À beira da desagregação


Norte-sul, sunitas-xiitas, Estado-tribos. O Iémen é uma manta de retalhos étnico-religiosos prestes a explodir

O início dos bombardeamentos ao Iémen, na madrugada de quinta-feira, apanhou a ativista iemenita Elham Manea de cama — duplamente febril, por questões de saúde e pela situação do seu país (Elham vive na Suíça). O “Expresso” perguntou-lhe se teme a divisão do país. “Sim, tenho esse receio. Há muitas causas a contribuir, desde logo a perceção de que o sul é controlado pelo norte. Temo que uma separação conduza a outra guerra civil.”

Até 1990, o Iémen correspondia, na verdade, a dois países: o Iémen do Norte, com capital em Sanaa, herdeiro da colonização otomana; e o Iémen do Sul, com capital em Aden, uma antiga colónia britânica a que se sucedeu um regime marxista, que depauperou o território (sobretudo após o fim da URSS).

A questão da unidade do Iémen foi agora relançada após a tomada do palácio presidencial de Sanaa pelos huthis (minoria xiita), em janeiro passado, e a fuga do Presidente, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, para Aden (sul). “Penso que a desintegração não é inevitável, mas é uma possibilidade não necessariamente ao longo das linhas pré-1990”, diz ao “Expresso” Manuel Castro e Almeida, ex-editor do importante jornal árabe “Asharq Al-Awsat”.

“Várias províncias importantes, como Marib, recusam-se a fazer parte de um norte controlado pelos huthis. Hadramaut não quer ser parte de um sul independente. Isto acrescenta muita complexidade a uma possível fragmentação. O que é inevitável no futuro — e isto num cenário de uma solução negociada — é uma descentralização e federalização.”

Geografia do caos

Paralelamente ao poder central, coexistem no Iémen atores não estatais, nomeadamente tribos, que dificultam a emergência de um sentimento nacional. Por exemplo, as tribos de Marib — região rica em recursos (nomeadamente petróleo) — são um desafio constante ao Estado, e agora também aos huthis. Em Hadramaut, a Confederação Tribal Hadrami, que agupa várias tribos, partilha um sentimento secessionista, mas prefere a independência a unir-se ao sul, como acontecia antes de 1990. Outro exemplo é o Movimento Separatista do Sul.

A complexidade do Iémen não acaba aqui. A Al-Qaida na Península Arábica (que reivindicou o ataque ao “Charlie Hebdo” e é o ramo mais ativo da organização terrorista) está ali sediada e tem alianças estratégicas com várias tribos — umas para combater o poder central, outras os huthis.

Suspeita-se que tenha sido a Al-Qaida a responsável pelos quatro atentados suicidas de 20 de março, em Sanaa, contra duas mesquitas frequentadas pelos huthis (mais de 140 mortos), ainda que o ataque tenha sido reivindicado pelo autodenominado Estado Islâmico.

“A presença da Al-Qaida e do Estado Islâmico (por muito limitada que seja de momento) juntamente com o caos provocado pela guerra civil representam uma mistura explosiva com potenciais repercussões globais”, diz Manuel Castro e Almeida, atual colunista do sítio “Al-Arabiya News”.

“O descontentamento gerado pela deterioração da situação económica e social bem como o ressentimento da população maioritariamente sunita em relação ao avanço dos huthis (xiitas), que são vistos como um braço do Irão, torna-se uma ferramenta de recrutamento poderosa para os dois grupos.”

À conquista do sul

Os bombardeamentos ao Iémen, realizados por dez países muçulmanos, são o culminar de uma situação efervescente que se arrasta desde setembro, quando os huthis invadiram a capital. “Faremos tudo o que for possível para proteger o Governo legítimo do Iémen, impedir que se desmorone e fique sujeito aos perigos das milícias”, afirmou Adel al-Jubeir, embaixador da Arábia Saudita nos Estados Unidos, após anunciar em Washington o início da ofensiva. “A situação no Iémen é perigosa. Uma milícia com poder aéreo, armamento pesado e mísseis balísticos é algo sem precedentes.”

Conflito por procuração

A avançada huthi para sul, na direção de Aden, para onde o Governo se tinha mudado, seguiu-se aos atentados de dia 20, contra as mesquitas e ao assassínio, dois dias antes, do jornalista e ativista dos direitos humanos Abdulkarim al-Khaiwani, apoiante do movimento huthi.

Pelo caminho, tomaram Taiz, a terceira cidade, e reprimiram quem se lhes opôs: precisamente em Taiz, oito civis foram mortos quando participavam numa manifestação anti-huthi.

Ameaçado pela aproximação dos huthis, o Presidente Hadi fugiu de Aden. Com os bombardeamentos já em curso, surgiam imagens da sua chegada a Riade. A Arábia Saudita — o grande poder sunita da região, guardiã das mesquitas sagradas de Meca e Medina — não tolera protagonismos xiitas junto às suas fronteiras. Em 2011, no contexto da Primavera Árabe, enviou tanques para o Bahrain em defesa da família reinante dos Al-Khalifa (sunitas), contestados nas ruas pela população de maioria xiita.

