O silêncio da Nobel da Paz

Aung San Suu Kyi tem sido criticada por não falar dos rohingya, mas neste país fazê-lo pode custar uma carreira política

Selo norueguês dedicado a Aung San Suu Kyi, Nobel da Paz 1991

Treze anos após ter recebido o Prémio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi é cada vez mais contestada por reagir ao drama dos rohingya… com silêncio. “A questão dos rohingya é difícil não só para Aung San Suu Kyi mas para todos os políticos birmaneses. Nenhum líder político, incluindo os ativistas pró-democracia, tem coragem suficiente para falar do problema”, explicou ao Expresso Akihisa Matsuno, professor na Universidade de Osaca (Japão), perito em assuntos do Sudeste Asiático. “Os birmaneses budistas mas também minorias étnicas que têm lutado pela autonomia ou pela autodeterminação não olham para os rohingya como compatriotas, mas como estrangeiros (bangladeshianos). Nisso estão todos de acordo.”

Desafiar essa retórica tão profundamente enraizada na sociedade trará inevitavelmente consequências. “Se Aung San Suu Kyi falar dos rohingya, ela e a sua Liga Nacional para a Democracia (o principal partido da oposição) perderão apoio interno, o que afetará a popularidade de todo o movimento democrático”, refere Matsuno. “Para os políticos birmaneses, falar dos rohingya significa o fim das suas carreiras políticas.”

Em novembro, a Birmânia realizará eleições parlamentares. Depois, um colégio eleitoral escolherá o próximo chefe de Estado. Suu Kyi, que fará 70 anos a 19 de junho, está impedida de se candidatar a Presidente ou vice-presidente — os seus filhos não têm nacionalidade birmanesa (são britânicos). Para alterar essa cláusula na Constituição é necessário o apoio de mais de 75% dos deputados — 25% dos parlamentares são nomeados pelos militares no poder.

“Não posso provar que o regime esteja a incitar à violência em Rakhine, mas intencionalmente não toma medidas contra a escalada. Deixa que aconteça e explora o sentimento popular de que, quem apoia os ‘estrangeiros’ não tem patriotismo para liderar o país”, explica Matsuno. “O regime pode ter a secreta esperança de que Aung San Suu Kyi mencione os rohingya num deslize. É sabido que o regime tem um histórico de tentativas de descrédito de Suu Kyi com o trunfo nacionalista. É muito provável que, neste caso, espere ter o mesmo efeito.”

Artigo publicado no Expresso, a 30 de maio de 2015

Voando sobre um ninho de serpentes

Sete semanas de bombardeamentos não trouxeram ganhos à coligação liderada pelos sauditas nem enfraqueceram o poder dos huthis

Governar o Iémen é como dançar sobre cabeças de serpentes.” A frase pertence a Ali Abdullah Saleh e foi dita em 2009, durante uma entrevista do então Presidente iemenita ao jornal “Al-Hayat”, de Londres. Saleh levava 31 anos no poder e, atendendo ao facto de dois antecessores terem sido assassinados, ninguém diria que se aguentasse tanto tempo.

Saleh seria deposto dois anos depois, no contexto da Primavera Árabe. Fugiu para a Arábia Saudita e voltou ao Iémen. Hoje, continua a lutar pelo poder (para lá colocar um filho, diz-se) e conta, para essa missão, com o apoio de um aliado improvável — os huthis, contra quem Saleh travou várias guerras durante a sua longa presidência.

Saleh-huthis é apenas um dos exemplos das ‘danças’ arriscadas a que o ex-Presidente se referia. Outras combinações possíveis envolvem outras “serpentes” à solta no território iemenita — tribos problemáticas, grupos jiadistas, os separatistas do sul e todos aqueles que Saleh considerar uma ameaça à sua influência.

