O Irão tem as chaves para várias crises na região. Um entendimento sobre o seu programa nuclear pode levar Teerão a usá-las
Irão e Estados Unidos estão, oficialmente, de costas voltadas desde 1979. Isso não os tem impedido de se sentarem à mesa do diálogo com vontade de fazer História. Tem sido assim desde que Barack Obama está na Casa Branca e Hassan Rohani no Palácio Sa’dabad, e se fala no programa nuclear iraniano.
“Os tempos mudaram e isso deve-se não apenas à audácia das administrações de Obama e Rohani, mas também a um punhado de estudiosos, intelectuais e jornalistas de investigação que têm falado contra a corrente e conseguido trazer para o exterior a realidade do Irão contemporâneo. Depois seguiram-se melhores tomadas de decisão. O grande prémio para as pessoas da região pode ser um futuro um pouco mais tranquilo”, afirmou ao Expresso Arshin Adib-Moghaddam, diretor do Centro de Estudos Iranianos, da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.
“Nunca olhei para o acordo sobre o nuclear como um facto isolado. Se a questão for tratada com a audácia que a boa diplomacia requer, o acordo poderá dar início a um importante diálogo estratégico entre os EUA, ou seja, o ator externo mais importante na região, e o Irão, uma potência regional que detém as chaves para várias crises na região.”
Nada de pressas
As negociações sobre o programa nuclear — que Teerão insiste ser para fins pacíficos mas muitos desconfiam visar a produção da bomba atómica — arrastam-se há 22 meses. Na quinta-feira, o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, que “vive” desde 26 de junho em Viena — onde decorrem as negociações entre o Irão e os países do P5+1, pelo menos até segunda-feira —, disse: “Não vamos deixar-nos dominar pela pressa. Se alcançarmos um acordo, este terá de resistir ao teste do tempo. Não será para durar dias ou semanas, mas décadas”.
Kerry tem-se reunido diariamente com o homólogo iraniano, Mohammad Javad Zarif, tentando limar as arestas de um acordo final. Na quinta-feira, o vice-ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, Abbas Araqchi, garantia que o texto principal e cinco anexos técnicos estavam completos “a cerca de 96%”. Um dos últimos obstáculos é o levantamento do embargo de armas imposto pelo Conselho de Segurança da ONU — uma exigência de Teerão. O assunto é incómodo no seio do P5+1, com Rússia e China a favor da pretensão iraniana e EUA, França, Reino Unido e Alemanha contra.
O certo é que as consequências de um possível acordo transcenderão o seu âmbito energético e far-se-ão sentir também a nível geopolítico, nomeadamente ao nível da luta contra o Daesh (autodenominado Estado Islâmico). “Irão e EUA já combatem o Daesh no Iraque e na Síria. É inevitável que tenham de coordenar algumas estratégias militares entre si”, defende o professor Moghaddam. “Um acordo iria aproximar os dois países. Daesh e Al-Qaeda (sunitas) são inimigos estratégicos do Irão (o gigante xiita) e dos EUA, e uma ameaça à segurança de ambos.”
Para Arshin Adib-Moghaddam, formado em universidades da Alemanha, EUA e Reino Unido, a “relativa cordialidade” entre Teerão e Washington tem contribuído, nomeadamente, para uma melhoria da situação no Iraque. “Apesar da insegurança contí-nua provocada pelo Daesh, o Governo de Haider al-Abadi parece um pouco mais seguro do que os executivos anteriores. O Irão tem sido fundamental na estabilização do Estado iraquiano” — ambos têm população maioritariamente xiita —, “apesar das conotações de sectarismo que são um problema real e que os líderes iraquianos têm de enfrentar.”
O Iraque nunca poderá funcionar unicamente como um Estado xiita, defende o académico. “O Irão também não está interessado numa teocracia concorrente dada a sua pretensão de liderança. A questão crucial para Teerão é impedir que grupos como o Daesh ou os ex-generais do exército de Saddam Hussein que comandam as suas forças ganhem poder em Bagdade, pela simples razão de serem virulentamente anti-iranianos.”
Noutra latitude — o Afeganistão —, EUA e Irão também partilham interesses. “Apoiam o Governo de Cabul e estão cansados dos talibãs e seus aliados”, diz o professor Moghaddam. Já nos conflitos sírio e iemenita, discordam em grande parte. “Um diálogo mais próximo entre os dois países teria um efeito pacificador em todos os conflitos da região, mesmo no mais importante, em Gaza, que continua a apodrecer em virtude da política israelita. Quando um poder regional e uma superpotência global conversam, as políticas podem ser ajustadas.”
Obama tem o Congresso na mão
Sem voz em Viena, as alas conservadoras dos dois países têm pesadelos perante a perspetiva de um acordo. “São o elefante na sala. No Irão, os extremistas estarão contidos enquanto o Líder Supremo, o ayatollah Ali Khamenei, continuar a apoiar a diplomacia. Nos EUA, não prevejo um motim democrata contra o Presidente a 16 meses das presidenciais.” Ou seja: quando Obama acordou com o Congresso que este teria de aprovar o acordo sabia que, em último recurso, poderia usar o veto.
Para fazer valer a sua posição perante o veto presidencial, a maioria republicana no Congresso precisaria do apoio de deputados democratas. “Há ainda outra maneira de Obama dar a volta ao Congresso”, explica Moghaddam. “Pode falar em ‘acordo executivo’ em vez de ‘tratado’. É uma invenção de Franklin D. Roosevelt para contornar o Congresso.”
