À procura de um acordo… para continuar a negociar

Durante seis dias, Irão, União Europeia e seis grandes potências reuniram-se na Suíça para uma maratona de conversações sobre o nuclear iraniano. As partes obrigaram-se à obtenção de um acordo até à meia-noite de hoje

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Termina à meia-noite desta terça-feira o prazo para a obtenção de um acordo preliminar sobre o programa nuclear do Irão. A ser alcançado passará a funcionar como moldura política para as negociações técnicas que se seguirão. As partes tentarão, então, alcançar um novo acordo — esse sim definitivo — até 1 de julho de 2015.

Das conversações que decorrem, desde quarta-feira passada, no Beau Rivage Palace Hotel, na cidade suíça de Lausana — ao nível dos chefes da diplomacia —, ora foram transpirando declarações de impaciência ora indícios de que um acordo poderia estar iminente. O mais forte desses indícios terá sido a manobra do ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, que abandonou as negociações na segunda-feira, prometendo regressar apenas se houvesse uma possibilidade “realista” de acordo.

Lavrov voltou efetivamente à Suíça durante a tarde de terça-feira. “As perspetivas nesta ronda de conversações não são más. Eu diria que até são boas”, disse Lavrov, antes de sair de Moscovo. “As hipóteses são altas. Provavelmente não são absolutas, mas são bastante realistas, se nenhum dos participantes elevar a fasquia até ao último momento na esperança de ganhar qualquer coisa extra na reta final, em vez de procurar manter o equilíbrio de interesses.”

A meio da tarde, a agência Associated Press noticiava que a maratona de negociações deveria culminar com uma declaração em que as partes se comprometem a prosseguir as conversações numa nova fase.

À mesa das negociações, o Irão — que garante que as suas atividades nucleares visam apenas fins civis, como a produção de eletricidade — exige o levantamento das sanções internacionais, que têm afetado fortemente a sua economia, em troca de limitações temporárias às suas atividades nucleares.

Por seu lado, as potências internacionais que negoceiam com o Irão — os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França) e a Alemanha (P5+1) — querem atrasar em 15 anos a capacidade de Teerão produzir a bomba nuclear. Na comunidade internacional, há muita desconfiança em relação às reais intenções iranianas. Acresce que algumas fases do processo de produção de energia nuclear podem ter duplo uso, civil e militar.

A duração de um eventual acordo e o ritmo do levantamento das sanções parecem ser os principais pontos de atrito entre os dois lados da mesa negocial. “Toda a gente sabe que o Congresso (dos EUA, de maioria republicana, crítica das negociações com o Irão) está à espera para agir se não for alcançado um acordo”, alertou Marie Harf, porta-voz do departamento de Estado norte-americano. Neste contexto, agir significa aprovar novas sanções contra o Irão.

O que está em cima da mesa?

O início do programa nuclear iraniano remonta à década de 50, mas apenas a partir de 2003 se tornou problemático, após a Agência Internacional de Energia Atómica ter revelado que Teerão não declarou atividades sensíveis de enriquecimento e reprocessamento de urânio.

Presentemente, o Irão possui cerca de 18 mil centrifugadoras — cerca de 10 mil das quais estão a funcionar —, equipamento usado para produzir urânio enriquecido, ingrediente necessário à produção de energia nuclear. Em cima da mesa está uma proposta de redução do número de centrifugadoras, para cerca de 6000.

Segundo a Agência Internacional de Energia Atómica, o Irão tem oito toneladas de urânio enriquecido entre os 3,5 e os 5%. Se essa quantidade for enriquecida a um nível de 90%, será suficiente para produzir cinco ou seis bombas atómicas, garante o diário israelita “Haaretz”.

Precisamente em Israel, o desfecho das negociações de Lausana é visto com redobrada atenção. “Se não for garantida a exportação das 7-8 toneladas de urânio pouco enriquecido, os americanos não conseguirão o seu objetivo” de afastar o Irão da obtenção da bomba, alertou Amos Yadlin, antigo chefe do serviço de informações das Forças de Defesa de Israel, que era a escolha para ministro da Defesa da União Sionista (centro-esquerda), nas recentes legislativas.

