Judeus e árabes condenados a entender-se

Nem sempre judeus e palestinianos viveram de costas voltadas. “Dispara, Eu Já Estou Morto”, o mais recente livro da escritora espanhola Julia Navarro, versa o tema. Um “romance de personagens”, como ela o qualifica, passado entre finais do século XIX e meados do século XX, centrado no judeu Samuel Zucker e no árabe Ahmed Ziad e na luta de duas comunidades contra as armadilhas da História

CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

Ruanda, Jugoslávia, Palestina… Quando as personagens começaram a ganhar vida na cabeça de Julia Navarro, a escritora espanhola hesitou sobre em que contexto histórico as situar. “Queria escrever um romance sobre a luta do homem contra as suas circunstâncias. Não elegemos onde nascemos e só essa circunstância já nos marca e determina que tipo de vida vamos ter. Não é o mesmo nascer-se em Portugal ou no Ruanda. Não é o mesmo nascer-se em Jerusalém-Leste ou Jerusalém-Oeste, onde há apenas uns metros de distância mas que significam nascer-se com uma cultura diferente, uma religião diferente e uma forma de ver a vida diferente. Queria escrever sobre como as circunstâncias marcam os homens e como os homens lutam para mudar as circunstâncias. Não sou determinista, acho que as coisas se podem mudar.”

A familiaridade da escritora com a região do Médio Oriente, que visitou várias vezes quando trabalhou como jornalista, desfez-lhe a dúvida. “Viajei pela região, conheci gente de uma e outra comunidade, ouvi muitas histórias e testemunhei outras e tudo isso me deixou marcas. Na hora de construir uma história, todas essas pegadas são importantes.”

“Dispara, Eu Já Estou Morto”, publicado em Portugal pela editora Bertrand, conta a história de duas famílias — a do judeu Samuel Zucker e a do árabe Ahmed Ziad — e de como as vidas de ambas se cruzaram numa época crucial para o desenvolvimento de um conflito que se arrasta até hoje sem fim à vista.

A narrativa começa em finais do século XIX, na Rússia cristã e czarista, onde ser judeu era uma maldição. Perseguido pela polícia política (Okhrana), suspeito de participar em reuniões clandestinas, Samuel — que em criança vira a mãe, a avó e dois irmãos serem assassinados durante perseguições aos judeus (pogroms) — foge do país onde nasceu rumo à Palestina, a Terra Prometida sonhada pelos seus antepassados e que então era uma província do Império Otomano. “Filho, no próximo ano em Jerusalém”, repetira-lhe o pai Isaac, vezes sem conta, antes de morrer, sob tortura, nas masmorras da Okhrana.

Quando o judeu Samuel desembarca no porto de Jaffa, a primeira pessoa que conhece é o palestiniano Ahmed, que ali esperava a chegada do sayyid Aban, o rendeiro da horta que cultivava e onde vivia com a família, para lhe prestar contas. Oriundo de uma família rica, poderosa e instalada em Constantinopla, Aban queixava-se do escasso rendimento que obtinha daquelas terras próximas de Jerusalém e decide vendê-las.

Samuel, que procurava um chão para recomeçar a sua vida, compra a horta que Ahmed trabalhava e que acabara de perder. “Sabes bem que na Palestina alguns judeus estão a construir pequenas quintas”, diz o judeu ao árabe. “É o que faremos aqui, mas respeitando a tua horta.” Durante décadas, os Zuckers e os Ziads desenvolvem sólidos laços e vivem como uma verdadeira família na “Horta da Esperança”, como os judeus a batizam. O natural crescimento das duas famílias e, sobretudo, a contínua chegada de judeus em fuga aos pogroms na Europa, vão enchendo a herdade de personagens, que Julia Navarro vai introduzindo na história.

