Comparação dos dois grupos que disputam a liderança do terrorismo global
Os atentados de Paris trouxeram para primeiro plano o terrorismo levado a cabo por ultrarradicais islâmicos. Estes não tardaram a ser reivindicados pelas duas grandes centrais mundiais desta área: a Al-Qaeda, herdeira de Bin Laden, e o seu recente concorrente, o Daesh (acrónimo árabe para Estado Islâmico), promotor de um “califado” sírio-iraquiano.
Mas será de facto assim? Há 1500 anos, o general chinês Sun Tzu escreveu em “A Arte da Guerra”, que o objetivo desta não é necessariamente a destruição física do inimigo, mas sim levá-lo a agir de acordo com os nossos interesses. Tomar como credíveis tais reivindicações é fazer o jogo dos promotores do terrorismo, reconhecendo-lhes uma capacidade de organizar e teleguiar grupos extremistas na Europa que estão longe de ter.
É verdade que qualquer elemento de um grupo europeu pró-Jihad, fanatizado pela internet, recrutado nos bairros mal-afamados dos subúrbios ou regressado da Jihad na Síria ou no Iraque, toma como referência suprema a visão retrógrada e primária do Islão veiculada por aquelas duas centrais. Como também faz seu o apelo à luta armada contra os infiéis de lá emanados. Contudo, os circuitos de doutrinação, organização, financiamento e armamento destes grupos são autónomos, diversificados e regionais e não meros tentáculos da Al-Qaeda ou do Daesh.
Ainda assim, para compreendermos melhor os atentados de Paris e a operação policial de anteontem em Bruxelas, durante a qual foi desmantelada uma célula armada que preparava um atentado, vale a pena comparar ambas as organizações do ponto de vista dos seus métodos de atuação, estratégias de combate, zonas de influência e doutrina. São os grupos terroristas mais temidos do mundo e partilham o mesmo objetivo: estabelecer um califado global e converter a humanidade ao Islão por meios não necessariamente amigáveis. No entanto, ao compararem-se ambas, ficam patentes as profundas diferenças que levaram à cisão de meados do ano passado.
Texto escrito em colaboração com Ricardo Silva e Rui Cardoso
TÃO IGUAIS, TÃO DIFERENTES E TÃO PERIGOSOS
Uma análise comparada da Al-Qaeda e do Daesh, versando as suas táticas de combate (guerrilha, terrorismo e guerra convencional), as suas redes de alianças, as zonas do mundo onde estão implantados, como e onde se financiam e quais são os seus principais pontos doutrinários.
ESTRATÉGIA
AL-QAEDA Possui uma visão de longo prazo, assente numa atuação global em que a clandestinidade é condição essencial da sobrevivência. A sua lógica passa por atacar o Ocidente de modo a debilitar o seu apoio aos regimes árabes inimigos e assim facilitar a queda destes. A tática principal passa pelos grandes atentados contra alvos ocidentais (como o 11 de Setembro de 2001 e as bombas nas embaixadas dos EUA no Quénia e Tanzânia em 1998).
DAESH A estratégia do Daesh é a oposta da Al-Qaeda. Atua de forma regional e numa ótica de curto e médio prazo, tendo por objetivo primordial conquistar território para declarar rapidamente um califado. O esforço inicial passava por derrotar os regimes árabes, e só depois declarar guerra ao Ocidente, mas os seus planos acabaram gorados quando se iniciou, no Iraque e Síria, a campanha aérea liderada pelos Estados Unidos.
ESTRUTURA
AL-QAEDA Gerida de forma descentralizada, a Al-Qaeda é liderada por um emir que recebe o apoio de um conselho, a shura, competindo a execução da sua estratégia a vários comités que, por sua vez, se subdividem em células espalhadas por todo o mundo, quase à maneira de uma multinacional e seus “franchises”.
DAESH Segue uma lógica distinta da organização de Bin Laden. Começou como um grupo de guerrilha semiclandestino, mas evoluiu para uma estrutura similar à de um exército convencional, com unidades equipadas com carros de combate, artilharia e até sistemas de defesa antiaérea. Copiou a capacidade administrativa evidenciada pelo arqui-inimigo xiita, o Hezbollah libanês, nas áreas que ocupa.
APOIOS
AL-QAEDA Organiza-se em pequenas unidades que atuam integradas junto dos grupos jiadistas aliados e mantêm uma coesão ideológica que por vezes choca com os interesses de cada região. Delega nos grupos aliados locais o esforço militar contra os regimes muçulmanos ou africanos que pretendem abater.
DAESH Atua em distintas frentes de combate e domina um largo território no leste da Síria e no norte do Iraque, incluindo campos petrolíferos. A colaboração com outros grupos tem-se revelado insustentável e encontra-se em conflito aberto com praticamente todas as forças que operam na Síria e no Iraque.
OBJETIVOS MILITARES
AL-QAEDA No Afeganistão, os talibãs conquistaram o território que serviu de base à expansão da Al-Qaeda e à preparação do 11 de Setembro. Com este atentado, conseguiu aliados em todo o mundo. Na Somália, as suas células colaboram com as milícias do Al-Shabaab. No Iémen, aliou-se à Ansar al-Sharia e às forças tribais sunitas, proclamando um emirado. Na Síria, a Al-Nusra combate em nome da Al-Qaeda e alberga o Khorasan, cuja função é organizar grandes atentados contra alvos ocidentais.