O destino a dar a esse “stock” é outra das grandes questões em aberto. Há uma proposta no sentido do urânio ser transportado para o estrangeiro, nomeadamente para a Rússia, possibilidade que o negociador chefe iraniano, o vice ministro dos Negócios Estrangeiros, Abbas Araghchi, disse “não estar na agenda” de Teerão.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 31 de março de 2015. Pode ser consultado aqui

À beira da desagregação


Norte-sul, sunitas-xiitas, Estado-tribos. O Iémen é uma manta de retalhos étnico-religiosos prestes a explodir

O início dos bombardeamentos ao Iémen, na madrugada de quinta-feira, apanhou a ativista iemenita Elham Manea de cama — duplamente febril, por questões de saúde e pela situação do seu país (Elham vive na Suíça). O “Expresso” perguntou-lhe se teme a divisão do país. “Sim, tenho esse receio. Há muitas causas a contribuir, desde logo a perceção de que o sul é controlado pelo norte. Temo que uma separação conduza a outra guerra civil.”

Até 1990, o Iémen correspondia, na verdade, a dois países: o Iémen do Norte, com capital em Sanaa, herdeiro da colonização otomana; e o Iémen do Sul, com capital em Aden, uma antiga colónia britânica a que se sucedeu um regime marxista, que depauperou o território (sobretudo após o fim da URSS).

A questão da unidade do Iémen foi agora relançada após a tomada do palácio presidencial de Sanaa pelos huthis (minoria xiita), em janeiro passado, e a fuga do Presidente, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, para Aden (sul). “Penso que a desintegração não é inevitável, mas é uma possibilidade não necessariamente ao longo das linhas pré-1990”, diz ao “Expresso” Manuel Castro e Almeida, ex-editor do importante jornal árabe “Asharq Al-Awsat”.

“Várias províncias importantes, como Marib, recusam-se a fazer parte de um norte controlado pelos huthis. Hadramaut não quer ser parte de um sul independente. Isto acrescenta muita complexidade a uma possível fragmentação. O que é inevitável no futuro — e isto num cenário de uma solução negociada — é uma descentralização e federalização.”

Geografia do caos

Paralelamente ao poder central, coexistem no Iémen atores não estatais, nomeadamente tribos, que dificultam a emergência de um sentimento nacional. Por exemplo, as tribos de Marib — região rica em recursos (nomeadamente petróleo) — são um desafio constante ao Estado, e agora também aos huthis. Em Hadramaut, a Confederação Tribal Hadrami, que agupa várias tribos, partilha um sentimento secessionista, mas prefere a independência a unir-se ao sul, como acontecia antes de 1990. Outro exemplo é o Movimento Separatista do Sul.

A complexidade do Iémen não acaba aqui. A Al-Qaida na Península Arábica (que reivindicou o ataque ao “Charlie Hebdo” e é o ramo mais ativo da organização terrorista) está ali sediada e tem alianças estratégicas com várias tribos — umas para combater o poder central, outras os huthis.

Suspeita-se que tenha sido a Al-Qaida a responsável pelos quatro atentados suicidas de 20 de março, em Sanaa, contra duas mesquitas frequentadas pelos huthis (mais de 140 mortos), ainda que o ataque tenha sido reivindicado pelo autodenominado Estado Islâmico.

“A presença da Al-Qaida e do Estado Islâmico (por muito limitada que seja de momento) juntamente com o caos provocado pela guerra civil representam uma mistura explosiva com potenciais repercussões globais”, diz Manuel Castro e Almeida, atual colunista do sítio “Al-Arabiya News”.

“O descontentamento gerado pela deterioração da situação económica e social bem como o ressentimento da população maioritariamente sunita em relação ao avanço dos huthis (xiitas), que são vistos como um braço do Irão, torna-se uma ferramenta de recrutamento poderosa para os dois grupos.”

À conquista do sul

Os bombardeamentos ao Iémen, realizados por dez países muçulmanos, são o culminar de uma situação efervescente que se arrasta desde setembro, quando os huthis invadiram a capital. “Faremos tudo o que for possível para proteger o Governo legítimo do Iémen, impedir que se desmorone e fique sujeito aos perigos das milícias”, afirmou Adel al-Jubeir, embaixador da Arábia Saudita nos Estados Unidos, após anunciar em Washington o início da ofensiva. “A situação no Iémen é perigosa. Uma milícia com poder aéreo, armamento pesado e mísseis balísticos é algo sem precedentes.”