Guardas abrem alas aos rebeldes

Desde 26 de março que huthis e forças leais ao ex-Presidente são o alvo prioritário dos bombardeamentos da coligação liderada pela Arábia Saudita. No domingo, a residência de Saleh, em Sana’a, foi destruída pelas bombas. “Continuem a levantar as armas, preparem-se para sacrificar as vossas vidas na defesa contra estes ataques”, disse Saleh aos huthis, num vídeo gravado em frente aos escombros.

“Esta agressão é um ato de cobardia. Se são assim tão valentes, venham e enfrentem-nos no campo de batalha, venham e cá vos esperaremos. Bombardear com foguetes e caças não chega para conseguirem os vossos objetivos.”

Saleh não o disse mas com estas palavras formalizou a aliança com a milícia xiita, que já era percetível desde o início da crise. Um relatório do Conselho de Segurança da ONU de 20 de fevereiro refere que em setembro de 2014, quando, vindos do Norte, avançaram sobre a capital, “os huthis receberam ajuda explícita de Guardas Republicanos, organizada por membros da família de Saleh”, que assim escancararam as portas de Sana’a (que estava guardada por 100 mil guardas e reservistas) aos rebeldes.

Amanhã termina uma trégua de cinco dias aceite pelas partes em confronto e declarada com o intuito de ser prestada assistência humanitárias às populações. No Twitter, David Miliband, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros de Gordon Brown, anunciava, na quarta-feira, que a organização humanitária que dirige (International Rescue Committe) conseguiu entregar um carregamento de medicamentos a um hospital de Aden, no sul.

“Os bombardeamentos de caças sauditas e os ataques huthis e tribais contra o território da Arábia Saudita pararam. Mas combates difusos continuam por todo o país”, escreve o advogado Haykal Bafana, que vive em Sana’a, na mesma rede social.

Bombardeamentos inconclusivos

Sete semanas de ataques aéreos não alteraram — nem clarificaram — a relação de forças no terreno. A ONU já confirmou a morte de 828 civis, mas o número peca por defeito; a Freedom House Foundation avançou ontem com quase 4000 mortos. A tragédia humana não se fica, porém, por aqui. No início da semana, a Human Rights Watch (HRW) alertou para o aumento do recrutamento, treino e destacamento de crianças por parte dos huthis. Os menores são pagos com comida e folhas de qat, uma planta que, mascada, funciona como um estimulante suave, e que é uma instituição cultural no Iémen.

No comunicado, a HRW conta o caso de Ibrahim, de 16 anos, incentivado a juntar-se aos huthis pela família, que lhe ofereceu uma Kalashnikov (as munições ficam por conta dos rebeldes). No Iémen, o uso de crianças nos combates não é exclusivo dos huthis: tribos e jiadistas também o fazem.

Tudo conflui para um conflito de contornos únicos e solução complexa. “A política iemenita é complicada e exótica, com mudanças de alianças em que antigos inimigos se abraçam e velhos amigos envidam esforços para se matarem uns aos outros”, escreveu o prestigiado jornalista Patrick Cockburn no jornal “The Independent”. “O colapso de um país num estado de guerra permanente originará vagas de boat-people na direção da Europa Ocidental e de outros sítios em busca de refúgio. É absurdo que os líderes europeus finjam que estão a fazer alguma coisa em matéria de ‘terrorismo’ ou do afogamento de refugiados no Mediterrâneo quando ignoram as guerras que são as causas profundas destes fenómenos.” Para Cockburn, o ataque saudita ao Iémen aumentará o terrorismo e o número de barcos a transbordar de gente desesperada.

PAÍS EM GUERRA

828
civis mortos foram confirmados pela ONU no Iémen, 182 dos quais eram crianças. A OMS aponta para um total de quase 1500 e a Freedom House Foundation refere quase 4000

40
a 60 milhões de armas estão distribuídas por todo o território iemenita, estima a ONU. O país tem cerca de 26 milhões de habitantes

90%
dos cereais consumidos no Iémen são importados. Por estes dias, não há navios comerciais a atracar nos portos iemenitas — os sauditas impuseram um bloqueio naval

20%
da área de cultivo irrigada está plantada com qat. O abastecimento hídrico do Iémen depende quase exclusivamente dos lençóis freáticos, mas os peritos receiam que o país fique sem água dentro de uma década

QUATRO ANOS AGITADOS
NO SUL DA PENÍNSULA ARÁBICA

27 de fevereiro de 2011
Na sequência da Primavera Árabe o Presidente Ali Abdullah Saleh é posto em causa após 32 anos no poder. Ferido em junho, abandona o país.

