Sete semanas de bombardeamentos não trouxeram ganhos à coligação liderada pelos sauditas nem enfraqueceram o poder dos huthis
“Governar o Iémen é como dançar sobre cabeças de serpentes.” A frase pertence a Ali Abdullah Saleh e foi dita em 2009, durante uma entrevista do então Presidente iemenita ao jornal “Al-Hayat”, de Londres. Saleh levava 31 anos no poder e, atendendo ao facto de dois antecessores terem sido assassinados, ninguém diria que se aguentasse tanto tempo.
Saleh seria deposto dois anos depois, no contexto da Primavera Árabe. Fugiu para a Arábia Saudita e voltou ao Iémen. Hoje, continua a lutar pelo poder (para lá colocar um filho, diz-se) e conta, para essa missão, com o apoio de um aliado improvável — os huthis, contra quem Saleh travou várias guerras durante a sua longa presidência.
Saleh-huthis é apenas um dos exemplos das ‘danças’ arriscadas a que o ex-Presidente se referia. Outras combinações possíveis envolvem outras “serpentes” à solta no território iemenita — tribos problemáticas, grupos jiadistas, os separatistas do sul e todos aqueles que Saleh considerar uma ameaça à sua influência.
Guardas abrem alas aos rebeldes
Desde 26 de março que huthis e forças leais ao ex-Presidente são o alvo prioritário dos bombardeamentos da coligação liderada pela Arábia Saudita. No domingo, a residência de Saleh, em Sana’a, foi destruída pelas bombas. “Continuem a levantar as armas, preparem-se para sacrificar as vossas vidas na defesa contra estes ataques”, disse Saleh aos huthis, num vídeo gravado em frente aos escombros.
“Esta agressão é um ato de cobardia. Se são assim tão valentes, venham e enfrentem-nos no campo de batalha, venham e cá vos esperaremos. Bombardear com foguetes e caças não chega para conseguirem os vossos objetivos.”
Saleh não o disse mas com estas palavras formalizou a aliança com a milícia xiita, que já era percetível desde o início da crise. Um relatório do Conselho de Segurança da ONU de 20 de fevereiro refere que em setembro de 2014, quando, vindos do Norte, avançaram sobre a capital, “os huthis receberam ajuda explícita de Guardas Republicanos, organizada por membros da família de Saleh”, que assim escancararam as portas de Sana’a (que estava guardada por 100 mil guardas e reservistas) aos rebeldes.
Amanhã termina uma trégua de cinco dias aceite pelas partes em confronto e declarada com o intuito de ser prestada assistência humanitárias às populações. No Twitter, David Miliband, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros de Gordon Brown, anunciava, na quarta-feira, que a organização humanitária que dirige (International Rescue Committe) conseguiu entregar um carregamento de medicamentos a um hospital de Aden, no sul.
“Os bombardeamentos de caças sauditas e os ataques huthis e tribais contra o território da Arábia Saudita pararam. Mas combates difusos continuam por todo o país”, escreve o advogado Haykal Bafana, que vive em Sana’a, na mesma rede social.
Bombardeamentos inconclusivos
Sete semanas de ataques aéreos não alteraram — nem clarificaram — a relação de forças no terreno. A ONU já confirmou a morte de 828 civis, mas o número peca por defeito; a Freedom House Foundation avançou ontem com quase 4000 mortos. A tragédia humana não se fica, porém, por aqui. No início da semana, a Human Rights Watch (HRW) alertou para o aumento do recrutamento, treino e destacamento de crianças por parte dos huthis. Os menores são pagos com comida e folhas de qat, uma planta que, mascada, funciona como um estimulante suave, e que é uma instituição cultural no Iémen.
No comunicado, a HRW conta o caso de Ibrahim, de 16 anos, incentivado a juntar-se aos huthis pela família, que lhe ofereceu uma Kalashnikov (as munições ficam por conta dos rebeldes). No Iémen, o uso de crianças nos combates não é exclusivo dos huthis: tribos e jiadistas também o fazem.
