Mulheres contra a (in)justiça saudita

Raif Badawi foi condenado a dez anos de prisão e mil chicotadas. Três mulheres em três países defendem o bloguista dia e noite. O Expresso falou com elas 

Uma vive no Canadá, outra na Arábia Saudita, a terceira na Suíça. A partir de três continentes, estas mulheres movem mundos para libertar Raif Badawi, o bloguista saudita de 31 anos condenado a dez anos de prisão e mil chicotadas, em séries de 50 durante 20 sextas-feiras. O Expresso falou com elas — esposa, irmã e porta-voz de Raif — sobre o caso que as mobiliza, revelador dos limites à liberdade de expressão no reino saudita.

Após as primeiras 50 vergastadas, desferidas a 9 de janeiro, numa praça de Jeddah, não mais Raif voltou a ser punido. Oficialmente, o seu corpo ainda não recuperou das feridas provocadas pelo primeiro castigo. A sua porta-voz faz outra leitura: “Creio que isso decorre dos protestos internacionais que se seguiram ao anúncio das chicotadas”, diz Elham Manea, 48 anos, que vive em Berna.

“Um jovem intelectual foi chicoteado por expressar uma opinião. As ações de cidadãos em todo o mundo, da Amnistia Internacional bem como os comunicados de líderes mundiais pararam a continuação do castigo. Esperemos que o Governo saudita reconheça que Raif Badawi foi alvo de uma caça às bruxas por parte das autoridades religiosas, que criticara. E que o libertem.”

“A Arábia Saudita é membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU. É tempo de respeitar as obrigações”, ELHAM MANEA, porta-voz (foto do meio)

Quando fazer ‘like’ é crime

O sucessivo adiamento das vergastadas é uma boa nova relativa uma vez que, entretanto, um novo processo contra Raif começou a ganhar forma na justiça: um julgamento por apostasia (renúncia ou abandono de uma crença religiosa) que poderá resultar na condenação à morte por decapitação.

“O tribunal é controlado por conservadores que estão zangados porque as chicotadas pararam”, comenta a ativista, de nacionalidade suíça e iemenita. “Voltar a julgar Raif é uma forma de dizerem que são importantes. A bola está agora do lado do Governo, que tem de mostrar quem manda. Um novo julgamento por apostasia será um embaraço” para Riade.

Entre as provas que incriminam Raif Badawi está um ‘like’ que fez numa página do Facebook sobre árabes cristãos.

Tertúlias na sala de estar

Samar Badawi é irmã de Raif e sofre duplamente — pelo irmão e pelo marido, também ele atrás das grades. “A minha família tem sido um alvo da justiça. Não por razões pessoais, mas devido ao exercício da liberdade de opinião e de expressão e por desenvolver ações em defesa dos direitos humanos”, diz Samar, 34 anos. “Há muitas famílias com vários membros presos.”

O marido, Walid Abu al-Khair, 35 anos, acérrimo defensor de uma monarquia constitucional (a dos Saud é absoluta), era advogado de Raif Badawi. É também um conhecido ativista. Quando as autoridades mandaram fechar o Bridges Cafe, em Jeddah, ponto de encontro de jovens que se envolviam em discussões sobre política, religião e direitos humanos, abriu a sala de estar de sua casa — que batizou de “smud” (“resistência”, em árabe) — às tertúlias. Em 2014, foi condenado a 15 anos de prisão por “minar o regime”, “incitar a opinião pública” e “insultar o sistema judicial”.

“As atividades em defesa dos direitos humanos na Arábia Saudita suscitam a ira do Governo”, SAMAR BADAWI, irmã (foto da direita)

A própria Samar foi presa em 2010 por desobediência ao pai, de quem fugira acusando-o de maus-tratos e de não lhe dar permissão para casar. O seu advogado foi Walid, o futuro marido. Samar não se limitou, porém, a defender-se e requereu, em tribunal, a mudança de tutor — na Arábia Saudita, todas as mulheres vivem sob a tutela de um homem. Quando saiu da prisão, o seu guardião passou a ser um tio paterno.

Em 2011, voltou a desafiar as autoridades, participando ativamente na campanha pelo direito das sauditas a conduzirem. Em 2012, recebeu de Hillary Clinton o Prémio Internacional Mulheres de Coragem, atribuído anualmente pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos.

Walid foi julgado ao abrigo de legislação antiterrorismo. “As ações em defesa dos direitos humanos suscitam a ira do Governo, que as criminaliza com leis antiterrorismo e de combate ao cibercrime. Prender durante muito tempo silencia os ativistas e obriga-os a parar. É difícil defender os direitos humanos dentro do país sem ter problemas.”

Samar optou por continuar a viver, e a lutar, na Arábia Saudita. Já a cunhada, Ensaf Haidar, 35 anos — mulher de Raif —, exilou-se no Canadá, com os três filhos menores, após a prisão do marido. A partir de lá desdobra-se em ações, vigílias e contactos para que Raif não seja esquecido. Há dias, ficou feliz com um telefonema do ministro dos Negócios Estrangeiros da Áustria. “Disse-me que ia a Genebra e falaria do caso de Raif no Conselho de Direitos Humanos da ONU.”

“Não parem de falar sobre estes casos. E façam vigílias em frente à embaixada saudita”, ENSAF HAIDAR, esposa (foto da esquerda)

As três mulheres multiplicam-se em apelos à solidariedade internacional. “É importante reconhecer que Raif e Walid simbolizam o desrespeito por direitos fundamentais na Arábia Saudita. Muitos prisioneiros de consciência, homens e mulheres, sofrem nas prisões por apenas expressarem uma opinião, criticando a hegemonia opressiva do sector religioso, exigindo igualdade de direitos, ou insistindo em reformas políticas pacíficas”, diz a porta-voz de Raif. “A Arábia Saudita é membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU. É tempo de respeitar as obrigações decorrentes das convenções internacionais sobre direitos humanos e tratar os seus cidadãos com dignidade.”

Ensaf, esposa de Raif, pede: “Não parem de falar” sobre estes casos. “E façam vigílias em frente à embaixada saudita.”

POTÊNCIA REGIONAL

SISTEMA POLÍTICO A Arábia Saudita é uma monarquia absoluta onde reina a dinastia dos Saud. A 23 de janeiro um novo rei foi entronizado, Salman bin Abdulaziz Al Saud, de 79 anos. Este país, com 29 milhões de habitantes, é 23 vezes maior do que Portugal.

RELIGIÃO Berço do Islão, o país alberga as cidades santas de Meca e Medina. O monarca saudita detém o título de “guardião das duas mesquitas sagradas”. O waabismo, corrente islâmica ultraconservadora, é a doutrina oficial do Estado.

GEOPOLÍTICA O reino saudita é o grande poder do mundo sunita, por contraponto ao vizinho Irão, o gigante xiita. Os dois países são rivais a outro nível: a Arábia Saudita é culturalmente árabe, o Irão é persa. Esses perfis ditam o seu posicionamento nas grandes questões regionais — da Primavera Árabe ao Daesh.

Artigo publicado no “Expresso”, a 14 de março de 2015

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