Aung San Suu Kyi está a ser criticada por não defender a minoria rohingya. Não é caso único entre aqueles que receberam o Nobel da Paz. Nem sempre o percurso dos galardoados corresponde às expectativas e, noutros casos, é o próprio Comité — que nunca deu o Nobel da Paz a Mahatma Gandhi, por exemplo — a distinguir personalidades implicadas em episódios de violência. Seis casos foram particularmente controversos

De Nobel para Nobel. O líder dos budistas do Tibete, Dalai Lama (Nobel da Paz 1989), apelou na semana passada à líder da oposição na Birmânia, Aung San Suu Kyi (Nobel da Paz 1991), que faça alguma coisa em defesa dos rohingya, a minoria muçulmana que enfrenta uma situação de perseguição naquele país de maioria budista.
“É muito triste. Espero que Aung San Suu Kyi, enquanto Nobel da Paz, possa fazer alguma coisa”, disse o Dalai Lama. “Eu estive com ela duas vezes, em Londres e depois na República Checa. Falei do assunto e ela disse-me que tinha algumas dificuldades, que as coisas eram muito complicadas. Mas apesar disso eu sinto que ela pode fazer alguma coisa.”
Aung San Suu Kyi, que completa 70 anos a 19 de junho, tem sido criticada por não se pronunciar sobre o drama dos rohingya — discriminados internamente e rejeitados externamente, como o demonstra os barcos à deriva, cheios de gente desesperada, junto às costas da Tailândia, Indonésia e Malásia, sem que estes países lhe abram portas.
Em declarações ao “Expresso”, Akihisa Matsuno, professor na Universidade de Osaka (Japão) especializado em assuntos do Sudeste Asiático, descodifica o silêncio da Nobel da Paz. “O assunto dos rohingya é difícil não só para Aung San Suu Kyi, mas para qualquer político birmanês. Mesmo os ativistas pró-democracia não têm coragem de falar sobre o problema.”
Falar dos rohingya arruína a carreira política
Na Birmânia (país também chamado Myanmar), quer as populações budistas quer as minorias étnicas que vivem no país — algumas das quais lutam por autonomia ou autodeterminação — olham para os rohingya como estrangeiros (bangladeshianos) e não como cidadãos birmaneses. “Neste aspeto, todos estão de acordo”, comenta o professor Matsuno. “Se Aung San Suu Kyi falar dos rohingya, ela e a sua Liga Nacional para a Democracia (LND) perderão apoio e verão a popularidade de todo o movimento democrático afetada.”
Em 2012, quando de uma digressão da Nobel birmanesa pela Europa, ela falou publicamente do assunto e logo foi dissuadida por conselheiros a não voltar a fazê-lo. “Para qualquer político na Birmânia, falar dos rohingya significa o fim da sua carreira política”, refere o académico japonês.
A Birmânia tem eleições parlamentares previstas para o final do ano. Estará então em causa a eleição de 75% dos lugares — os restantes 25% são nomeados pelo regime. A seguir ao ato eleitoral, um colégio eleitoral designará o chefe de Estado — Suu Kyi está impedida de se candidatar aos cargos de presidente ou vice-presidente uma vez que os seus filhos não têm nacionalidade birmanesa (são britânicos).
Para alterar este preceito constitucional, é necessário o apoio de mais de 75% dos deputados, uma fasquia difícil de superar dada a lealdade de (pelo menos) 25% dos deputados ao regime liderado pelo ex-general Thein Sein. “Até ao momento, não houve pressão internacional suficiente para que o regime considere rever a Constituição”, comenta o professor da Universidade de Osaka.
Objetivo é sobreviver e ganhar as eleições
“É um erro assumir que Aung San Suu Kyi tem uma ambição pessoal de liderar o país. Mas a sua LND e um ciclo alargado de políticos e ativistas pró-democracia têm de sobreviver e têm de ganhar as próximas eleições. É o objetivo dela neste momento. A LND é totalmente dependente de Aung San Suu Kyi sem qualquer outro político à altura de a substituir. O problema dos rohingya surgiu numa má altura para ela e para o movimento pró-democracia em geral”, defende Akihisa Matsuno.
“A comunidade internacional deveria condenar o Governo da Birmânia, e não Suu Kyi. Também deveria condenar o monge budista radical que instiga a violência (Ashin Wirathu), e não a LND.”