Tudo conflui para um conflito de contornos únicos e solução complexa. “A política iemenita é complicada e exótica, com mudanças de alianças em que antigos inimigos se abraçam e velhos amigos envidam esforços para se matarem uns aos outros”, escreveu o prestigiado jornalista Patrick Cockburn no jornal “The Independent”. “O colapso de um país num estado de guerra permanente originará vagas de boat-people na direção da Europa Ocidental e de outros sítios em busca de refúgio. É absurdo que os líderes europeus finjam que estão a fazer alguma coisa em matéria de ‘terrorismo’ ou do afogamento de refugiados no Mediterrâneo quando ignoram as guerras que são as causas profundas destes fenómenos.” Para Cockburn, o ataque saudita ao Iémen aumentará o terrorismo e o número de barcos a transbordar de gente desesperada.
PAÍS EM GUERRA
828
civis mortos foram confirmados pela ONU no Iémen, 182 dos quais eram crianças. A OMS aponta para um total de quase 1500 e a Freedom House Foundation refere quase 4000
40
a 60 milhões de armas estão distribuídas por todo o território iemenita, estima a ONU. O país tem cerca de 26 milhões de habitantes
90%
dos cereais consumidos no Iémen são importados. Por estes dias, não há navios comerciais a atracar nos portos iemenitas — os sauditas impuseram um bloqueio naval
20%
da área de cultivo irrigada está plantada com qat. O abastecimento hídrico do Iémen depende quase exclusivamente dos lençóis freáticos, mas os peritos receiam que o país fique sem água dentro de uma década
QUATRO ANOS AGITADOS
NO SUL DA PENÍNSULA ARÁBICA
27 de fevereiro de 2011
Na sequência da Primavera Árabe o Presidente Ali Abdullah Saleh é posto em causa após 32 anos no poder. Ferido em junho, abandona o país.
27 de fevereiro de 2012
Mansour Hadi que fora vicepresidente de Saleh e era candidato único, é eleito Presidente do Iémen.
14 de janeiro de 2014
Al-Qaida da Península Arábica tenta explorar atentado do “Charlie Hebdo”, em Paris, dizendo que os irmãos Kouachi agiram por ordem sua.
Setembro 2014
Rebeldes huthis conquistam a capital, Sana’a, e o Presidente Mansour Hadi abandona a cidade. A Al-Qaida na Península Arábica (AQPA), inimiga dos huthis, faz uma declaração demarcando-se das “barbaridades do Daesh na Síria e Iraque” mas exortando ao combate contra os EUA que têm levado a cabo ataques com drones no país.
17 de outubro de 2014
Carro-bomba de suicidas da AQPA explode num posto de controlo numa estrada entre a cidade de Rada’a (Al Bayda) e a província de Zemar, matando dezenas de milicianos huthis e crianças de um autocarro escolar que passava na altura.
11 de fevereiro de 2015
EUA, Reino Unido e França fecham embaixadas no Iémen.
25 de março de 2015
Coligação liderada pela Arábia Saudita inicia campanha aérea em apoio do Presidente em exercício, forçado a fugir da cidade portuária de Aden, prestes a ser tomada pelas milícias dos huthis e seus aliados.
17 de abril de 2015
AQPA aproveita a luta entre rebeldes e forças governamentais para conquistar a base de Mukalla, no sudeste do país, assenhoreando-se de artilharia e carros de combate.
10 de maio de 2015
Caça F16 marroquino ao serviço da coligação internacional cai no Iémen, provavelmente abatido pelos rebeldes.
12 de maio de 2015
Negociada trégua de cinco dias entre os huthis e a coligação saudita que, em geral, é respeitada e permite o envio de alguma ajuda humanitária.
13 e 14 de maio de 2015
Realiza-se em Camp David, EUA, uma reunião do Conselho de Cooperação do Golfo, onde a Arábia Saudita opta por estar ausente, e durante a qual o Presidente Obama tentou sensibilizar os seus interlocutores para as vantagens regionais de um desanuviamento.
(Foto: Vista aérea de Sana’a, a capital do Iémen YEOWATZUP, DE KATLENBURG-LINDAU, ALEMANHA / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso”, a 16 de maio de 2015
