobre a possibilidade de se redesenhar essas fronteiras, como uma possível solução para a instabilidade nestes países”, explica Manuel Almeida, especialista em questões do Médio Oriente e Estados falhados.
“No entanto, embora o elemento tribal (e não sectário, pois a esmagadora da população líbia é sunita) seja ainda um fator forte de identidade na Líbia, não me parece que seja o principal elemento que explica as atuais tensões e violência. Existe uma grande clivagem entre islamistas e não-islamistas, que também não explica tudo. A atual crise deve-se principalmente ao vácuo de poder que se sucedeu à queda de Kadhafi. O novo sistema parlamentar revelou-se incapaz, não foi alcançado um consenso político mínimo para uma transição suave e os novos líderes e o pequeno exército líbio não conseguiram assumir o controlo.”
Dois Parlamentos em funções
Três anos e meio após a revolução de 17 de fevereiro, a Líbia tem hoje dois Parlamentos. A 7 de julho de 2012, foi eleito o Congresso Geral Nacional (200 lugares), dominado por fações islamitas, com a tarefa de elaborar uma Constituição, num prazo de 18 meses — o que não aconteceu.
A 25 de junho de 2014, os líbios foram novamente a votos, para eleger, desta vez, os 200 deputados à Casa dos Representantes. Os candidatos eram independentes e não personalidades inscritas em listas partidárias. Num ato eleitoral pouco participado (a afluência ficou-se pelos 10%), venceram correntes liberais e nacionalistas.
A confusão política instalou-se após o general Khalifa Haftar — dissidente do regime de Kadhafi e regressado do exílio nos EUA após a revolução — ter desencadeado, em maio, na região de Bengasi, uma ofensiva militar contra forças islamitas. O Parlamento em funções (ou seja, a Casa dos Representantes) apoiou a operação, levando as fações islamitas a pressionaram o Parlamento anterior (ou seja, o Congresso) a retomar funções, o que aconteceu a 25 de agosto. Nem todos os deputados estiveram presentes.
O Congresso trabalha em Tripoli. Para escapar à violência da capital, a Casa dos Representantes reúne-se em Tobruk, junto à fronteira com o Egito. “Um Parlamento em Tobruk?”, questiona Bassit. “Mas Tobruk é a cidade de onde descolam os aviões que estão a bombardear as populações de Bengasi. Como é que esse Parlamento pode ser legal?”
Todas estas cisões têm facilitado a implantação na Líbia de grupos jihadistas — muitos deles expulsos do norte do Mali pela intervenção militar francesa (Operação Serval), desencadeada em janeiro de 2013. Algumas notícias dão também conta que jihadistas líbios que combateram na Síria e no Iraque estão a regressar ao país natal para lutar contra as forças do general Haftar.
Para Manuel Almeida, a Líbia é permeável ao jihadismo por várias razões: “A fraqueza do Estado, a permeabilidade das suas fronteiras, o desemprego, o ambiente de anarquia e violência (que é perfeito para o germinar do extremismo e radicalismo) e ainda o longo historial de atividade jihadista de milhares de líbios no Médio Oriente e na Ásia Central”. No entanto, alerta, “é importante relembrar que os jihadistas e os radicais continuam a ser uma minoria muito pequena”.
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 8 de setembro de 2014. Pode ser consultado aqui