Tropas americanas não retiram para já

O Presidente afegão pediu e Barack Obama acedeu. Cerca de 10 mil militares norte-americanos continuarão no Afeganistão até ao fim de 2016

De visita aos Estados Unidos, o Presidente afegão, Ashraf Ghani, ouviu o Presidente Barack Obama voltar atrás na promessa de que retiraria o contingente norte-americano do Afeganistão até ao fim do seu mandato.

Em vez de reduzir o número de militares dos atuais 9800 para 5500 até ao final deste ano, como previsto, e finalizar a retirada em 2016, a Casa Branca concordou em atrasar o processo. 

Entre as razões para esse compromisso estão deficiências na atuação das forças de segurança afegãs, pesadas baixas entre militares e polícias, a fragilidade do Governo de Ashraf Ghani e também receios de que combatentes do autodenominado Estado Islâmico possam ganhar posições no interior do Afeganistão.

Para além dos 9800 militares norte-americanos, há ainda cerca de 3000 soldados da NATO no Afeganistão. As forças internacionais não estão envolvidas em operações de combate, mas são cruciais para as operações com drones (aviões não tripulados), nas áreas onde se concentram forças talibãs.  

Talibãs dos dois lados

Na terça-feira, um ataque com um drone norte-americano matou nove combatentes islamitas paquistaneses na província afegã de Nangarhar (leste), junto à fronteira com o Paquistão.

Cinco pertenciam ao grupo Lashkar-e-Islam, sedeado na área tribal de Khyber, e quatro eram comandantes do Tehrik-i-Taliban Pakistan, ou seja, os talibãs paquistaneses. No início de março, as duas fações anunciaram uma aliança.

Nascidos em 2007 com o objetivo de fazerem a jihad contra o Governo central do Paquistão, os talibãs paquistaneses, aos poucos, têm estendido a sua ação ao vizinho Afeganistão. Paralelamente aos talibãs, também a Rede Haqqani, sedeada no Paquistão, tem visado o Governo de Cabul e as tropas estrangeiras no Afeganistão.

Afeganistão e Paquistão acusam-se mutuamente de darem guarida a forças islamitas com o objetivo de desestabilizar o vizinho.

Porém, esta tradicional relação hostil entre Cabul e Islamabade vive uma fase de desanuviamento desde a eleição de Ashraf Ghani para a presidência do Afeganistão, em setembro de 2014.

Em finais do ano passado, o primeiro-ministro paquistanês, Nawaz Sharif, declarou o seu apoio aos esforços do Presidente Ghani para sentar à mesa das negociações os talibãs afegãos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de março de 2015. Pode ser consultado aqui

Netanyahu ganhou. Contra tudo e contra todos

O chefe de Governo israelita fez uma corrida de trás para a frente e levou o seu Likud à vitória nas eleições legislativas. Perante sondagens adversas, Benjamin Netanyahu dramatizou o discurso e espantou o mundo com uma vitória que já poucos esperavam

Estou emocionado com a pesada responsabilidade que o povo de Israel colocou sobre os meus ombros”, disse Benjamin Netanyahu esta quarta-feira, junto ao Muro das Lamentações, o local mais sagrado para os judeus, escassas horas após vencer as eleições legislativas. “Agradeço muito a decisão dos cidadãos israelitas de me escolherem contra todas as probabilidades.”

Contrariando todas as sondagens, que apontavam para uma vitória da coligação de centro-esquerda União Sionista, o Likud (direita), no poder, arrebatou a vitória, assegurando 30 lugares no próximo Parlamento israelita (120 lugares). A União Sionista elegeu 24 deputados e o seu líder, o trabalhista Yitzhak Herzog, já disse que não participará num governo de unidade nacional liderado por Netanyahu.

Por que razão a vitória de Netanyahu foi uma surpresa?