Conflito por procuração

A avançada huthi para sul, na direção de Aden, para onde o Governo se tinha mudado, seguiu-se aos atentados de dia 20, contra as mesquitas e ao assassínio, dois dias antes, do jornalista e ativista dos direitos humanos Abdulkarim al-Khaiwani, apoiante do movimento huthi.

Pelo caminho, tomaram Taiz, a terceira cidade, e reprimiram quem se lhes opôs: precisamente em Taiz, oito civis foram mortos quando participavam numa manifestação anti-huthi.

Ameaçado pela aproximação dos huthis, o Presidente Hadi fugiu de Aden. Com os bombardeamentos já em curso, surgiam imagens da sua chegada a Riade. A Arábia Saudita — o grande poder sunita da região, guardiã das mesquitas sagradas de Meca e Medina — não tolera protagonismos xiitas junto às suas fronteiras. Em 2011, no contexto da Primavera Árabe, enviou tanques para o Bahrain em defesa da família reinante dos Al-Khalifa (sunitas), contestados nas ruas pela população de maioria xiita.

Segundo a empresa norte-americana de análises IHS, desde a Primavera Árabe — e a queda dos ditadores na Tunísia, Egito, Líbia e Iémen —, a Arábia Saudita tornou-se o maior importador mundial de armamento. Em 2015, Riade prevê gastar 9800 milhões de dólares (8900 milhões de euros), mais 52% do que no ano passado.

Quatro anos após a intervenção saudita no Bahrain, o conflito no Iémen assemelha-se a uma nova guerra por procuração entre os dois rivais do Médio Oriente: Arábia Saudita (país árabe, muçulmano e sunita) e Irão (país persa, muçulmano e xiita). “Este conflito tem assumido, cada vez mais, essa forma, principalmente após a criação do movimento huthi, em meados dos anos 90, por influência ideológica do Irão”, diz Manuel Castro e Almeida.

“Os sauditas e outros países árabes já estão bastante preocupados com os avanços iranianos no Líbano (através do Hizbullah) e no Iraque (a maioria xiita subiu ao poder após o fim de Saddam Hussein), e ainda com o decisivo apoio que Teerão tem dado ao brutal regime de Bashar al-Assad (Síria). Não estão dispostos a aceitar outro cenário em que forças leais ao Irão controlem militarmente um país árabe.” Sem surpresa, Teerão condenou o ataque: “É um passo perigoso”.

P&R

Quem são os huthis?
Originalmente, são os zaydis do norte, grupo religioso xiita, mas doutrinariamente próximo dos sunitas. Desde os anos 70, protestavam contra a discriminação do Governo e contra o avanço do salafismo (doutrina sunita ultraconvervadora e, por vezes, radical) que ameaçava a identidade zaydi. “Eram um movimento local, com reivindicações razoáveis e legítimas”, diz Manuel Castro e Almeida. O ponto de viragem deu-se após o líder, Hussein Badreddin al-Houthi, passar um longo período no Irão. Regressou em meados dos anos 90 e criou um grupo armado — os huthis — com uma agenda ativista e radical, baseada no revivalismo zaydi. (O atual líder é Abdul-Malik al-Huthi, irmão de Hussein, morto em 2004.) Sucederam-se grandes protestos antigoverno marcados pelo slogan “Morte à América, Morte a Israel, Que os judeus sejam amaldiçoados, Vitória para o Islão”, inspirado na revolução iraniana (1979). “Hoje, são um grupo fortemente influenciado pelo Irão”, diz Almeida. “Sem esta ligação, a crise nunca teria esta dimensão.” O Irão dá armas e dinheiro aos huthis. Estes, após entrarem na capital, estabeleceram uma ligação aérea Sanaa-Teerão.

