É dos países mais pobres do mundo, acolhe o braço mais ativo da Al-Qaida e a capital foi tomada por rebeldes
Quarenta e nove mortos, na quinta-feira, após um ataque suicida em Ibb. Trinta e cinco mortos na véspera num atentado à bomba junto a uma academia de polícia em Sana’a. A violência dilacera o quotidiano do Iémen, que dista quase 6000 km de Portugal, mas cuja instabilidade deve ser encarada como uma ameaça próxima.
“Pode afetar o Ocidente de várias formas”, explica ao “Expresso” Marie-Christine Heinze, presidente do Centro de Investigação Aplicada em Parceria com o Oriente (CARPO), de Bona. “Por um lado, abre espaço ao crescimento e à prosperidade da Al-Qaida.” Sediada no Iémen, a Al-Qaida na Península Arábica é o braço mais ativo da organização terrorista.
“Por outro lado, uma das rotas marítimas mais importantes para o comércio mundial passa pelo Estreito Bab al-Mandab, que liga a Europa e a Ásia. Pode ainda afetar outros países do Golfo, especialmente a Arábia Saudita, da qual o Ocidente depende em termos petrolíferos”, diz a especialista alemã.
Sobram também razões do foro interno que Ana Santos Pinto, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais, enumera ao “Expresso”. “A ausência de um Estado estruturado, com capacidade de controlo soberano sobre todo o território, permite que este se torne ‘terreno fértil’ para a formação e treino de grupos extremistas e para o recrutamento de operacionais para serem utilizados no Médio Oriente ou noutras regiões.”
Atualmente, os iemenitas são o contingente nacional mais representado em Guantánamo — em termos globais, os nacionais do Iémen foram o terceiro maior grupo naquele centro de detenção de suspeitos de terrorismo dos EUA, a seguir a afegãos e sauditas.
“A esta falta de controlo do território”, continua a investigadora portuguesa, “acrescem os baixos níveis de desenvolvimento socioeconómico que tornam as populações vulneráveis à colaboração, por razões de sobrevivência, com grupos radicais e/ou de criminalidade organizada.”
Federalismo no papel
Desde 1990, quando Iémen do Norte (que fez parte do Império Otomano) e Iémen do Sul (antigo protetorado britânico) se reunificaram, que o país luta para se manter unido. A 10 de fevereiro passado, no âmbito da transição política que se seguiu à deposição de Ali Abdullah Saleh — o ditador deposto no contexto da Primavera Árabe —, um painel presidido pelo Presidente Abd Rabbuh Mansur al-Hadi e integrado por representantes dos principais partidos aprovou a transformação do Iémen numa federação de seis regiões, quatro no norte e duas no sul.
“A questão da separação ou, como proposto, do federalismo não está totalmente resolvida. O Governo, particularmente o Presidente Hadi, teve muitas oportunidades para criar mais confiança no Estado e nos atores políticos em Sana’a, mas infelizmente nem sempre as aproveitou”, comenta Marie-Christine Heinze. “Igualmente, o Movimento do Sul (pró-independência) não tem uma liderança unificada nem planos concretos para o estabelecimento de um Estado após a secessão.”
“Na ausência de um Estado estruturado, o potencial de desintegração é muito significativo”, diz Ana Santos Pinto. “Se não existir um sentimento de lealdade e reconhecimento nacional, a tendência é para a transferência de lealdades grupais, designadamente de natureza étnica.”
Combustíveis sobem 160%
A busca de reconhecimento político está na base da ofensiva de rebeldes huthis, pertencentes à minoria xiita, que, em setembro, avançaram sobre a capital, após uma subida de 160% dos preços dos combustíveis, que levou o povo às ruas.
Usando a cartada do custo de vida e apoiados materialmente pelo Irão, os huthis tomaram edifícios governamentais, a televisão pública, instalações militares e o aeroporto, mas deixaram o Presidente Hadi no poder. “Eles não querem a presidência”, explica Marie-Christine Heinze. “Preferem governar através de Hadi e deixá-lo assumir responsabilidades.”
O protagonismo dos huthis (xiitas) num país de maioria sunita “assume particular relevância num cenário de um potencial realinhamento regional no Médio Oriente”, conclui Ana Santos Pinto. “Esse ajustamento seria baseado na competição entre sunitas e xiitas, em que atores como o chamado Estado Islâmico, a Arábia Saudita e o Qatar (sunitas) e o Irão (xiita) disputam poder”.
Artigo publicado no “Expresso”, a 10 de janeiro de 2015