Durante semanas, as sondagens apontavam para um empate entre o seu Likud e a União Sionista, de Yitzhak Herzog. Num golpe polémico, Netanyahu foi a Washington — a convite da liderança republicana do Congresso dos EUA e à revelia da Casa Branca — onde proferiu um discurso agressivo contra o Irão e o seu programa nuclear. A manobra não surtiu efeitos e, nas sondagens, Bibi, como é conhecido, viu o rival de esquerda descolar para uma vitória quase certa. O primeiro-ministro apostou então na dramatização do seu discurso tentando atrair votos de vários partidos da direita: “Se não votarem no Likud, a esquerda vencerá”, alertou na véspera das eleições. Porém, a tirada que mais correu mundo foi: “Se eu for eleito, não haverá Estado palestiniano”, uma promessa claramente destinada a seduzir o eleitorado do Habayit Hayehudi (Casa Judaica), um partido de direita liderado por Naftali Bennett, atual ministro da Economia e opositor a uma Palestina independente.

Será Bibi o próximo primeiro-ministro?

A lei israelita diz que o Presidente do Estado deve convidar o membro do Parlamento com melhores condições para formar governo. Nunca, desde a fundação de Israel (1948), um partido obteve maioria absoluta e desta vez não foi exceção. O futuro passa por um governo de coligação e Netanyahu parece ser o melhor colocado para conseguir o apoio de uma maioria parlamentar. Minutos após o encerramento das urnas, o diário israelita “Haaretz” noticiava que Netanyahu e Naftali Bennett tinham concordado iniciar conversações. Na “esfera de influência” de Bibi está ainda o Yisrael Beytenu (extrema-direita), do ministro dos Negócios Estrangeiros Avigdor Lieberman, e dois partidos religiosos ultra-ortodoxos, o Shas e o Judaismo da Torah Unida. Todos somados, garantem 57 deputados. Ficam a faltar quatro para a maioria necessária, que Netanyahu tentará conseguir junto do Kulanu, um novo partido liderado por um ex-dissidente do Likud.

O que defende o Kulanu?

“Todos nós” é um projeto político de Moshe Kahlon, um ex-ministro do Likud que ocupou as pastas das Comunicações (2009-2013) e da Segurança Social (2011-2013) e que acabou com o monopólio no sector dos telemóveis, o que originou uma queda drástica dos preços das comunicações em Israel. Essa popularidade traduziu-se agora em 10 deputados eleitos. O Kulanu é o partido mais ao centro de todos os que conseguiram representação parlamentar e é o fiel da balança que pode decidir a cor do próximo governo israelita. Sensível às questões sociais, diz-se que Moshe Kahlon preferiria participar num executivo do trabalhista Herzog do que de Netanyahu — este, durante a campanha, ofereceu-lhe o ministério das Finanças.

Um dos mais prestigiados membros do Kulanu, Michael Oren, ex-embaixador de Israel nos EUA, afirmou: “Sei muito bem que um Irão com poder nuclear é uma ameaça existencial. Mas os israelitas consideram, de forma esmagadora, que o custo de vida neste país e o preço da habitação é a maior ameaça existencial de todas. A minha adesão a este partido foi uma espécie de ‘é a economia, estúpido’”.

Que representatividade conseguiram os israelitas árabes?

Cerca de 20% da população israelita é árabe. Nestas eleições, três partidos árabes foram a votos integrados numa coligação inédita — a Lista Árabe Unida, que foi a terceira formação mais votada, com 14 deputados. “Estamos a viver um momento histórico”, reagiu o líder da Lista Árabe, Ayman Odeh. “Tivemos a maior votação desde 1999. Vamos impedir Netanyahu de formar governo.” Porém, para os árabes, a sensação é agridoce, pois não conseguiram impedir a vitória do Likud. Paralelamente, há algum ceticismo relativamente à solidez da nova formação política, que engloba nacionalistas árabes, comunistas e islamitas. Muitos consideram-na mais uma aliança técnica do que um verdadeiro partido político.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 18 de março de 2015. Pode ser consultado aqui

Netanyahu declara vitória. Projeções dizem que há um empate em Israel

Israel foi a votos terça-feira. As projeções apontam para um empate entre Likud (direita) e União Sionista (centro-esquerda). Mas Netanyahu parece em boa posição para formar governo e continuar a ser primeiro-ministro

“Contra todas as probabilidades, uma grande vitória para o Likud, uma grande vitória para o campo nacionalista liderado pelo Likud, uma grande vitória para a nação de Israel”, congratulou-se Benjamin Netanyahu na sua página no Facebook, meia hora após o fecho das urnas.