27 de fevereiro de 2012
Mansour Hadi que fora vicepresidente de Saleh e era candidato único, é eleito Presidente do Iémen.

14 de janeiro de 2014
Al-Qaida da Península Arábica tenta explorar atentado do “Charlie Hebdo”, em Paris, dizendo que os irmãos Kouachi agiram por ordem sua.

Setembro 2014
Rebeldes huthis conquistam a capital, Sana’a, e o Presidente Mansour Hadi abandona a cidade. A Al-Qaida na Península Arábica (AQPA), inimiga dos huthis, faz uma declaração demarcando-se das “barbaridades do Daesh na Síria e Iraque” mas exortando ao combate contra os EUA que têm levado a cabo ataques com drones no país.

17 de outubro de 2014
Carro-bomba de suicidas da AQPA explode num posto de controlo numa estrada entre a cidade de Rada’a (Al Bayda) e a província de Zemar, matando dezenas de milicianos huthis e crianças de um autocarro escolar que passava na altura.

11 de fevereiro de 2015
EUA, Reino Unido e França fecham embaixadas no Iémen.

25 de março de 2015
Coligação liderada pela Arábia Saudita inicia campanha aérea em apoio do Presidente em exercício, forçado a fugir da cidade portuária de Aden, prestes a ser tomada pelas milícias dos huthis e seus aliados.

17 de abril de 2015
AQPA aproveita a luta entre rebeldes e forças governamentais para conquistar a base de Mukalla, no sudeste do país, assenhoreando-se de artilharia e carros de combate.

10 de maio de 2015
Caça F16 marroquino ao serviço da coligação internacional cai no Iémen, provavelmente abatido pelos rebeldes.

12 de maio de 2015
Negociada trégua de cinco dias entre os huthis e a coligação saudita que, em geral, é respeitada e permite o envio de alguma ajuda humanitária.

13 e 14 de maio de 2015
Realiza-se em Camp David, EUA, uma reunião do Conselho de Cooperação do Golfo, onde a Arábia Saudita opta por estar ausente, e durante a qual o Presidente Obama tentou sensibilizar os seus interlocutores para as vantagens regionais de um desanuviamento.

(Foto: Vista aérea de Sana’a, a capital do Iémen YEOWATZUP, DE KATLENBURG-LINDAU, ALEMANHA / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso, a 16 de maio de 2015

Cada vez mais menores combatem no Iémen

No mesmo dia em que entrou em vigor uma trégua humanitária de cinco dias, a Human Rights Watch denuncia que os rebeldes houthis têm cada vez mais crianças nas suas fileiras. Trabalham como batedores, guardas, estafetas e combatentes e são pagas em géneros

Os rebeldes houthis estão a recrutar crianças para as hostilidades no Iémen. A denúncia foi confirmada esta terça-feira pela Human Rights Watch (HRW), após no mês passado a UNICEF ter divulgado que um terço dos combatentes nesse conflito são menores.

Desde que tomou a capital iemenita, em setembro, a milícia tem “intensificado o recrutamento, treino e destacamento de crianças, em violação ao direito internacional”, lê-se num comunicado da organização humanitária.

As crianças são usadas como batedores, guardas, estafetas e combatentes. A HRW refere também que, para além dos houthis, também milícias tribais e islamitas assim como a Al-Qaeda na Península Arábica usam crianças nas ações de combate.