“Eu não queria escrever um romance de bons e maus”, explica a autora. “Queria contar uma história de gente comum, em que ambas as comunidades expusessem as suas razões. Queria dar um passo atrás, como narradora, e deixar que as personagens resolvessem as coisas por si. Preocupava-me o resultado final, porque toda a gente tem uma opinião sobre o conflito no Médio Oriente…”

A escritora, nascida em Madrid, em 1953, recorda o momento em que essa preocupação se dissipou. O livro estava nas bancas em Espanha havia uma semana e, num encontro num clube de leitura, coincidiram uma judia e um palestiniano. “Pensei que me ia dar um ataque cardíaco… Mas quando ambos, separadamente, me disseram que não tinham nada a apontar-me porque eu tinha mantido uma atitude equidistante e correta relativamente ao problema, nesse momento fiquei tranquila e percebi que tinha cumprido o meu objetivo, que era contar uma pequena história dentro da grande História.”

O romance não ilude os atritos entre as duas comunidades, mas valoriza aquilo que as aproxima em detrimento do que as afasta. E ao faze-lo desconstrói mitos, nomeadamente o de que árabes e judeus são inevitavelmente inimigos. “Muita gente pensa que judeus e árabes têm estado sempre em confronto, o que não é verdade”, defende a escritora. “Puderam viver e tiveram uma convivência razoável durante séculos. Quando os judeus foram expulsos de Espanha, Portugal, França, Inglaterra e de outros países encontraram um sítio novo onde viver em países muçulmanos. Estabeleceram-se comunidades judaicas em Bagdade, Constantinopla, Cairo, Damasco e eram muito importantes. Não havia qualquer problema religioso.”

O livro mostra também como, antes de serem vítimas uns dos outros — porque hoje, efetivamente, há ódio de parte a parte —, palestinianos e judeus foram vítimas da própria História e de decisões políticas tomadas por outros em seu nome e que acabaram por ter um efeito devastador nas vidas dos cidadãos comuns. “Este livro está cheio de política, porque as personagens são filhos do seu tempo. Não se pode compreender o que se passa hoje no Médio Oriente sem ter em conta o que aconteceu durante a I Guerra Mundial e as decisões tomadas pelas potências da época, França e Inglaterra, após a derrota do Império Otomano, de que a Palestina era uma província havia 500 anos”, explica Julia.

Durante o conflito, os britânicos prometeram um lar aos judeus (Declaração Balfour, 1917), cada vez em maior número na Palestina. Simultaneamente, prometeram um grande Estado aos povos árabes, algo em que estes confiaram ser possível sobretudo após o empenho do famoso Lawrence, tenente do exército britânico, ao lado dos exércitos árabes. Com esta ambiguidade, os britânicos ganharam o apoio de ambos na luta contra os turcos e um quebra-cabeças que nunca conseguiram deslindar após ficarem com o mandato da Palestina.

No livro, palestinianos e judeus inquietam-se perante a posição dúbia dos britânicos. “A Inglaterra comprometeu-se com todos os que pudessem servir os seus interesses, que, a curto prazo, passam por ganhar a guerra. Também se comprometeu com os árabes. Poderá cumprir todas as suas promessas?”, interroga-se o judeu Samuel.

“A França quer ser a potência mandatária da Síria e do Líbano. Reclama o Líbano para os cristãos maronitas. Em Paris (conferência de paz de 1919) estão a pressionar Faysal para que aceite o mapa acordado pelos senhores Sykes e Picot em nome dos respetivos governos, o britânico e o francês, mas o príncipe resiste e defende a causa pela qual lutámos: uma nação árabe. Foi por isso que combatemos os turcos”, comenta o árabe Yusuf.

O romance não ilude os atritos entre as duas comunidades, mas valoriza aquilo que as aproxima em detrimento do que as afasta. E ao faze-lo desconstrói mitos, nomeadamente o de que árabes e judeus são inevitavelmente inimigos

A traição dos europeus e as promessas não cumpridas por parte de Londres tiveram eco na “Herdade da Esperança”. Aos poucos, os Zuckers e os Ziads começam a sentir-se pressionados pelos nacionalismos que despontam de parte a parte e que ameaçam a sua sã convivência diária. E começam a sentir-se cada vez mais indefesos. “Há momentos na vida em que a única forma de nos salvarmos é matando ou morrendo”, é um pensamento que partilham à vez.