Israel a Arábia Saudita contestam o entendimento com o Irão. “Netanyahu tentou pôr em perigo as negociações a cada curva. A direita israelita e os seus aliados conservadores nos EUA conseguiram sabotar todos os progressos no sentido de uma arquitetura de segurança viável e inclusiva na Ásia Ocidental e Norte de África durante mais de três décadas.”
A Arábia Saudita, desde a subida ao trono do rei Salman (janeiro) tem sido “paranoica” relativamente ao Irão. “Tal como Israel é menos importante no cálculo estratégico dos EUA. ” Nascido em Istambul de pais iranianos, Arshin Adib-Moghaddam acredita que algum acordo irá ver a luz do dia. “Será a maior notícia desde a guerra do Iraque de 2003.”
OS BRAÇOS DE FERRO QUE FAZEM TARDAR O “SIM” FINAL
Centrifugadoras menos potentes, fim das sanções por fases e inspeções generalizadas. Eis os obstáculos por remover
Uma das grandes ironias de todo o processo negocial do nuclear iraniano é que, para muitos, a perspetiva de um acordo que comprometa o Irão parece gerar mais receios do que se o país fosse deixado à rédea livre. Francisco Galamas, investigador na área da proliferação de armas de destruição maciça, enumera ao Expresso algumas questões que estão na base dessas desconfianças e que têm feito arrastar o processo.
“O material físsil a partir do qual se provoca uma explosão nuclear (e, por isso, um ingrediente elementar para a produção de armas nucleares) pode vir de duas fontes: urânio enriquecido a mais de 90% (HEU) ou plutónio. Quanto a este último, a questão foi arrumada rapidamente. O risco de o Irão aceder a plutónio provinha do reator de água pesada de Arak, cujo desenho original poderia permitir a extração de 7 a 8 kg de plutónio/ano, dando material físsil para uma bomba nuclear todos os anos. O Irão aceitou modificar o reator de forma a produzir só 1 kg de plutónio/ano.” Para afastar suspeitas relativamente ao uso deste elemento, “prevê-se que o acordo antecipe o envio do combustível usado para fora do Irão, possivelmente para a Rússia”.
Menos pode ser mais
Complicações maiores surgem quanto ao HEU, dado que o Irão desenvolveu significativamente a sua infraestrutura de enriquecimento de urânio. “A primeira coisa feita foi diminuir o número de centrifugadoras instaladas e operacionais. O Irão tinha perto de 19.000 centrifugadoras instaladas, das quais 9000 estavam operacionais. O acordo prevê uma redução para 6000 centrifugadoras instaladas e 5000 operacionais”, conforme anunciado a 2 de abril, quando foi celebrado o acordo intermédio.
Porém, reduzir centrifugadoras não é suficiente, pois, como explica Francisco Galamas, “estas têm diferentes indicadores de produtividade”. Ou seja: se o Irão diminuir o número de centrifugadoras mas as substituir por modelos mais produtivos, a capacidade para enriquecer urânio, na prática, seria superior. “O acordo antecipa essa possibilidade e define a tipologia das centrifugadoras autorizadas nos 10 anos iniciais. Das 5000 operacionais, o Irão irá operar as que já estão instaladas (IR-1), de primeira geração e com uma produtividade muito baixa, enquanto terá 1000 centrifugadoras mais modernas instaladas mas não operacionais.”
Prevê-se, ainda, que o enriquecimento de urânio se processe a menos de 5%, logo sem interesse militar. E que as minas de urânio iranianas sejam vigiadas. “Através da análise do urânio extraído das minas e da quantidade de urânio enriquecido nas instalações de centrifugação, será possível discernir se o Irão tem acesso a urânio não declarado.”
Inspetores ou espiões?
Inspetores da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) irão avaliar constantemente in loco o cumprimento do acordo. Mas o esquema das inspeções também não está isento de receios. “Por um lado, os EUA temem que o Irão desenvolva HEU em paralelo, em instalações secretas, dado que o acordo se aplica a infraestruturas específicas. Por outro lado, os iranianos pensam que abrir completamente o país e todas as instalações, incluindo as militares, é inaceitável pelos riscos de espionagem que comporta e por uma questão de orgulho nacional. Ainda está fresca na memória coletiva a campanha de assassínios de cientistas nucleares iranianos” — pelo menos quatro, entre 2010 e 2012, mortos à bomba ou a tiro.
À semelhança das inspeções, também a elaboração do calendário do levantamento das sanções ao Irão tem sido um braço de ferro. O Irão defende que as sanções devem ser totalmente suspensas imediatamente após a finalização do acordo. “Acredito que tal pretensão tem como destinatário a audiência interna conservadora, já que as elites políticas iranianas têm a perfeita noção de que desmontar um sistema de sanções tão complexo não se pode fazer do dia para a noite”, refere Francisco Galamas. Por sua vez, o P5+1 defende uma suspensão progressiva das sanções, à medida que a AIEA for atestando que o Irão está a cumprir o acordo.
“A Administração Obama concentrou-se nos componentes da arma nuclear (HEU e plutónio) e na forma de impedir o Irão de os desenvolver”, conclui Francisco Galamas. “Foi inteligente porque teve em conta a política doméstica do Irão. Finalmente, um Presidente dos EUA percebe que a crise nuclear só se resolve com cedências das duas partes.”
(Foto: Representantes do P5+1 que assinou o acordo sobre o programa nuclear iraniano: China, França, Alemanha, União Europeia, Irão, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos DEPARTAMENTO DE ESTADO DOS EUA / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de julho de 2015