As projeções avançadas pelas televisões apontam, porém, para um empate entre o Likud (direita) e a União Sionista (centro-esquerda), liderada pelo trabalhista Yitzhak Herzog, com 27 deputados cada, segundo a televisão Channel 10.

Outra televisão, Channel 2, dá uma vantagem de um parlamentar ao Likud.

Segundo o diário digital “The Times of Israel”, os resultados oficiais não deverão ser conhecidos antes de quinta-feira. 

Direita tem mais peso

Em Israel, o convite para formar governo é endereçado pelo Presidente, após ouvir as recomendações dos partidos, ao membro do Knesset com melhores condições para negociar uma coligação. Esse deputado não é necessariamente o líder do partido mais votado.

Segundo o diário “Haaretz”, Netanyahu e Naftali Bennett, líder da formação Habayit Hayehudi (Casa Judaica), de direita, concordaram, minutos após o fim da votação, iniciar conversações com vista à formação de um governo de coligação.

Todos somados, os deputados apontados ao Likud, ao Habayit Hayehudi, e ainda ao Yisrael Beytenu (extrema-direita), do ministro dos Negócios Estrangeiros Avigdor Lieberman, e aos ultra-ortodoxos do Shas totalizam 48 lugares no Parlamento (num total de 120 lugares).

Se Netanyahu conseguir o apoio do Kulanu (centro) e do Judaismo da Torah Unida (ultra-ortodoxo), obtém uma maioria de 63 deputados, suficiente para controlar a assembleia.

Árabes conseguem resultado histórico

As projeções colocam em terceiro lugar a Lista Árabe Unida, com 13 deputados, uma coligação inédita de três partidos árabes. (Cerca de 20% dos cidadãos israelitas são árabes.)

“Estamos a viver um momento histórico”, reagiu o líder da Lista Árabe, Ayman Odeh. “Tivermos a maior votação desde 1999. Vamos impedir Netanyahu de formar governo.”

A taxa de afluência às urnas foi de 71,8%, a mais alta participação eleitoral desde 1999. Os israelitas votaram durante 13 horas, até às 22 horas.

Segundo as projeções, dez partidos terão representação parlamentar.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de março de 2015. Pode ser consultado aqui

Netanyahu forçou eleições. E corre o risco de as perder

Israel vai a votos na terça-feira. As últimas sondagens apontam para a derrota do atual primeiro-ministro e para a vitória de uma coligação de esquerda. Resta saber quem terá mais condições para formar um governo de coligação — como sempre Israel tem sido governado desde a sua fundação

Bandeira do primeiro-ministro de Israel WIKIMEDIA COMMONS

QUE ELEIÇÕES SÃO ESTAS?

Exatamente 5.881.696 israelitas estão convocados para eleger, esta terça-feira, um novo Parlamento (Knesset). Regra geral, as legislativas em Israel decorrem de quatro em quatro anos — as últimas foram em 2013. Porém, estas são antecipadas, provocadas pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu que, em dezembro, solicitou a dissolução do Knesset. Bibi despedira dois membros do seu Governo (o ministro das Finanças, Yair Lapid, e a da Justiça, Tzipi Livni) a quem acusou de fazerem oposição interna. Lapid e Livni tinham-se oposto à compra de um avião oficial. A maioria das assembleias de voto abre às 7 da manhã e encerra às 10 da noite (mais duas horas do que em Lisboa).

HÁ UM VENCEDOR ANTECIPADO?