Com a violência anti-rohingya concentrada sobretudo na província de Rakhine, junto à fronteira com o Bangladesh, Akihisa Matsuno acredita que esta comunidade corre o risco de ser totalmente expulsa da província. “Seria uma versão birmanesa de limpeza étnica. Não penso — ou não quero pensar — que haverá um genocídio, porque tal não poderá acontecer se não for organizado de forma sistemática por determinadas autoridades. Instigar a violência pode contribuir para a morte de dezenas de pessoas, mas sem a intervenção dos militares julgo que não haverá assassínios em massa em grande escala. O regime sabe que seria fatal para si. A comunidade internacional não iria tolerar. Mas o que o regime pode fazer é instigar pessoas comuns para que empurrem os rohingya na direção do mar.”

AUNG SAN SUU KYI NÃO ESTÁ SÓ…
BARACK OBAMA — Com apenas nove meses na Casa Branca, Barack Obama recebeu o Nobel da Paz 2009 para surpresa geral. Aos comentários de que o Nobel era precipitado e tinha motivações políticas sucederam-se críticas à atuação do próprio laureado: a coberto da guerra contra o terrorismo internacional, Obama mandou bombardear no Iraque, Afeganistão, Líbia, Paquistão e Iémen, nestes dois últimos casos com aviões não tripulados (drones)
LIU XIAOBO — Galardoado pela sua luta não violenta em prol dos direitos humanos na China, Liu Xiaobo foi criticado por ter apoiado intervenções militares dos Estados Unidos. “O mundo livre liderado pelos EUA combateu quase todos os regimes que esmagaram os direitos humanos. As grandes guerras em que os EUA se envolveram são todas eticamente defensáveis”, escreveu em 1996, num artigo intitulado “Lições da Guerra Fria”. Viu-lhe ser atribuído o Nobel da Paz de 2010, mas Pequim impediu-o de ir recebe-lo. E para protestar contra esse reconhecimento, instituiu o Prémio Confúcio da Paz, atribuído na mesma altura do Nobel
HENRY KISSINGER — Mais de 40 anos depois do fim da guerra do Vietname, muitos continuam a pedir a prisão do então secretário de Estado norte-americano, pelo seu papel no conflito. Kissinger recebeu o Nobel da Paz em 1973, juntamente com o líder vietnamita Le Duc Tho, o qual declinou o prémio dizendo que os Acordos de Paz de Paris não estavam a ser aplicados na sua plenitude. O Nobel a Kissinger é considerado o mais controverso de sempre
YASSER ARAFAT — Em 1994, o Comité Nobel reconheceu os protagonistas da paz celebrada no Médio Oriente e premiou o líder palestiniano Yasser Arafat e os israelitas Yitzhak Rabin e Shimon Peres. Os críticos de Arafat recordaram então o passado violento da Organização de Libertação da Palestina, que liderava, nomeadamente o período na década de 70 que ficou conhecido como “Setembro Negro”. Kare Kristiansen, membro do Comité Nobel, demitiu-se do cargo em protesto contra a escolha. A Arafat chamou “o terrorista mais proeminente do mundo”
ANWAR SADAT & MENACHEM BEGIN — O Nobel da Paz de 1978 foi entregue ao Presidente egípcio Anwar Sadat e ao primeiro-ministro israelita Menachem Begin. Através do Acordo de Camp David, ambos celebraram a paz entre os respetivos países, que dura até hoje. Mas no passado, os dois tinham-se destacado na guerra contra o colonizador britânico. Em 2006, um livro do jornalista alemão Henning Sietz defendeu que Begin participou, em 1952, numa tentativa de assassínio contra o chanceler alemão Konrad Adenauer
HULL CORDELL — Hull Cordell recebeu o Nobel da Paz em 1945 pelo seu contributo para a criação da Organização das Nações Unidas. Cordell tinha sido secretário de Estado do Presidente Franklin D. Roosevelt e protagonista da polémica à volta do St. Louis, uma embarcação que transportava cerca de 950 judeus, em fuga aos horrores do regime nazi, e que em 1939 se acercou do Estreito da Florida para atracar nos EUA. Cordell defendeu junto de Roosevelt a recusa da entrada, posição que prevaleceu, e o St. Louis viu-se forçado a regressar à Europa: um quarto dos seus passageiros morreu nas câmaras de gás
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de junho de 2015. Pode ser consultado aqui e aqui