Acordo sobre nuclear iraniano na fase do ponto e vírgula

A versão em farsi tem 100 páginas. A inglesa será um pouco mais curta. Em Viena, as delegações que participam no diálogo sobre o programa nuclear iraniano passam a pente fico o rascunho de um possível acordo final. O último prazo acordado para a obtenção de um acordo final termina esta segunda-feira

O Irão e seis potências internacionais estão cada vez mais próximos de alcançar um acordo histórico sobre o programa nuclear iraniano. “Ninguém está a pensar numa nova extensão do prazo. Todos estão a trabalhar arduamente para conseguir o sim durante o dia de hoje, mas ainda é necessária vontade política”, escreveu no Twitter, ao final da manhã desta segunda-feira, Alireza Miryousefi, membro da delegação iraniana.

As conversações arrastam-se, ininterruptamente, há 17 dias, no Hotel Palais Coburg, em Viena, e o prazo para a obtenção de um acordo final já foi prorrogado por três vezes — o último expira esta segunda-feira.

Em cima da mesa está um acordo que, da perspetiva ocidental, irá limitar a capacidade do Irão produzir a bomba atómica e também, conforme exige Teerão, consagra o fim das sanções internacionais ao país dos ayatollahs.

Segundo o diário britânico “The Guardian”, diplomatas europeus presentes nas conversações confirmaram, no domingo, que os maiores obstáculos já foram ultrapassados. A delegação norte-americana, porém, revela mais cautelas insistindo que “grandes questões” continuam em aberto.

Igualmente no twitter, Alireza Miryousefi escreveu que a delegação persa está a analisar “um documento de 100 páginas”. Segundo “The Guardian”, a versão em língua inglesa tem “mais de 80 páginas, incluindo cinco anexos”. As delegações estarão a passar o texto a pente fino, certificando-se que nenhuma vírgula mal colocada dará azo a interpretações contraditórias.

Ministro à varanda, jornalistas na rua

Exibindo boa disposição, o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, Mohammad Javad Zarif, tem surgido à varanda do hotel com frequência. Numa das vezes acenou com folhas de papel, presume-se que do texto em estudo, para os muitos jornalistas que já se encontram, em permanência, em frente ao hotel à espera de noticiar o histórico acordo.  

Participam nestas negociações, para além do Irão, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (EUA, Reino unido, França, Rússia e China), todos países com capacidade nuclear, e ainda a Alemanha — o chamado P5+1. A União Europeia está presente através da sua Alta Representante para a Política Externa e de Segurança, a italiana Federica Mogherini.

Europeus e chineses parecem ser os mais apressados quanto ao anúncio de um documento final. “Acreditamos que nenhum acordo será perfeito e que já há condições para que seja alcançado um bom acordo”, disse o ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi. “Não pode, nem deve, haver mais atrasos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de julho de 2015. Pode ser consultado aqui

O acordo que pode mudar o Médio Oriente

O Irão tem as chaves para várias crises na região. Um entendimento sobre o seu programa nuclear pode levar Teerão a usá-las

Irão e Estados Unidos estão, oficialmente, de costas voltadas desde 1979. Isso não os tem impedido de se sentarem à mesa do diálogo com vontade de fazer História. Tem sido assim desde que Barack Obama está na Casa Branca e Hassan Rohani no Palácio Sa’dabad, e se fala no programa nuclear iraniano.

“Os tempos mudaram e isso deve-se não apenas à audácia das administrações de Obama e Rohani, mas também a um punhado de estudiosos, intelectuais e jornalistas de investigação que têm falado contra a corrente e conseguido trazer para o exterior a realidade do Irão contemporâneo. Depois seguiram-se melhores tomadas de decisão. O grande prémio para as pessoas da região pode ser um futuro um pouco mais tranquilo”, afirmou ao Expresso Arshin Adib-Moghaddam, diretor do Centro de Estudos Iranianos, da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.

“Nunca olhei para o acordo sobre o nuclear como um facto isolado. Se a questão for tratada com a audácia que a boa diplomacia requer, o acordo poderá dar início a um importante diálogo estratégico entre os EUA, ou seja, o ator externo mais importante na região, e o Irão, uma potência regional que detém as chaves para várias crises na região.”