Quando a família incentiva à guerra

As conclusões da organização baseiam-se em testemunhos de jornalistas e ativistas no país e também em entrevistas a crianças e recrutadores houthis. Um deles, na casa dos 30 anos, entrevistado pela HRW em março, na região de Amran (50 km a noroeste de Sanaa) confessou ter recrutado ativamente para os houthis durante mais de um ano.

Explicou que crianças sem treino militar não participam nos combates e que a maioria fica de guarda ou no transporte de munições e alimentos para a linha da frente. Também são usadas para recuperar cadáveres e combatentes feridos e prestar primeiros socorros.

Outras entrevistas realizadas pela HRW apuraram o modus operandi do recrutamento dos houthis. Durante pelo menos um mês, dão educação ideológica, seguida de treino militar. As crianças não recebem dinheiro, mas antes alimentos e “qat”, uma planta que pode ser mascada (funcionando como um estimulante suave) e que constitui uma instituição cultural no Iémen.

Ibrahim, de 16 anos, testemunhou à HRW que a família o encorajou a juntar-se aos houthis e que lhe ofereceu uma Kalashnikov. As munições ficaram por conta dos rebeldes. Baleado numa perna, participa agora nas patrulhas entre Amran e Sufyan, juntamente com cinco amigos da sua idade.

Cessar-fogo em vigor

As denúncias da HRW são conhecidas no mesmo dia em que entrou em vigor uma trégua de cinco dias proposta pela Arábia Saudita, que lidera a coligação que está a atacar o país, e aceite pelos rebeldes houthis para que seja prestada assistência humanitária. 

Os bombardeamentos aéreos duram desde 26 de março, visando punir os houthis e as forças leais ao ex-Presidente Ali Abdullah Saleh e restaurar a autoridade do Presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi.

Num balanço feito a 24 de abril, a UNICEF informou que pelo menos 115 crianças já tinham sido mortas e 172 feridas nos bombardeamentos aéreos e combates em terra. 

Segundo o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados, que o Iémen assinou, a idade mínima aceitável para participação em conflitos armados, nas fileiras quer de forças armadas nacionais quer de grupos armados não-estaduais é de 18 anos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de maio de 2015. Pode ser consultado aqui

Lusos escavam em zona de risco do norte do Iraque

Em paz ou em guerra, o Iraque é um tesouro da arqueologia. Cinco portugueses procuram artefactos com 5000 anos

André Tomé tem uma certeza. Se, algures na Síria, se verificar uma destruição de património semelhante à que aconteceu há semanas no Iraque — no Museu de Mossul e nas cidades históricas de Hatra e Nimrud —, haverá uma indignação global nas redes sociais e o conflito voltará a ser notícia. “Mas depois vamos esquecer que, todos os dias, continuam a morrer pessoas”, quando, no fim, “mais do que os tijolos e as pedras, o que interessa são as pessoas”.

As palavras não seriam tão surpreendentes não fosse André um arqueólogo. Falou ao “Expresso” nas vésperas de partir para o Curdistão iraquiano para escavar, pelo segundo ano, no Vale de Bazyan, província de Sulaimaniya. Ali chegou facilmente há uma semana, num voo da Turkish Airlines vindo de Istambul. A viagem de volta a casa está marcada para 15 de junho. André não hesitará em antecipá-la se as condições de segurança se deteriorarem. “Isto não é um Indiana Jones. Ao primeiro sinal de insegurança, repensaremos a estratégia e, se for preciso, voltamos.”

Os combates contra o Daesh (autodenominado Estado Islâmico) estão a mais de 100 km do campo de escavação. O facto de a grande cidade de Kirkuk estar nas mãos dos curdos tranquiliza-o. “Há mais checkpoints, há mais controlo.”

André, de 28 anos, lidera o projeto Kani Shaie, juntamente com outro português, Ricardo Cabral, de 31 anos (ambos da Universidade de Coimbra), e com o belga Steve Renette, da Universidade da Pensilvânia (EUA). Kani Shaie é uma região atravessada ao longo da História por grandes rotas entre oriente e ocidente que permanece “terra incógnita”, desconhecida do ponto de vista arqueológico. O objetivo do projeto é recolher vestígios do quarto milénio antes de Cristo, quando se formaram as primeiras cidades da civilização mesopotâmica.