DAESH Além do uso eficiente de armamento convencional (artilharia, blindados e mísseis) recorrem ao terror, usando veículos armadilhados ou bombistas suicidas contra posições inimigas. Fazem ação psicológica macabra na internet, encenando matanças rituais. A campanha bombista contra bairros xiitas iraquianos e a perseguição a cristãos e iazidis levou o Ocidente a antecipar a guerra aérea ao Daesh. Os excessos contra muçulmanos de outras confissões levaram à cisão com a Al-Qaeda.
IDEOLOGIA
AL-QAEDA Al-Qaeda e Daesh disputam a liderança da comunidade sunita, partilhando a mesma interpretação integrista do Islão, a doutrina waabita, que é a ideologia oficial do reino da Arábia Saudita. Ambos defendem a instituição de um califado, liderado por um califa que mais não é do que o sucessor do profeta e habitado por “verdadeiros crentes”, podendo este pressuposto justificar o extermínio de muçulmanos que não se comportem como tal.
DAESH Após conquistar vastas extensões da Síria e do Iraque, o Daesh antecipou-se à Al-Qaeda e decretou o califado. As leis impostas à população têm raízes na obra “Kitab al-Tawhid”, uma coleção de “hadith” (exemplos de vida do profeta) usados nas escolas sauditas e consagrados também pela Al-Qaeda. Nas terras ocupadas pelo Daesh, populações muçulmanas xiitas e outras minorias religiosas pagam com a vida a recusa em submeter-se.
POLÍTICA EXTERNA
AL-QAEDA Osama bin Laden declarou guerra aos EUA e ao Ocidente “por oprimir o Islão” e passou à ação. Nova Iorque, Madrid, Londres sofreram grandes atentados que traumatizaram todo o mundo. O Daesh não descarta a possibilidade de atacar os EUA, mas até que o concretize, a Al-Qaeda continuará a ser reconhecida como a organização líder do movimento jiadista.
DAESH Concentrado na administração interna do seu Estado, o Daesh não revela, para já, qualquer ímpeto expansionista, parecendo mais interessado em consolidar a sua lei nas populações que controla. Porém, em vários artigos publicados na revista “Daqib”, órgão de comunicação do Daesh, têm surgido apelos à realização de ataques no Ocidente por parte de lobos solitários.
FINANCIAMENTO
AL-QAEDA Osama bin Laden era um multimilionário saudita e disso beneficiou a Al-Qaeda, nomeadamente no planeamento do 11 de Setembro. Na região do Sahel, por exemplo, o ramo local da Al-Qaeda recorre a raptos para se financiar. Interessados na defesa do sunismo, por oposição ao xiismo do vizinho Irão, os ricos países do Golfo apoiam quer a Al-Qaeda quer o Daesh.
DAESH O Daesh não dirá que não a um chorudo cheque passado por um xeque do Golfo, mas tem jogado pelo seguro e rentabilizado as infraestruturas de que se apoderou na Síria e no Iraque. Hoje, recorrendo a preços competitivos, o Daesh vende petróleo no mercado negro tanto ao regime de Bashar al-Assad como à Turquia.
RECRUTAMENTO
AL-QAEDA Inicialmente localizado nas montanhas afegãs, o núcleo da liderança da Al-Qaeda sempre defendeu alianças com outros grupos jiadistas, que levaram à formação de braços regionais da organização. Mantendo cada qual a sua identidade, trabalhariam para um objetivo comum. O surgimento do Daesh, e de métodos de recrutamento voltados para os jovens, levaram a deserções na Al-Qaeda.
DAESH O facto de ter nascido durante duas guerras (Iraque e Síria) deu ao Daesh uma capacidade de recrutamento pragmática, atraindo sectores locais ostracizados, como exbaasistas (sunitas), marginalizados pela maioria xiita no poder em Bagdade. O estilo de combate do Daesh e o facto de controlar território aproxima-o de um exército convencional, ao contrário da Al-Qaeda, difícil de localizar até para quem queira aderir.
COMUNICAÇÃO
AL-QAEDA Em contraste com o Daesh, a Al-Qaeda não precisou nunca de publicitar os seus próprios feitos. A aposta em atentados espetaculares garantiu-lhe mediatismo e tempo de antena nos órgãos de informação de todo o mundo. De tempos a tempos, a voz de Osama bin Laden fazia-se ouvir em gravações áudio enviadas para os órgãos de informação, mais para provar que continuava vivo do que qualquer outra coisa.
DAESH Obcecado em recrutar jovens, o Daesh apostou nas redes sociais e na comunicação através da internet. A importância desta estratégia de comunicação ficou exposta quando começou a publicar no YouTube vídeos encenados das decapitações de prisioneiros e de muçulmanos considerados inimigos, como soldados, por exemplo. O Ocidente apercebeu-se, então, da presença de nacionais seus entre os carrascos.
Artigo publicado no “Expresso”, a 17 de janeiro de 2015