Durante largas semanas, as sondagens apontavam para um empate técnico entre o Likud (direita), de Netanyahu, e a União Sionista, nova coligação de centro-esquerda liderada pelo trabalhista Yitzhak Herzog e que engloba o Hatnua de Tzipi Livni. Na reta final da campanha, a União Sionista tomou a dianteira, sendo-lhe creditados 25 deputados, mais quatro do que o Likud. Ironicamente, a quebra do Likud seguiu-se ao polémico discurso do primeiro-ministro israelita no Congresso dos Estados Unidos, a 3 de março, à revelia da Casa Branca. Também não o ajudou vários escândalos relativos aos gastos do casal Netanyahu na residência oficial em Jerusalém. Várias ilegalidades têm sido apontadas, designadamente de que a primeira dama, Sara, terá ficado com o dinheiro do depósito de vasilhame das garrafas utilizadas na residência.

QUEM SERÁ PRIMEIRO-MINISTRO?

Netanyahu encabeça a lista do Likud. Yitzhak Herzog é o nº 1 da União Sionista e, em caso de vitória, rodará com Tzipi Livni, a sua nº 2, no cargo de primeiro-ministro. Porém, vencendo Likud ou União Sionista, isso não significa que os líderes serão automaticamente primeiro-ministro. Segundo a legislação, o Presidente israelita atribuirá a tarefa de formação de um novo governo ao membro do Knesset que considerar ter melhores condições para formar um governo de coligação viável. Até à data, nunca um partido conseguiu formar governo por si só. Nestas eleições não será exceção: o Knesset tem 120 membros, pelo que a maioria absoluta de 61 lugares está muito distante dos resultados atribuídos pelas sondagens aos dois principais partidos.

QUE PARTIDOS PODEM ELEGER DEPUTADOS?

Vinte e seis partidos submeteram uma lista de candidatos ao Comité Central de Eleições, mas para ter uma representação parlamentar cada partido terá de garantir 3,25% do total de votos expressos (até agora a fasquia estava nos 2%), o que corresponderá a quatro deputados. Segundo as sondagens, os partidos com hipótese de atingir essa fasquia são: Likud (direita) de Benjamin Netanyahu; União Sionista (centro-esquerda), de Yitzhak Herzog; Lista Árabe Unida, de Ayman Odeh; Yesh Atid (centro-esquerda), de Yair Lapid; Habayit Hayehudi (direita), de Naftali Bennett; Kulanu (centro), de Moshe Kahlon; Yisrael Beitenu (extrema-direita), de Avigdor Lieberman; Meretz (esquerda), de Zahava Gal-On; e três partidos ultra-ortodoxos: Shas, de Aryeh Deri, Judaismo da Torah Unida, de Yaakov Litzman, e Yahad, de Eli Yishai.

OS ISRAELITAS ÁRABES PODEM VOTAR?

Cerca de 20% da população israelita é de cultura árabe. Cidadãos do país, têm direito a votar como qualquer israelita judeu, desde que tenham 18 anos feitos. Os palestinianos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza não podem votar — o primeiro está ocupado por forças israelitas, o último é alvo de um bloqueiro israelita por terra, mar e ar. Já os colonos judeus da Cisjordânia têm direito a voto. Desde a criação de Israel, nunca um partido árabe integrou a coligação governamental, mas, nestas eleições, espera-se um forte aumento da participação dos eleitores árabes. Pela primeira vez, três formações árabes (Balad, Ta’al e Hadash, este um partido árabo-judaico) concorrem coligadas na Lista Árabe Unida, uma consequência da nova regra dos 3,25% que torna a formação de um grupo parlamentar mais difícil e os imulsionou para uma formação única. Segundo as sondagens, deverá ser a terceira maior representação no Knesset.

QUAIS OS PRINCIPAIS DESAFIOS INTERNACIONAIS DO NOVO PRIMEIRO-MINISTRO?

A nível internacional, surpreendentemente, a principal tarefa do futuro primeiro-ministro é recuperar a relação com o seu principal aliado. Seis anos de governação de Netanyahu degradaram como nunca a relação entre Israel e os Estados Unidos. Obama e Netanyahu veem-se, hoje, com grande desconfiança.