A missão arrancou em 2013, com dinheiros portugueses, e logo confirmou o potencial do sítio. Entre os achados, André salienta uma pequena tábua de argila furada, com imagens de animais, que funcionaria como “uma espécie de fatura” entregue, provavelmente, por um mercador que transportava animais ao destinatário.

Uma “fatura” com 5000 anos PROJETO KANI SHAIE

A descoberta motivou a equipa para continuar, este ano com financiamento exclusivamente norte-americano, no futuro logo se verá. “Não sabemos o que vai acontecer ao Curdistão. Agora está bem, mas imaginemos que o Estado Islâmico é eliminado, que os curdos avançam para a independência e que há um conflito entre Bagdade e Erbil… Que acontecerá a esses sítios? Temos essa urgência, não de super-herói, mas de alguém consciente de que é importante fazer algo.”

Além dos líderes, integram a equipa mais três portugueses e uma antropóloga italiana. Dois arqueólogos curdos acompanham os trabalhos. O projeto emprega locais e colabora com a Direção de Antiguidades de Sulaimaniya, a Universidade e o museu, onde os achados ficam guardados.

Visitar o sítio com óculos 3D

Além das escavações, a missão vai recolher imagens do sítio. “Temos trabalhado na área da realidade aumentada. Queremos fazer uma espécie de museu virtual, onde seja possível visitar o sítio com um alto grau de realismo. Estamos a testar óculos 3D para que as pessoas sintam que estão lá”, sem necessidade de reconstrução.

Janela estratigráfica no campo de escavações PROJETO KANI SHAIE

André não é um purista. Considera que perante a destruição de património, reconstruir ou não deve ser analisado consoante os casos. “Em relação aos budas de Bamiyan, no Afeganistão, acho que devem ser reconstruídos. Podem ser um garante de estabilidade e futuro naquela região, incentivando o turismo. Noutros casos, pode não interessar tanto até porque as destruições passaram a fazer parte da memória. Vemos o EI destruir património dos assírios, depois pensamos e vemos que os assírios fizeram exatamente a mesma coisa”, diz o arqueólogo. “Não podemos ser tão fanáticos e puristas como o Estado Islâmico.”

André Tomé estreou-se a escavar na região em 2008, após concluir os estudos na Universidade de Coimbra. Começou pela Síria num sítio na província de Hasakah que tem, hoje, as milícias do EI a um quilómetro de distância. Os jiadistas preocupam-no, mas recorda que há mais de 700 sítios arqueológicos ilegais na Síria e no Iraque. “Há tempos, vi umas entrevistas a pessoas que faziam essas escavações. Sabiam que estavam a destruir o passado mas diziam que precisavam de dinheiro para comer. Isto tem de ser compreendido.” Ainda que a história desses locais se perca para sempre.

(Foto de abertura: Sítio arqueológico no Vale de Bazyan PROJETO KANI SHAIE)

Artigo publicado no Expresso, a 9 de maio de 2015

Bibi refém dos seus parceiros

Netanyahu conseguiu formar Governo em Israel, mas fica vulnerável a ‘extorsões políticas’

DONKEY HOTEY / WIKIMEDIA COMMONS

Quando cantou vitória nas legislativas de 17 de março, após quase todas as sondagens o colocarem no papel de perdedor, Benjamin Netanyahu nunca esperaria que a formação de Governo lhe desse tantas dores de cabeça. As negociações esgotaram os 42 dias previstos por lei. Quarta-feira, a 90 minutos do fim do prazo, o primeiro-ministro garantiu finalmente uma maioria.

