Kenji Goto. História de uma viagem sem regresso

O Estado Islâmico divulgou este sábado o vídeo da decapitação do japonês Kenji Goto, jornalista de 47 anos. Um fotógrafo brasileiro que esteve na Síria no final do ano passado relata ao Expresso como é que o refém agora assassinado decidiu entrar em território controlado por jiadistas, apesar dos avisos para não o fazer

“Todos sabiam que era provável que Kenji caísse nas mãos do Estado Islâmico. Estou muito surpreendido com a sua irresponsabilidade. Toda a gente o avisou”, conta ao Expresso Gabriel Chaim, que estava em Alepo (Síria) no momento em que Goto decidiu entrar no território do Estado Islâmico, em outubro do ano passado, já os ocidentais James Foley, Steven Sotloff, David Haines e Alan Henning tinham sido decapitados. 

Vários órgãos de informação internacionais noticiaram que Kenji Goto terá decidido ir até Raqqa, capital do Estado Islâmico, para tentar encontrar o seu amigo Haruna Yukawa, que chegara à Síria em agosto e de quem não se conhecia o paradeiro. Segundo a agência Reuters, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão procurava Haruna Yukawa desde então. “Não creio que seja verdade que Kenji tenha ido atrás do outro… “, diz o brasileiro. 

Gabriel, de 33 anos, não conheceu Kenji, apenas ouviu falar dele: “Ele é conhecido em Alepo. Já ali esteve várias vezes. Todos me disseram que é ‘um cara muito legal’, empenhado na causa síria”. Não o conheceu, mas testemunhou o pânico do cidadão sírio que apoiava o jornalista japonês nas suas deslocações pela Síria. “O ‘fixer’ [guia] dele insistiu para que não fosse para Raqqa. Mas ele disse que iria de qualquer jeito. Então, o ‘fixer’ obrigou-o a gravar um vídeo admitindo que iria por conta própria. Eu vi esse vídeo todo”, conta Gabriel.

“Primeiro, ele surge a falar japonês, depois inglês, mostrando o passaporte e o cartão de identificação de jornalista. O guia deixou-o no último ‘checkpoint’ antes de Raqqa [um posto controlado pelos rebeldes do Exército Livre da Síria], ele apanhou um autocarro e foi.”

“Ele subestimou o perigo” 

O brasileiro pensa que o japonês estaria convencido de que não teria problemas com os extremistas: “Ele subestimou o perigo! Antes, o Japão só estava envolvido nesta guerra através do fornecimento de ajuda humanitária aos refugiados. Eu acho que o problema foi a condenação do Governo japonês ao atentado de Paris” contra o jornal satírico “Charlie Hebdo”.

Quando o Estado Islâmico mostrou, pela primeira vez, os dois japoneses em cativeiro, num vídeo divulgado na semana passada, exigiu o pagamento de um resgate de 200 milhões de dólares (178 milhões de euros). Após a execução do empresário Haruna Yukawa, alterou as suas exigências, passando a exigir a libertação de Sajida al-Rishawi, uma candidata a bombista suicida capturada pelas autoridades jordanas em 2005.

“Este tipo de atitude só atrapalha. O mundo pensa que o Daesh [designação pela qual também é conhecido o Estado Islâmico] sequestrou o japonês e levou-o para dentro do seu ‘Estado’. Mas ele foi por conta própria, ninguém o forçou a ir. Pelo contrário, todos avisaram-no para que não fosse. Talvez quisesse ir para mostrar que é um homem valente ou então para mostrar como se vive dentro do Estado Islâmico. Foi muito irresponsável!”

Para Gabriel Chaim, que em 2014 passou mais tempo na Síria do que no seu Brasil natal, episódios como este só contribuem para piorar a situação da imprensa estrangeira dentro da Síria e também para o esquecimento do conflito nesse país. “Os media já estão tão longe da Síria… têm medo de novos sequestros”, dizia há poucos dias ao Expresso.

“Casos destes fazem com que o mundo deixe de olhar para a Síria”, onde paralelamente à ofensiva do Estado Islâmico prossegue uma guerra contra o regime de Bashar al-Assad. “Isso só leva a afastar ajuda humanitária. Se o Kenji morrer, com certeza o Japão vai deixar de ajudar os refugiados sírios.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de janeiro de 2015. Pode ser consultado aqui

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