Nada de pressas

As negociações sobre o programa nuclear —  que Teerão insiste ser para fins pacíficos mas muitos desconfiam visar a produção da bomba atómica — arrastam-se há 22 meses. Na quinta-feira, o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, que “vive” desde 26 de junho em Viena — onde decorrem as negociações entre o Irão e os países do P5+1, pelo menos até segunda-feira —, disse: “Não vamos deixar-nos dominar pela pressa. Se alcançarmos um acordo, este terá de resistir ao teste do tempo. Não será para durar dias ou semanas, mas décadas”.

Kerry tem-se reunido diariamente com o homólogo iraniano, Mohammad Javad Zarif, tentando limar as arestas de um acordo final. Na quinta-feira, o vice-ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, Abbas Araqchi, garantia que o texto principal e cinco anexos técnicos estavam completos “a cerca de 96%”. Um dos últimos obstáculos é o levantamento do embargo de armas imposto pelo Conselho de Segurança da ONU — uma exigência de Teerão. O assunto é incómodo no seio do P5+1, com Rússia e China a favor da pretensão iraniana e EUA, França, Reino Unido e Alemanha contra.

O certo é que as consequências de um possível acordo transcenderão o seu âmbito energético e far-se-ão sentir também a nível geopolítico, nomeadamente ao nível da luta contra o Daesh (autodenominado Estado Islâmico). “Irão e EUA já combatem o Daesh no Iraque e na Síria. É inevitável que tenham de coordenar algumas estratégias militares entre si”, defende o professor Moghaddam. “Um acordo iria aproximar os dois países. Daesh e Al-Qaeda (sunitas) são inimigos estratégicos do Irão (o gigante xiita) e dos EUA, e uma ameaça à segurança de ambos.”

Para Arshin Adib-Moghaddam, formado em universidades da Alemanha, EUA e Reino Unido, a “relativa cordialidade” entre Teerão e Washington tem contribuído, nomeadamente, para uma melhoria da situação no Iraque. “Apesar da insegurança contí-nua provocada pelo Daesh, o Governo de Haider al-Abadi parece um pouco mais seguro do que os executivos anteriores. O Irão tem sido fundamental na estabilização do Estado iraquiano” — ambos têm população maioritariamente xiita —, “apesar das conotações de sectarismo que são um problema real e que os líderes iraquianos têm de enfrentar.”

O Iraque nunca poderá funcionar unicamente como um Estado xiita, defende o académico. “O Irão também não está interessado numa teocracia concorrente dada a sua pretensão de liderança. A questão crucial para Teerão é impedir que grupos como o Daesh ou os ex-generais do exército de Saddam Hussein que comandam as suas forças ganhem poder em Bagdade, pela simples razão de serem virulentamente anti-iranianos.”

Noutra latitude — o Afeganistão —, EUA e Irão também partilham interesses. “Apoiam o Governo de Cabul e estão cansados dos talibãs e seus aliados”, diz o professor Moghaddam. Já nos conflitos sírio e iemenita, discordam em grande parte. “Um diálogo mais próximo entre os dois países teria um efeito pacificador em todos os conflitos da região, mesmo no mais importante, em Gaza, que continua a apodrecer em virtude da política israelita. Quando um poder regional e uma superpotência global conversam, as políticas podem ser ajustadas.”

Obama tem o Congresso na mão

Sem voz em Viena, as alas conservadoras dos dois países têm pesadelos perante a perspetiva de um acordo. “São o elefante na sala. No Irão, os extremistas estarão contidos enquanto o Líder Supremo, o ayatollah Ali Khamenei, continuar a apoiar a diplomacia. Nos EUA, não prevejo um motim democrata contra o Presidente a 16 meses das presidenciais.” Ou seja: quando Obama acordou com o Congresso que este teria de aprovar o acordo sabia que, em último recurso, poderia usar o veto.

Para fazer valer a sua posição perante o veto presidencial, a maioria republicana no Congresso precisaria do apoio de deputados democratas. “Há ainda outra maneira de Obama dar a volta ao Congresso”, explica Moghaddam. “Pode falar em ‘acordo executivo’ em vez de ‘tratado’. É uma invenção de Franklin D. Roosevelt para contornar o Congresso.”

Israel a Arábia Saudita contestam o entendimento com o Irão. “Netanyahu tentou pôr em perigo as negociações a cada curva. A direita israelita e os seus aliados conservadores nos EUA conseguiram sabotar todos os progressos no sentido de uma arquitetura de segurança viável e inclusiva na Ásia Ocidental e Norte de África durante mais de três décadas.”