“Comparado com o Governo anterior, o novo executivo é, ideológica e politicamente mais coerente. Está mais ancorado na direita conservadora e religiosa do espetro político israelita”, comenta ao Expresso Bruno Oliveira Martins, ex-analista político da delegação da União Europeia em Telavive. “À partida, questões como os subsídios à população haredim (ultraortodoxa), o papel da religião no Estado ou o carácter judaico de Israel estão no topo da agenda.”

Governo a cinco

Cinco partidos integram a coligação governamental: o Likud (direita), do primeiro-ministro; o Kulanu (centro-direita), centrado nas questões económicas; dois partidos religiosos ultraortodoxos, o Shah e o Judaismo da Torah Unida; e a Casa Judaica, liderada pelo ultranacionalista Naftali Bennett, apoiante do movimento de colonos no território palestiniano da Cisjordânia. No Knesset, o Executivo será apoiado por 61 dos 120 deputados. “O Governo irá estar permanentemente refém das posições dos parceiros da coligação para qualquer decisão importante, o que pode levar a chantagens e ‘extorsões políticas’. A forma como Bennett encostou Netanyahu à parede nos últimos dias deixa antecipar isso mesmo.”

Na reta final do processo negocial, Netanyahu perdeu o apoio de um aliado, Avigdor Lieberman, seu ministro dos Negócios Estrangeiros e líder do ultranacionalista Yisrael Beitenu (extrema-direita). E viu-se forçado a chegar a acordo com a Casa Judaica, de Bennett, que exigiu para o seu partido as pastas dos Negócios Estrangeiros e da Justiça. Por fim, acabou por ficar com as pastas da Justiça, entregue à engenheira Ayelet Shaked, de 39 anos, e da Educação, que ficará para Bennett.

Neste cenário de instabilidade, Bruno Oliveira Martins, professor auxiliar na Universidade de Aarhus, da Dinamarca, antecipa duas questões dominantes: “A subida dos temas religiosos ao topo da agenda política e o carácter decisivo que questões judiciais vão ter nas próximas semanas. O princípio da separação de poderes está seriamente ameaçado por reformas que Netanyahu tem tentado introduzir na composição e funcionamento do Supremo Tribunal, de forma a limitar o controlo judicial destes sobre o sistema político”. As duas tendências, diz o analista, estão relacionadas. “O Supremo Tribunal é visto pela direita como expressão do esquerdismo liberal e, sobretudo, secularista, que pretende combater.”

Como fica a Palestina?

Durante a campanha eleitoral, as questões que mais interessam à comunidade internacional estiveram ausentes da discussão, desde logo o conflito israelo-palestiniano, só referido já com as eleições à vista. Pressionado por sondagens adversas, Netanyahu prometeu que, caso vencesse, jamais existiria uma Palestina independente.

“A solução de dois Estados, neste momento e na prática, não existe. Desde o colapso das negociações com os palestinianos, lideradas pelo secretário de Estado dos EUA, John Kerry, nada tem acontecido, nem nos bastidores”, diz Bruno Oliveira Martins. “As relações entre Telavive e Washington deterioram-se no último ano e não é impensável admitir que a Administração Obama, em final de mandato e sem a pressão da reeleição, possa dar sinais concretos de impaciência, que já se revela na retórica de Obama, mas que ainda não se materializou em mais do que isso. Ainda assim, este tipo de atitude seria sempre uma pesada herança para o futuro Presidente e, nesta fase de pré-campanha, poderia causar danos na candidatura de Hillary Clinton, o que não é irrelevante.”

Com a relação entre Israel e a UE igualmente degradada — o Parlamento Europeu aprovou, em dezembro, o reconhecimento da Palestina —, poderão mais europeus seguir o exemplo da Suécia e reconhecer a independência palestiniana ao nível de governo? “As tensões políticas entre Bruxelas e Israel têm-se verificado com crescente frequência e, mesmo que uma posição forte e comum da UE não seja o cenário mais provável, não excluo de todo que outros Estados sigam o exemplo da Suécia.”

Artigo publicado no Expresso, a 9 de maio de 2015