Julia Navarro define a sua obra — que demorou muitos meses a pensar e três anos a escrever — como “um romance de personagens”. “Sou uma apaixonada pelos escritores russos do século XIX, como Leon Tolstoi e Fiodor Dostoievski, autores que são capazes de mergulhar na alma humana e, ao mesmo tempo, contam uma história dentro de um contexto. As suas personagens são filhos do seu tempo, mas são universais. Aspiro a contar pequenas histórias em que as minhas personagens também são filhos do seu tempo.”

A história de Samuel Zucker e de Ahmed Ziad é contada, no livro, pela boca de terceiros, num diálogo que decorre em pleno século XXI. Marian Miller é cooperante numa organização não-governamental financiada pela União Europeia e vai a Jerusalém com a missão de elaborar um relatório sobre os colonatos judeus em território palestiniano. Após recolher a história dos Ziads, vai a casa de Ezequiel, filho de Samuel, para ouvir a versão dos Zuckers.

Marian vai apresentando a versão árabe dos acontecimentos e Ezequiel — provecto avô de um acérrimo defensor dos colonatos e de uma pacifista convicta — conta-lhe a perspetiva dos judeus. Os episódios de convívio e tensão que as duas famílias experimentaram durante décadas vão-se encaixando como um puzzle e ambos, à vez, vão preenchendo as lacunas de duas histórias paralelas.

“No início, Marian e Ezequiel nem simpatizam um com o outro”, refere Julia. “Nada têm em comum, ela não o convence e viceversa. Mas acabam por sentir uma empatia porque se escutaram. Se fizermos o exercício de nos escutarmos e tentarmos colocar-nos nos pés da pessoa que temos à nossa frente, as coisas serão mais fáceis.”

Os dois narradores colheram frutos por se terem escutado, da mesma forma que Samuel e Ahmed sempre viveram em paz porque se respeitaram. Hoje, perante a total paralisação do processo de paz israelo-palestiniano, a realidade entre as partes não podia ser mais distante. “As duas comunidades vivem de costas voltadas. No dia em que voltem a olhar-se nos olhos, perceberão que têm muitas mais coisas em comum do que a separá-las”, comenta a escritora. “Sou uma acérrima defensora do diálogo. Acho que através do diálogo é possível resolver-se todos os problemas. E acredito que a paz é possível, porque palestinianos e judeus estão condenados a entender-se, não têm outra opção. Partilham um território onde ambos vivem mal. Os judeus vão ganhando as guerras, mas não se pode viver bem quando se vive num estado de guerra permanente.”

“Palestinianos e judeus estão condenados a entender-se, não têm outra opção. Partilham um território onde ambos vivem mal. Os judeus vão ganhando as guerras, mas não se pode viver bem quando se vive num estado de guerra permanente”

Para compreender o título do livro, o leitor precisa de ler as suas 830 páginas, a que se segue um glossário e uma lista de personagens históricas. Só na última página — em bom rigor na última linha —, é reproduzida a frase do título. Julia Navarro admite que é uma característica sua enquanto escritora. “Sim, só explico o título no fim. Procuro sempre surpreender o leitor no sentido de que nada seja aquilo que parece e deixo sempre os finais em aberto. Tem de ser o leitor a decidir o que acontece. Conduzo-o até a um clímax e, a partir daí, deixo a porta aberta. Há muitos leitores que me escrevem desesperados sobre o fim do livro. Respondo sempre: ‘É o que o senhor quiser. Não lhe vou dizer qual é o meu final’. Cada leitor decide o seu.”

Artigo publicado no suplemento Atual do Expresso, a 27 de dezembro de 2014

Porquê na Austrália?