Segundo a empresa norte-americana de análises IHS, desde a Primavera Árabe — e a queda dos ditadores na Tunísia, Egito, Líbia e Iémen —, a Arábia Saudita tornou-se o maior importador mundial de armamento. Em 2015, Riade prevê gastar 9800 milhões de dólares (8900 milhões de euros), mais 52% do que no ano passado.

Quatro anos após a intervenção saudita no Bahrain, o conflito no Iémen assemelha-se a uma nova guerra por procuração entre os dois rivais do Médio Oriente: Arábia Saudita (país árabe, muçulmano e sunita) e Irão (país persa, muçulmano e xiita). “Este conflito tem assumido, cada vez mais, essa forma, principalmente após a criação do movimento huthi, em meados dos anos 90, por influência ideológica do Irão”, diz Manuel Castro e Almeida.

“Os sauditas e outros países árabes já estão bastante preocupados com os avanços iranianos no Líbano (através do Hizbullah) e no Iraque (a maioria xiita subiu ao poder após o fim de Saddam Hussein), e ainda com o decisivo apoio que Teerão tem dado ao brutal regime de Bashar al-Assad (Síria). Não estão dispostos a aceitar outro cenário em que forças leais ao Irão controlem militarmente um país árabe.” Sem surpresa, Teerão condenou o ataque: “É um passo perigoso”.

P&R

Quem são os huthis?
Originalmente, são os zaydis do norte, grupo religioso xiita, mas doutrinariamente próximo dos sunitas. Desde os anos 70, protestavam contra a discriminação do Governo e contra o avanço do salafismo (doutrina sunita ultraconvervadora e, por vezes, radical) que ameaçava a identidade zaydi. “Eram um movimento local, com reivindicações razoáveis e legítimas”, diz Manuel Castro e Almeida. O ponto de viragem deu-se após o líder, Hussein Badreddin al-Houthi, passar um longo período no Irão. Regressou em meados dos anos 90 e criou um grupo armado — os huthis — com uma agenda ativista e radical, baseada no revivalismo zaydi. (O atual líder é Abdul-Malik al-Huthi, irmão de Hussein, morto em 2004.) Sucederam-se grandes protestos antigoverno marcados pelo slogan “Morte à América, Morte a Israel, Que os judeus sejam amaldiçoados, Vitória para o Islão”, inspirado na revolução iraniana (1979). “Hoje, são um grupo fortemente influenciado pelo Irão”, diz Almeida. “Sem esta ligação, a crise nunca teria esta dimensão.” O Irão dá armas e dinheiro aos huthis. Estes, após entrarem na capital, estabeleceram uma ligação aérea Sanaa-Teerão.

Haverá invasão terrestre?
Paralelamente ao ataque aéreo, Riade impôs um bloqueio no estreito do Mar Vermelho. A coligação controla todo o espaço aéreo do Iémen e vários membros estão dispostos a entrar por terra, para proteger Aden. “Comparativamente aos países do Golfo, o Iémen tem pouquíssimo petróleo. Mas tem uma posição geoestratégica crucial, junto ao estreito Bab al-Mandab, que liga o Mar Vermelho ao Golfo de Aden e por onde transitam 3800 milhões de barris de petróleo por dia”, explica Almeida. Iniciado o ataque, o petróleo subia 6%.

Onde anda Saleh?
Deposto em 2012, durante a Primavera Árabe, o ditador Ali Abdullah Saleh é um dos protagonistas desta crise. Influente junto de muitos sectores iemenitas, Saleh está ao lado… dos huthis, que reprimiu e contra quem, desde 2004, travou seis guerras no norte. O investigador Brian Whitaker (autor do blogue “Al-Bab”) diz ao “Expresso”: “Parece que Saleh quer colocar o filho na presidência”. O milionário iemenita Hamid al-Ahmar anunciou uma recompensa de 50 milhões de riais iemenitas (212 mil euros) pela sua captura. Convém lembrar que antes de sair do poder, Saleh garantiu imunidade judicial…

O que resta da ‘Primavera’?
O Iémen foi um dos países tocados pela Primavera Árabe e aquele que, juntamente com Tunísia, Egito e Líbia, viu a vontade popular sobrepor-se e determinar a saída do poder de um ditador. Mas quatro anos depois, não há consequências positivas desse movimento. “Não há sequer a satisfação de ver um ditador ilegítimo como Saleh afastado do poder”, conclui o analista Manuel Castro e Almeida.

COLIGAÇÃO

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países participam na operação “Tempestade Decisiva”: Arábia Saudita (líder), Egito, Jordânia, Qatar, Kuwait, Bahrain, Emirados, Marrocos, Sudão e Paquistão

Artigo publicado no Expresso, a 28 de março de 2015

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