Haverá invasão terrestre?
Paralelamente ao ataque aéreo, Riade impôs um bloqueio no estreito do Mar Vermelho. A coligação controla todo o espaço aéreo do Iémen e vários membros estão dispostos a entrar por terra, para proteger Aden. “Comparativamente aos países do Golfo, o Iémen tem pouquíssimo petróleo. Mas tem uma posição geoestratégica crucial, junto ao estreito Bab al-Mandab, que liga o Mar Vermelho ao Golfo de Aden e por onde transitam 3800 milhões de barris de petróleo por dia”, explica Almeida. Iniciado o ataque, o petróleo subia 6%.

Onde anda Saleh?
Deposto em 2012, durante a Primavera Árabe, o ditador Ali Abdullah Saleh é um dos protagonistas desta crise. Influente junto de muitos sectores iemenitas, Saleh está ao lado… dos huthis, que reprimiu e contra quem, desde 2004, travou seis guerras no norte. O investigador Brian Whitaker (autor do blogue “Al-Bab”) diz ao “Expresso”: “Parece que Saleh quer colocar o filho na presidência”. O milionário iemenita Hamid al-Ahmar anunciou uma recompensa de 50 milhões de riais iemenitas (212 mil euros) pela sua captura. Convém lembrar que antes de sair do poder, Saleh garantiu imunidade judicial…

O que resta da ‘Primavera’?
O Iémen foi um dos países tocados pela Primavera Árabe e aquele que, juntamente com Tunísia, Egito e Líbia, viu a vontade popular sobrepor-se e determinar a saída do poder de um ditador. Mas quatro anos depois, não há consequências positivas desse movimento. “Não há sequer a satisfação de ver um ditador ilegítimo como Saleh afastado do poder”, conclui o analista Manuel Castro e Almeida.

COLIGAÇÃO

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países participam na operação “Tempestade Decisiva”: Arábia Saudita (líder), Egito, Jordânia, Qatar, Kuwait, Bahrain, Emirados, Marrocos, Sudão e Paquistão

Artigo publicado no Expresso, a 28 de março de 2015

Ataque ao Iémen

Uma coligação liderada pela Arábia Saudita começou a bombardear o vizinho Iémen. O objetivo é acabar com o poder dos rebeldes houthis, que controlavam a capital, ameaçavam tomar Aden e são apoiados pelo Irão. Mais um conflito revelador da grande rivalidade geopolítica do Médio Oriente: Arábia Saudita versus Irão

INFOGRAFIA SOFIA MIGUEL ROSA

Dez países liderados pela Arábia Saudita lançaram, às primeiras horas de quinta-feira, uma operação militar no Iémen. A “Tempestade Decisiva”, como é chamada a missão, visa “defender e apoiar o Governo legítimo do Iémen e impedir que o movimento radical houthi assuma o controlo do país”, esclareceu Adel al-Jubair, embaixador saudita nos Estados Unidos.

Aviões da coligação alvejaram a base aérea de Al-Daylami, o aeroporto internacional a norte de Sanaa, bem como o complexo presidencial, que estava nas mãos dos rebeldes houthis (xiitas) desde janeiro. Registaram-se bombardeamentos também nas províncias de Sa’dah, Lahj e Taiz.

A Arábia Saudita controla o espaço aéreo do Iémen, impôs um bloqueio naval no estreito do Mar Vermelho e, segundo o “Yemen Times”, já há 25 mortos confirmados — um número provisório em virtude da continuidade dos bombardeamentos.

O ataque começou horas após o Presidente do Iémen, Abd-Rabbu Mansour, ter apelado ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, ao Conselho de Cooperação do Golfo e à Liga Árabe a uma intervenção internacional para conter “a agressão dos houthis”. Estes dominavam a capital desde setembro e tinham em curso uma ofensiva para sul, na direção de Aden, onde se refugiara o Governo iemenita após os houthis tomarem o palácio presidencial.

A avançada houthi iniciou-se aos quatro ataques suicidas de sexta-feira contra duas mesquitas de Sanaa, frequentadas pelos houthis, e que fizeram mais de 140 mortos. O ataque foi reivindicado pelo autodenominado Estado Islâmico, mas muitos especialistas denunciam uma tentativa de oportunismo por parte dos jiadistas, apontando antes o dedo à Al-Qaeda na Península Arábica (AQPA), sedeada no Iémen.

Após a chacina nas mesquitas, os houthis prometeram combater o “extremismo sunita”.