Uma segunda grande questão prende-se com o programa nuclear do Irão. Paralelamente ao distanciamento em relação a Telavive, Washington empenhou-se nas negociações com Teerão, que decorrem na Suíça, visando um primeiro acordo sobre o nuclear até ao final de março. Em Israel — potência nuclear não-oficial —, essa eventualidade causa calafrios. No recente discurso no Congresso norte-americano, Netanyahu disse a palavra “Irão” 107 vezes.

QUE FUTURO PARA O PROCESSO DE PAZ ISRAELO-PALESTINIANO?

Benjamin Netanyahu não abandonou a retórica oficial de “Dois Estados para dois povos”, mas na prática tudo fez para a inviabilizar, impulsionando a construção de colonatos na Cisjordânia e ordenando duas operações militares na Faixa de Gaza (2012 e 2014). O diálogo israelo-palestiniano é inexistente e as ações unilaterais dos palestinianos nas Nações Unidas são disso expressão. Tzipi Livni, a nº 2 da União Sionista é grande defensora da solução de dois Estados.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 16 de março de 2015, e republicado no “Expresso Online”, no dia seguinte . Pode ser consultado aqui e aqui

Mulheres contra a (in)justiça saudita

Raif Badawi foi condenado a dez anos de prisão e mil chicotadas. Três mulheres em três países defendem o bloguista dia e noite. O Expresso falou com elas 

Uma vive no Canadá, outra na Arábia Saudita, a terceira na Suíça. A partir de três continentes, estas mulheres movem mundos para libertar Raif Badawi, o bloguista saudita de 31 anos condenado a dez anos de prisão e mil chicotadas, em séries de 50 durante 20 sextas-feiras. O Expresso falou com elas — esposa, irmã e porta-voz de Raif — sobre o caso que as mobiliza, revelador dos limites à liberdade de expressão no reino saudita.

Após as primeiras 50 vergastadas, desferidas a 9 de janeiro, numa praça de Jeddah, não mais Raif voltou a ser punido. Oficialmente, o seu corpo ainda não recuperou das feridas provocadas pelo primeiro castigo. A sua porta-voz faz outra leitura: “Creio que isso decorre dos protestos internacionais que se seguiram ao anúncio das chicotadas”, diz Elham Manea, 48 anos, que vive em Berna.

“Um jovem intelectual foi chicoteado por expressar uma opinião. As ações de cidadãos em todo o mundo, da Amnistia Internacional bem como os comunicados de líderes mundiais pararam a continuação do castigo. Esperemos que o Governo saudita reconheça que Raif Badawi foi alvo de uma caça às bruxas por parte das autoridades religiosas, que criticara. E que o libertem.”

“A Arábia Saudita é membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU. É tempo de respeitar as obrigações”, ELHAM MANEA, porta-voz (foto do meio)

Quando fazer ‘like’ é crime

O sucessivo adiamento das vergastadas é uma boa nova relativa uma vez que, entretanto, um novo processo contra Raif começou a ganhar forma na justiça: um julgamento por apostasia (renúncia ou abandono de uma crença religiosa) que poderá resultar na condenação à morte por decapitação.

“O tribunal é controlado por conservadores que estão zangados porque as chicotadas pararam”, comenta a ativista, de nacionalidade suíça e iemenita. “Voltar a julgar Raif é uma forma de dizerem que são importantes. A bola está agora do lado do Governo, que tem de mostrar quem manda. Um novo julgamento por apostasia será um embaraço” para Riade.

Entre as provas que incriminam Raif Badawi está um ‘like’ que fez numa página do Facebook sobre árabes cristãos.

Tertúlias na sala de estar

Samar Badawi é irmã de Raif e sofre duplamente — pelo irmão e pelo marido, também ele atrás das grades. “A minha família tem sido um alvo da justiça. Não por razões pessoais, mas devido ao exercício da liberdade de opinião e de expressão e por desenvolver ações em defesa dos direitos humanos”, diz Samar, 34 anos. “Há muitas famílias com vários membros presos.”