A Austrália vive, desde setembro, em estado de alerta. Um dos ataques frustrados recentemente pelas autoridades visava a decapitação de uma pessoa, numa investida aleatória, na baixa de Sydney

Aconteceu em Sydney, mas poderia ter ocorrido em qualquer outra grande cidade australiana. Desde 12 de setembro que a Austrália vive em estado de alerta antiterrorista “alto”, um nível inédito desde a introdução desse mecanismo de segurança em 2003.

Camberra estima que 90 australianos se tenham juntado ao Estado Islâmico na Síria e no Iraque. Vinte já terão morrido, alguns na região síria de Kobane, e outros vinte já terão regressado a casa. “É o maior risco que enfrentamos em muitos anos”, alertou o procurador-geral australiano, George Brandis.

Na frente de combate, “eles são usados como carne para canhão, bombistas suicidas e instrumentos de propaganda”, acrescentou o procurador. A 21 de julho, as autoridades de Camberra confirmaram que o bombista suicida de um ataque no Iraque era um australiano.

Temendo o regresso a casa de nacionais com experiência jihadista e com um alto nível de radicalização, a Austrália aprovou, a 4 de dezembro, nova legislação antiterrorista, criminalizando as viagens de nacionais para as zonas controladas pelo Estado Islâmico — que controla um terço da Síria e do Iraque —, sem uma justificação credível. Quem desafiar a lei incorre numa pena superior a 10 anos de prisão.

Atenção aos “lobos solitários”
Paralelamente, Camberra teme as consequências que os apelos feitos por jihadistas possam ter dentro de portas. Em meados de outubro, a revista “Dabiq”, do Estado Islâmico, publicada em língua inglesa, apelou a ações de “lobos solitários”contra as “nações de cruzados” que estão a combater o EI. A revista instrui a que se opte por ataques simples.

Anteriormente, o porta-voz do Estado Islâmico, Abu Mohammed al-Adnani, emitira uma mensagem apelando aos “lobos solitários” que atentassem contra “descrentes”, civis ou militares, nacionais de países que apoiam os Estados Unidos nos bombardeamentos ao Estado Islâmico. Um dos países-alvo que mencionou foi, precisamente, a Austrália. 

A 8 de outubro, a Austrália confirmou a sua participação na coligação internacional contra o EI efetuando os primeiros bombardeamentos sobre posições jihadistas, no Iraque. Camberra enviou ainda 600 militares, 200 dos quais forças especiais para missões de aconselhamento ao Governo de Bagdade.

“Esta decisão reflete a avaliação do Governo de que o EI representa uma ameaça significativa”, justificou o primeiro-ministro australiano, Tony Abbott. “Não só para o povo do Iraque mas para toda a região e para a nossa segurança interna.”

Decapitar na via pública
A 18 de setembro, naquela que foi a maior operação de contraterrorismo realizada no país, as autoridades australianas conseguiram frustrar uma tentativa de atentado, que tinha entre os alvos o primeiro-ministro.

Um ataque “ao estilo de Bombaim”, disseram. (A 26 de novembro de 2008, vários ataques sincronizados — bombas, tiroteios, reféns — efetuados pelo grupo terrorista Lashkar-e-Taiba, em Bombaim, provocaram 166 mortos.)

A coberto de legislação antiterrorista, as forças de segurança australianas lançaram dezenas de operações de busca nas cidades de Melbourne, Sydney e Brisbane. Um dos detidos, precisamente em Sydney, foi acusado de conspirar com um líder do Estado Islâmico na Síria para decapitar uma pessoa, num ataque aleatório, na baixa dessa cidade.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de dezembro de 2014. Pode ser consultado aqui

Eleições antecipadas em Israel

O primeiro-ministro israelita despediu dois ministros críticos de algumas das suas políticas. O Governo caiu e os israelitas vão a votos mais cedo do que o esperado

O Parlamento de Israel (Knesset) aprovou hoje por unanimidade a sua dissolução, escassas horas após o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu ter demitido dois ministros.