INFOGRAFIA SOFIA MIGUEL ROSA

Desde Washington, o embaixador saudita disse esta quinta-feira que, por enquanto, a operação vai resumir-se a bombardeamentos aéreos, mas que a coligação “fará o que for necessário”. Segundo a televisão Al-Arabiya, a Arábia Saudita já tem mobilizadas 150 mil tropas.

“Acho e espero que não haja uma ofensiva terrestre”, diz ao Expresso Manuel Almeida, ex-editor do influente jornal árabe “Asharq Al-Awsat”. “Vai depender da reação dos houthis, que num primeiro momento vai ser inevitavelmente atacar a fronteira com a Arabia Saudita.”

“O Presidente Obama autorizou o fornecimento de informações e de apoio logístico às operações militares lideradas pelo Conselho de Cooperação do Golfo”, disse, em comunicado, Bernadette Meehan, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA. (O Conselho de Cooperação do Golfo é uma organização regional formada pela Arábia Saudita e pelas cinco petromonarquias na região do Golfo Pérsico.)

Inversamente aos EUA, o Irão — acusado de apoiar os houthis — condenou os ataques, considerando-os um “passo perigoso” que só agravará a crise no país. A posição de Teerrão não é uma surpresa. “Não tenho qualquer dúvida que os houthis são um grupo fortemente influenciado pelo Irão”, diz Manuel Almeida, colunista no sítio Al-Arabiya News. “Sem essa ligação, esta crise nunca teria assumido a atual proporção.”

Sauditas e iranianos protagonizam a grande e histórica rivalidade no Médio Oriente. A Arábia Saudita é o gigante sunita, simultaneamente guardiã das mesquitas sagradas de Meca e Medina. O Irão, que tem no poder um regime islamita desde 1979, é o contrapeso xiita. Paralelamente à rivalidade religiosa, há uma importante diferença cultural: os sauditas são árabes e os iranianos são persas.

Tudo isto os empurra para um braço de ferro geopolítico particularmente grave quando o palco do conflito é a região do Golfo. Há quatro anos, no contexto da Primavera Árabe, tanques e tropas sauditas invadiram o Bahrain, quando a população de maioria xiita contestava nas ruas a dinastia reinante dos Al Khalifa (sunita), que os sauditas defenderam.

A ameaça xiita às portas da Arábia Saudita — é esta a forma como é sentida em Riade — volta a manifestar-se agora, desencadeando nova intervenção militar, desta vez no Iémen.

Uma visita ao Irão, que tudo mudou

Mas nem sempre estes rebeldes foram um peão do Irão. Liderados por Abdul-Malik al-Houthi, os houthis (cuja designação vem do nome do chefe) são os zaydis do norte do Iémen que, nos anos 70, protestavam contra a discriminação de que eram alvo por parte do Governo e também contra o avanço do salafismo (uma doutrina sunita ultra-convervadora e, em muitos casos, radical) que ameaçava a sua identidade zaydi — xiitas em termos religiosos mas próximos dos sunitas do ponto de vista doutrinário.

“Nessa altura, eram um movimento puramente local com reivindicações razoáveis e legítimas”, explica Manuel Almeida. “O momento de mudança aconteceu quando o seu líder na altura fugiu do Iémen e passou um longo período no Irão. Quando regressou, em meados dos anos 90, criou um novo grupo caracterizado por uma agenda muito mais ativista e radical, baseado no revivalismo da identidade zaydi.”

Simultaneamente às reivindicações dos houthis e à presença no território do braço mais ativo da Al-Qaeda — que reivindicou o ataque contra o “Charlie Hebdo”, por exemplo —, também contribui para o barril de pólvora iemenita o facto de ser um dos países mais pobres do mundo. Segundo as Nações Unidas, cerca de dois terços da população — o que corresponde a cerca de 15 milhões de pessoas — necessitam de ajuda humanitária.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de março de 2015. Pode ser consultado aqui

Bombardeados pelos vizinhos

Uma coligação de dez países do Médio Oriente e Norte de África, liderada pela Arábia Saudita, desencadeou a operação “Tempestade Decisiva” contra o Iémen. Bombardeamentos aéreos têm visado posições houthis em várias partes do país

Os houthis são uma minoria iemenita de credo xiita que controlava a capital, Sanaa, desde setembro. Os Estados Unidos apoiam a operação militar. Já o Irão, que é um aliado dos houthis, condenou o ataque, dizendo tratar-se de um “passo errado” que pode agravar a crise em que o país vive desde o verão.

