Custou mas foi. Irão e comunidade internacional alcançaram um acordo histórico sobre o programa nuclear iraniano. A infraestrutura nuclear iraniana continuará de pé, mas sob apertada vigilância
Dezoito dias de conversações em Viena, inseridas num processo negocial que se arrastava há 22 meses, mudaram o curso da História como a conhecíamos desde que George W. Bush inscreveu o Irão no “eixo do mal” que apoia o terrorismo. O acordo sobre o programa nuclear iraniano, anunciado esta segunda-feira, resgata o Irão do estatuto de pária a que estava condenado sobretudo após o endurecimento de política externa subsequente ao 11 de Setembro e abre portas a uma maior cooperação entre Estados Unidos e Irão — ironicamente, de relações cortadas desde a Revolução Islâmica de 1979, que derrubou o Xá — na explosiva região do Médio Oriente.
Objetivamente, o acordo alcançado não elimina a infraestrutura nuclear iraniana; mas coloca-a sob uma vigilância permanente que fará soar alarmes se o Irão pisar o risco. Como explicou o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, este acordo garante o aumento do chamado “breakout” (ou seja, o tempo que medeia entre a decisão de ter a bomba e a sua obtenção efetiva) dos atuais “dois ou três meses” para “um ano ou mais”.
“Neste momento, o Irão deve estar a ser vigiado 24 horas por dia por vários serviços de informações e serviços secretos”, comenta ao Expresso Francisco Galamas, investigador na área da proliferação de armas de destruição em massa. “Qualquer tentativa de não respeitar o acordo, seria quase de imediato reportada e, provavelmente, a informação seria colocada nos meios de comunicação social para pressionar as elites políticas de diversos países.”
Inspetores da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), um organismo especializado das Nações Unidas, terão “acesso permanente” a todas as instalações suspeitas “onde e quando for necessário”, garantiu Obama. Se forem detetadas violações ao acordo, as sanções que a comunidade internacional aceitou levantar, serão repostas.
“Este acordo constitui uma oportunidade para avançarmos numa nova direção”, disse Barack Obama, num discurso em direto, na televisão, pouco após o histórico anúncio. “Este acordo foi obtido com base, não na confiança, mas na verificação.”
De regresso a casa, as delegações norte-americana e iraniana levam na mala o mesmo acordo, mas perante a necessidade de o “vender” às respetivas opiniões públicas — e assumir as cedências feitas —, as retóricas de Washington e Teerão poderão soar contraditórias. O que, aliás, já começou a acontecer… “O nosso objetivo era manter o programa nuclear e ver as sanções levantadas”, congratulou-se o Presidente iraniano, Hassan Rohani, que começou a discursar na televisão mal Obama acabou.
Preço do petróleo em queda
O levantamento das sanções — a principal exigência iraniana — acontecerá por fases, à medida que a AIEA for confirmando que Teerão está, efetivamente, a cumprir. Decretadas pela ONU e também por EUA e UE, bilateralmente, as sanções têm asfixiado a economia iraniana. Cálculos efetuados por Jack Lew, secretário norte-americano do Tesouro, indicam que os proventos decorrentes da não venda de crude privaram os cofres de Teerão de mais de 160 mil milhões de dólares (144 mil milhões de euros) desde 2012 — quase duas vezes o resgate da troika a Portugal.
Perante a perspetiva de o petróleo iraniano voltar a inundar os oleodutos na direção do ocidente, o preço do barril de crude estava em queda esta segunda-feira nos mercados internacionais.
Garantida a colaboração do Irão e abertas as portas do país aos inspetores da AIEA, os EUA esperam capitalizar com esta aproximação a Teerão nos três principais conflitos em curso no Médio Oriente, onde o Irão tem ascendente sobre importantes fações: apoia os rebeldes huthis no Iémen, é aliado do regime de Bashar al-Assad na Síria e também do regime iraquiano.
Todos partilham com o Irão a interpretação xiita do Islão e, no caso dos dois últimos, o ódio ao autodenominado Estado Islâmico (que, à semelhança da Al-Qaeda, professa o sunismo e considera os muçulmanos xiitas tão infiéis quanto os cristãos).
Nesta questão, ganha importância a questão do embargo de armas ao Irão, que, segundo o acordo, permanecerá em vigor nos próximos cinco anos, estando previstas, porém, entregas especiais de armamento a Teerão autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU.
Israel diz que é um “erro histórico”
Paralelamente, o Irão é também aliado do grupo xiita libanês Hezbollah, um inimigo declarado de Israel (potência nuclear não-oficial), que o sente como uma ameaça à sua sobrevivência. Benjamin Netanyahu, que em março discursou no Congresso dos EUA onde repetiu a palavra “Irão” 107 vezes, considerou este acordo “um erro histórico”, evidenciando uma predisposição para o combater em todas as frentes. Esta semana, o primeiro-ministro israelita abriu uma conta no Twitter em língua farsi, dirigida ao povo iraniano: “Quanto mais o regime se sente forte e impenetrável à pressão estrangeira, mais aumentará a opressão interna”, twitou Netanyahu.
Tal como em Telavive, o ceticismo quanto a este acordo reina em muitas capitais árabes. Árabes e persas protagonizam a rivalidade mais antiga no Médio Oriente e alguns analistas defendem que a falta de confiança no Irão (o gigante persa com o 17º maior território do planeta e mais de 77 milhões de habitantes) pode originar uma corrida ao nuclear na região. Barack Obama não iludiu a questão e afirmou que a falta de um acordo tornaria essa possibilidade “mais provável”.
Teerão e Washington terão agora pela frente a árdua tarefa de justificar o acordo dentro de portas. Hassan Rohani verá o seu pragmatismo esbarrar no conservadorismo de muitos “ayatollahs” bem colocados. Por seu lado, Barack Obama terá de lidar com um Congresso de maioria politicamente adversa e que tem, por lei, 60 dias para rever (e contestar) o documento. Quando hoje se dirigiu à nação, Obama deixou um aviso: “Irei vetar qualquer legislação que impeça o sucesso da aplicação deste acordo. Não é tempo para politiquices ou encarniçamentos. Discursos duros vindos de Washington não resolvem problemas”.
Foto de família dos protagonistas de um acordo histórico, assinado no edifício das Nações Unidas em Viena, capital da Áustria, a 14 de julho de 2015. Da esquerda para a direita, Wang Yi (ministro dos Negócios Estrangeiros da China), Laurent Fabius (ministro dos Negócios Estrangeiros de França), Frank Walter Steinmeier (ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha), Federica Mogherini (Alta Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança), Mohammad Javad Zarif (ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão), Ali Akbar Salehi (Chefe da Organização para a Energia Atómica do Irão), Sergey Lavrov (ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia), Philip Hammon (secretário dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido) e John Kerry (secretário de Estado dos EUA). Fora da imagem está Ernest Moniz (secretário da Energia dos EUA) JOE KLAMAR / REUTERS
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 14 de julho de 2015. Pode ser consultado aqui