Israel segue agora para eleições legislativas antecipadas, previstas para 17 de março do próximo ano, mais de dois anos antes do que o previsto.

O Governo de Telavive caiu na terça-feira na sequência do afastamento do ministro das Finanças, Yair Lapid, líder do Yesh Atid, e da ministra da Justiça, Tzipi Livni, chefe do partido Hatnua. Ambos lideram partidos são centristas.

“Nas últimas semanas, incluindo nas últimas 24 horas, os ministros Lapid e Livni atacaram severamente o Governo que lidero. Não vou tolerar mais nenhuma oposição dentro do Governo”, disse Netanyahu, num discurso à nação, na terça-feira à noite.

O partido de Yair Lapid qualificou a decisão de Netanyahu “um ato de cobardia e de perda de controlo”. Tzipi Livni, por seu lado, denunciou um “discurso histérico” por parte de Netanyahu: “Um primeiro-ministro que tem medo dos seus ministros tem-no mais ainda do mundo exterior”, acusou. 

A divisão no seio da coligação governamental israelita acentuou-se após a aprovação de uma controversa lei sobre a nacionalidade, que enfatiza o caráter judaico do Estado de Israel e levanta receios de discriminação em relação aos cidadãos israelitas não judeus. Cerca de 20% da população israelita é árabe.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de dezembro de 2014. Pode ser consultado aqui

Palestina provoca efeito dominó… mas só nos Parlamentos

O Parlamento francês vota amanhã o reconhecimento do Estado palestiniano. A Dinamarca vota uma moção no início de janeiro. Em Portugal, o Parlamento já trabalha um texto semelhante e o Governo está a avançar no mesmo sentido. Perante o impasse nas negociações de paz israelo-palestinianas, o reconhecimento da Palestina tomou de assalto da agenda europeia

Europa Ocidental e América do Norte são os dois grandes blocos geopolíticos que ainda não reconheceram o Estado da Palestina. Porém, a fortaleza Europa, no que a esse assunto diz respeito, começou a abrir fendas. O reconhecimento da Palestina por parte do Governo da Suécia, a 30 de outubro, assemelhou-se a um sismo político que está a provocar réplicas um pouco por toda a Europa.

Até ao momento, nenhum outro país seguiu os passos do Governo de Estocolmo. Mas na Europa está lançado o debate sobre o reconhecimento da Palestina, inclusive em Portugal onde o Parlamento já prepara um projeto de resolução e onde, como o Expresso noticiou na última edição impressa, o Governo está decidido a proceder a esse reconhecimento.

Em Ramallah, as notícias sobre as movimentações políticas em Lisboa são acolhidas sem grande euforia: “Era bom que isso acontecesse. Espero que isso nos ajude. Há muita frustração por aqui…”, comenta ao Expresso Shadi, 37 anos, um dos muitos palestinianos que, diariamente, tem de atravessar um checkpoint israelita para ir de casa para o trabalho. “Esses reconhecimentos fazem a diferença. Precisamos deles.”

  • 1988 Bulgária, Chipre, Hungria, Malta, Polónia, Roménia, Eslováquia e República Checa (quando ainda não pertenciam à União Europeia)

Amanhã, a Assembleia Nacional de França vota uma moção apelando ao Governo de François Hollande que reconheça a Palestina. O texto foi discutido na semana passada no Parlamento, onde o ministro dos Negócios Estrangeiros não deixou dúvidas sobre a posição de Paris: “A França reconhecerá o Estado da Palestina. Esse reconhecimento não é um favor, mas antes um direito”, disse Laurent Fabius. “A questão que se nos coloca agora não tem a ver com o princípio, mas tem a ver com a modalidade, ou seja, quando e como.”