O Iémen é um dos países mais pobres do mundo e alberga a Al-Qaeda na Península Arábica, o ramo mais ativo da organização terrorista. Reivindicou o ataque contra o “Charlie Hebdo”, por exemplo.

Geograficamente, o país situa-se junto ao Estreito de Aden, por onde passa uma das mais importantes rotas comerciais por mar. 

Razões mais do que suficientes para colocar todo o mundo em alerta.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de março de 2015. Pode ser consultado aqui

Houthis avançam para sul. E Presidente foge… outra vez

Refugiado em Aden, Abed Rabbo Mansour Hadi fugiu para parte incerta, ameaçado pelo avanço dos rebeldes houthis. Horas antes, apelou à ONU que autorize uma intervenção militar no país

O Presidente do Iémen fugiu esta quarta-feira do palácio onde vivia refugiado, na cidade de Aden (sul). Abed Rabbo Mansour Hadi seguiu para parte incerta, após os rebeldes houthis (minoria xiita que controla a capital desde setembro) terem avançado para sul e tomado a base aérea Al-Annad, a cerca de 60 quilómetros da cidade portuária de Aden, temporariamente transformada na capital do país.

Esta instalação militar era usada por tropas norte-americanas e europeias e era crucial para o desenvolvimento de operações com drones (aviões não tripulados) contra a Al-Qaeda na Península Arábica (AQPA), instalada no leste do Iémen. 

Recentemente, os Estados Unidos retiraram cerca de 100 militares ali estacionados após a AQPA ter conquistado uma cidade nos arredores. Também o Reino Unido retirou o seu pessoal. 

Segundo a AFP, citando um membro da guarda presidencial, o Presidente fugiu para o estrangeiro, a bordo de um helicóptero. Controlada pelos houthis, a televisão estatal anunciou uma recompensa de 20 milhões de riais iemenitas (85 mil euros) pela captura do Presidente.

Quem não conseguiu escapar foi o ministro da Defesa, Mahmoud al-Subaihi, detido pelos houthis na cidade de Lahj (sul), onde decorrem combates entre grupos rivais. 

As forças leais ao Presidente estavam em estado de alerta após a conquista, pelos houthis da cidade de Taiz, no domingo passado, considerada a “porta de entrada” no sul do Iémen. Segundo a Associated Press, milícias e unidades militares afetas ao Presidente “fragmentaram-se”, facilitando assim o avanço dos houthis.

Sauditas reforçam dispositivo militar junto à fronteira

Na terça-feira, numa carta enviada ao Conselho de Segurança da ONU, o Presidente iemenita instou o órgão a autorizar uma intervenção militar no Iémen para travar “a agressão dos houthis”. Hadi também pediu ajuda ao Conselho de Cooperação do Golfo (Arábia Saudita e as cinco petromonarquias) e à Liga Árabe.

A ofensiva houthi para sul foi declarada após os atentados suicidas, na semana passada, contra duas mesquitas frequentadas pelos houthis em Sana’a. O líder do grupo, Abdel-Malik al-Houthi, ordenou a mobilização geral das suas forças com o objetivo de combater a AQPA e outros grupos armados.

O Iémen é um dos países mais pobres do mundo e corre sérios riscos de mergulhar numa guerra civil generalizada, que pode arrastar toda a vizinhança: os houthis são xiitas como o poder no Irão (de quem recebem apoio), mas todas as lideranças da Península Arábica são sunitas.

Duas fontes do Governo dos EUA avançaram à agência Reuters que a Arábia Saudita está a deslocar equipamento militar pesado para junto da sua fronteira com o Iémen. “Se o golpe houthi não terminar pacificamente, nós tomaremos as medidas necessárias para proteger a região”, disse o ministro saudita dos Negócios Estrangeiros, Saud al-Faisal.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de março de 2015. Pode ser consultado aqui