A Arábia Saudita, desde a subida ao trono do rei Salman (janeiro) tem sido “paranoica” relativamente ao Irão. “Tal como Israel é menos importante no cálculo estratégico dos EUA. ” Nascido em Istambul de pais iranianos, Arshin Adib-Moghaddam acredita que algum acordo irá ver a luz do dia. “Será a maior notícia desde a guerra do Iraque de 2003.”

OS BRAÇOS DE FERRO QUE FAZEM TARDAR O “SIM” FINAL

Centrifugadoras menos potentes, fim das sanções por fases e inspeções generalizadas. Eis os obstáculos por remover

Uma das grandes ironias de todo o processo negocial do nuclear iraniano é que, para muitos, a perspetiva de um acordo que comprometa o Irão parece gerar mais receios do que se o país fosse deixado à rédea livre. Francisco Galamas, investigador na área da proliferação de armas de destruição maciça, enumera ao Expresso algumas questões que estão na base dessas desconfianças e que têm feito arrastar o processo.

“O material físsil a partir do qual se provoca uma explosão nuclear (e, por isso, um ingrediente elementar para a produção de armas nucleares) pode vir de duas fontes: urânio enriquecido a mais de 90% (HEU) ou plutónio. Quanto a este último, a questão foi arrumada rapidamente. O risco de o Irão aceder a plutónio provinha do reator de água pesada de Arak, cujo desenho original poderia permitir a extração de 7 a 8 kg de plutónio/ano, dando material físsil para uma bomba nuclear todos os anos. O Irão aceitou modificar o reator de forma a produzir só 1 kg de plutónio/ano.” Para afastar suspeitas relativamente ao uso deste elemento, “prevê-se que o acordo antecipe o envio do combustível usado para fora do Irão, possivelmente para a Rússia”.

Menos pode ser mais

Complicações maiores surgem quanto ao HEU, dado que o Irão desenvolveu significativamente a sua infraestrutura de enriquecimento de urânio. “A primeira coisa feita foi diminuir o número de centrifugadoras instaladas e operacionais. O Irão tinha perto de 19.000 centrifugadoras instaladas, das quais 9000 estavam operacionais. O acordo prevê uma redução para 6000 centrifugadoras instaladas e 5000 operacionais”, conforme anunciado a 2 de abril, quando foi celebrado o acordo intermédio.

Porém, reduzir centrifugadoras não é suficiente, pois, como explica Francisco Galamas, “estas têm diferentes indicadores de produtividade”. Ou seja: se o Irão diminuir o número de centrifugadoras mas as substituir por modelos mais produtivos, a capacidade para enriquecer urânio, na prática, seria superior. “O acordo antecipa essa possibilidade e define a tipologia das centrifugadoras autorizadas nos 10 anos iniciais. Das 5000 operacionais, o Irão irá operar as que já estão instaladas (IR-1), de primeira geração e com uma produtividade muito baixa, enquanto terá 1000 centrifugadoras mais modernas instaladas mas não operacionais.”

Prevê-se, ainda, que o enriquecimento de urânio se processe a menos de 5%, logo sem interesse militar. E que as minas de urânio iranianas sejam vigiadas. “Através da análise do urânio extraído das minas e da quantidade de urânio enriquecido nas instalações de centrifugação, será possível discernir se o Irão tem acesso a urânio não declarado.”

Inspetores ou espiões?

Inspetores da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) irão avaliar constantemente in loco o cumprimento do acordo. Mas o esquema das inspeções também não está isento de receios. “Por um lado, os EUA temem que o Irão desenvolva HEU em paralelo, em instalações secretas, dado que o acordo se aplica a infraestruturas específicas. Por outro lado, os iranianos pensam que abrir completamente o país e todas as instalações, incluindo as militares, é inaceitável pelos riscos de espionagem que comporta e por uma questão de orgulho nacional. Ainda está fresca na memória coletiva a campanha de assassínios de cientistas nucleares iranianos” — pelo menos quatro, entre 2010 e 2012, mortos à bomba ou a tiro.

À semelhança das inspeções, também a elaboração do calendário do levantamento das sanções ao Irão tem sido um braço de ferro. O Irão defende que as sanções devem ser totalmente suspensas imediatamente após a finalização do acordo. “Acredito que tal pretensão tem como destinatário a audiência interna conservadora, já que as elites políticas iranianas têm a perfeita noção de que desmontar um sistema de sanções tão complexo não se pode fazer do dia para a noite”, refere Francisco Galamas. Por sua vez, o P5+1 defende uma suspensão progressiva das sanções, à medida que a AIEA for atestando que o Irão está a cumprir o acordo.