O marido, Walid Abu al-Khair, 35 anos, acérrimo defensor de uma monarquia constitucional (a dos Saud é absoluta), era advogado de Raif Badawi. É também um conhecido ativista. Quando as autoridades mandaram fechar o Bridges Cafe, em Jeddah, ponto de encontro de jovens que se envolviam em discussões sobre política, religião e direitos humanos, abriu a sala de estar de sua casa — que batizou de “smud” (“resistência”, em árabe) — às tertúlias. Em 2014, foi condenado a 15 anos de prisão por “minar o regime”, “incitar a opinião pública” e “insultar o sistema judicial”.

“As atividades em defesa dos direitos humanos na Arábia Saudita suscitam a ira do Governo”, SAMAR BADAWI, irmã (foto da direita)

A própria Samar foi presa em 2010 por desobediência ao pai, de quem fugira acusando-o de maus-tratos e de não lhe dar permissão para casar. O seu advogado foi Walid, o futuro marido. Samar não se limitou, porém, a defender-se e requereu, em tribunal, a mudança de tutor — na Arábia Saudita, todas as mulheres vivem sob a tutela de um homem. Quando saiu da prisão, o seu guardião passou a ser um tio paterno.

Em 2011, voltou a desafiar as autoridades, participando ativamente na campanha pelo direito das sauditas a conduzirem. Em 2012, recebeu de Hillary Clinton o Prémio Internacional Mulheres de Coragem, atribuído anualmente pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos.

Walid foi julgado ao abrigo de legislação antiterrorismo. “As ações em defesa dos direitos humanos suscitam a ira do Governo, que as criminaliza com leis antiterrorismo e de combate ao cibercrime. Prender durante muito tempo silencia os ativistas e obriga-os a parar. É difícil defender os direitos humanos dentro do país sem ter problemas.”

Samar optou por continuar a viver, e a lutar, na Arábia Saudita. Já a cunhada, Ensaf Haidar, 35 anos — mulher de Raif —, exilou-se no Canadá, com os três filhos menores, após a prisão do marido. A partir de lá desdobra-se em ações, vigílias e contactos para que Raif não seja esquecido. Há dias, ficou feliz com um telefonema do ministro dos Negócios Estrangeiros da Áustria. “Disse-me que ia a Genebra e falaria do caso de Raif no Conselho de Direitos Humanos da ONU.”

“Não parem de falar sobre estes casos. E façam vigílias em frente à embaixada saudita”, ENSAF HAIDAR, esposa (foto da esquerda)

As três mulheres multiplicam-se em apelos à solidariedade internacional. “É importante reconhecer que Raif e Walid simbolizam o desrespeito por direitos fundamentais na Arábia Saudita. Muitos prisioneiros de consciência, homens e mulheres, sofrem nas prisões por apenas expressarem uma opinião, criticando a hegemonia opressiva do sector religioso, exigindo igualdade de direitos, ou insistindo em reformas políticas pacíficas”, diz a porta-voz de Raif. “A Arábia Saudita é membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU. É tempo de respeitar as obrigações decorrentes das convenções internacionais sobre direitos humanos e tratar os seus cidadãos com dignidade.”

Ensaf, esposa de Raif, pede: “Não parem de falar” sobre estes casos. “E façam vigílias em frente à embaixada saudita.”

POTÊNCIA REGIONAL

SISTEMA POLÍTICO A Arábia Saudita é uma monarquia absoluta onde reina a dinastia dos Saud. A 23 de janeiro um novo rei foi entronizado, Salman bin Abdulaziz Al Saud, de 79 anos. Este país, com 29 milhões de habitantes, é 23 vezes maior do que Portugal.

RELIGIÃO Berço do Islão, o país alberga as cidades santas de Meca e Medina. O monarca saudita detém o título de “guardião das duas mesquitas sagradas”. O waabismo, corrente islâmica ultraconservadora, é a doutrina oficial do Estado.

GEOPOLÍTICA O reino saudita é o grande poder do mundo sunita, por contraponto ao vizinho Irão, o gigante xiita. Os dois países são rivais a outro nível: a Arábia Saudita é culturalmente árabe, o Irão é persa. Esses perfis ditam o seu posicionamento nas grandes questões regionais — da Primavera Árabe ao Daesh.

Artigo publicado no “Expresso”, a 14 de março de 2015