Reticências na Dinamarca

Textos semelhantes àquele que os deputados franceses se preparam para votar já passaram na Câmara dos Comuns do Reino Unido (13 de outubro), no Senado da República da Irlanda (22 de outubro) e no Congresso dos Deputados de Espanha (18 de novembro). São os governos, e não os Parlamentos, que detêm a prerrogativa do reconhecimento de Estados. Essas votações são, por isso, apenas simbólicas, ainda que politicamente relevantes pela pressão política que exercem sobre os governos.

Na Dinamarca, três deputados de partidos de esquerda com fraca representação parlamentar elaboraram uma moção no mesmo sentido, que será discutida a 11 de dezembro e votada em inícios de janeiro. “Julgo que não iremos conseguir uma maioria, mas pelo menos teremos uma boa discussão”, disse Holger K. Nielson, um antigo ministro dos Negócios Estrangeiros dinamarquês e um dos políticos na origem da proposta.

A primeira-ministra dinamarquesa, Helle Thorning-Schmidt, já se afirmou contrária ao reconhecimento da Palestina a curto prazo. “Apoiamos a solução de dois Estados, mas escolhemos outra direção”, disse. O seu ministro dos Negócios Estrangeiros explicou que o reconhecimento da Palestina é inevitável, mas deve ser feito na altura certa. Martin Lidegaard defendeu, prioritariamente, uma discussão sobre a política israelita de construção de colonatos em território palestiniano e a tomada de medidas por parte da União Europeia. “Israel continua a expandir colonatos ilegais de forma inaceitável e isso prejudica de facto a solução de dois Estados”, afirmou. “A união da UE no sentido de influenciar, na realidade, o conflito aumentará se nós considerarmos mais medidas contra os colonatos.”

Lóbi israelita no Parlamento Europeu

O princípio de “dois Estados para dois povos” continua a ser a solução aceite por israelitas e por palestinianos, mas as partes tardam em acordar o melhor caminho para lá chegar.

A discussão está em curso também no Parlamento Europeu onde a votação de uma moção sobre o reconhecimento da Palestina, prevista para a semana passada, foi adiada para 18 de dezembro. Proposta pelo Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde (GUE) e pelo Grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas, a sua votação foi adiada a pedido do Grupo do Partido Popular Europeu.

Os proponentes defendem que o reconhecimento do Estado reforçará a posição negocial palestiniana e poderá ajudar à obtenção de um acordo de paz com Israel. Por seu lado, os opositores querem condicionar o reconhecimento da Palestina à obtenção prévia de um acordo negociado com Israel.

Segundo o diário israelita “The Jerusalem Post”, na base do adiamento desta votação em Estrasburgo está uma intensa campanha lobista por parte da diplomacia de Israel, no sentido de “ganhar tempo e alterar mentalidades”. Outras razões que terão levado ao adiamento prendem-se com “dificuldades entre vários grupos parlamentares relativas à linguagem da resolução” e ainda “a oposição de alguns membros, especialmente da Alemanha”.

135
países já reconhecem o Estado palestiniano a nível bilateral

Esta agitação no seio da UE, acentuada após a última intervenção militar israelita na Faixa de Gaza, em julho e agosto passados, reflete uma crescente frustração europeia relativamente à contínua expansão de colonatos em terras palestinianas (as fronteiras reconhecidas internacionalmente são as anteriores à guerra de 1967). Bruxelas é igualmente o maior doador dos palestinianos em termos de assistência financeira, ajuda essa muitas vezes concretizada em projetos destruídos durante operações militares de Israel, como aconteceu com o Aeroporto Internacional de Gaza, por exemplo.

Federica Mogherini, a italiana que iniciou funções a 1 de novembro como chefe da diplomacia na União Europeia, defende que para além de ser “payer” (pagante), a UE tem de ser “player” (jogador/ator) no processo de paz para o Médio Oriente. A primeira deslocação internacional de Mogherini foi precisamente a Israel e aos territórios palestinianos da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. “Ficarei feliz se no final do meu mandato (2019) o Estado palestiniano existir”, declarou.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 1 de dezembro de 2014. Pode ser consultado aqui