“A Administração Obama concentrou-se nos componentes da arma nuclear (HEU e plutónio) e na forma de impedir o Irão de os desenvolver”, conclui Francisco Galamas. “Foi inteligente porque teve em conta a política doméstica do Irão. Finalmente, um Presidente dos EUA percebe que a crise nuclear só se resolve com cedências das duas partes.”

(Foto: Representantes do P5+1 que assinou o acordo sobre o programa nuclear iraniano: China, França, Alemanha, União Europeia, Irão, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos DEPARTAMENTO DE ESTADO DOS EUA / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso, a 11 de julho de 2015

Uma Grécia no quintal da América

Uma dívida pública impagável e apelos a uma reestruturação… Onde é que já ouvimos isto? Na Grécia, mas também em Porto Rico, um território autónomo sob soberania norte-americana que, contrariamente aos 50 estados, está impedido de declarar falência

A crise grega arrebatou as manchetes em todo o mundo. Se assim não fosse, o protagonismo teria cabido, muito provavelmente, à ilha de Porto Rico, um território autónomo com soberania dos Estados Unidos.

Porto Rico tem uma dívida pública a rondar os 72 mil milhões de dólares (65 mil milhões de euros) — para estabelecer uma comparação, o resgate a Portugal foi de 78 mil milhões — e o seu governador já veio afirmar que não é pagável.

“A dívida não é pagável”, disse Alejandro García Padilla, em entrevista ao “The New York Times”. “Não há qualquer outra opção. Eu adoraria ter uma opção mais fácil. Não se trata de política, trata-se de matemática.”

A Administração Obama já fez saber que está fora de questão qualquer resgate à ilha. Para complicar uma solução, ao abrigo da legislação em vigor, o território não pode declarar falência, ao contrário de qualquer um dos 50 estados da União.

Esta semana, o porta-voz da Casa Branca Josh Earnest afirmou que o Congresso deveria considerar a aprovação de nova legislação no sentido de garantir a Porto Rico a proteção oferecida pelo capítulo 9 do Código de Falências dos Estados Unidos, o que permitiria aos credores recuperarem pelo menos parte de seu dinheiro.

O influente diário norte-americano explica que uma ampla reestruturação da dívida porto-riquenha seria um teste sem precedentes ao mercado de títulos municipais, em que cidades e estados se apoiam para pagar necessidades básicas, como a construção de estradas e de hospitais públicos. E recorda que, no passado, esse mercado já foi abalado pelas falências municipais em Stockton (Califórnia), em 2012, e em Detroit (Michigan), em 2013.

Na segunda-feira, um tribunal de Boston bloqueou uma tentativa de Porto Rico de criar o seu próprio “modus operandi” na relação entre credores e entidades públicas. Concretamente, as autoridades de San Juan tentavam adotar uma lei que permitiria aos municípios insulares declararem falência. Na barra do tribunal, os advogados do território argumentaram que Porto Rico estava numa “terra de ninguém”, mas a sentença foi-lhes adversa.

A resposta à crise está agora nas mãos do Congresso dos Estados Unidos. Vários candidatos às presidenciais de 2016 já se pronunciaram sobre o assunto e os dois principais contendores na corrida à Casa Branca são unânimes em relação à solução. A democrata Hillary Clinton recusa qualquer resgate a Porto Rico, mas considera a opção da bancarrota “uma oportunidade justa no caminho do sucesso”.

Por seu lado, o republicano Jeb Bush afirmou: “Penso que Porto Rico tem de ser tratado como qualquer outro estado no que respeita à reestruturação”.

Na segunda-feira, a primeira mulher de ascendência porto-riquenha a ser eleita para a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, a democrata Nydia M. Velazquez (eleita por Nova Iorque), apelou à convocação de uma reunião de urgência do Grupo de Trabalho sobre Mercados Financeiros, criado em resposta ao “crash” bolsista de outubro de 1987 e que se manteve muito ativa durante a crise financeira de 2008.

A situação de Porto Rico é agravada pelo facto de 45% dos seus 3,6 milhões de habitantes viver em situação de pobreza. Em maio passado, a taxa de desemprego era de 12,4%.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 10 de julho de 2015. Pode ser consultado aqui