Liderados pela Arábia Saudita, os ataques aéreos começaram há meio ano. Já mataram mais civis do que os combates em terra
Há uma guerra em curso que já não comove nem capta atenções. No Iémen, e à semelhança do que se passa na orla mediterrânica, muitos lançam-se ao mar para fugir a um futuro incerto — e mesmo à morte. Para esses, a Europa é um sonho impossível. “A maioria dos iemenitas que deixou o país foi [por mar] para o Djibouti e para a Somália”, explica ao “Expresso” Philippe Dam, vice-diretor da organização humanitária Human Rights Watch.
“Normalmente, as duas fronteiras terrestres estão encerradas: junto à Arábia Saudita há uma frente de guerra; e a fronteira com Omã foi fechada quando a guerra começou.” Abrem ocasionalmente para deixar passar poucas pessoas.
Se querem deixar o país, “os iemenitas têm de apanhar barcos e ir para os únicos países onde podem chegar, Djibouti e Somália”, continua Philippe Dam. “Depois, uns ficam, outros seguem para a Etiópia ou para o Sudão”, igualmente pobres e instáveis.
Fugir para países instáveis
Muitos dos que fogem são refugiados que chegaram ao Iémen fugindo de conflitos nos seus países. Segundo o Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados, o Iémen tem registados cerca de 246 mil refugiados, 95% dos quais somalis. Há ainda etíopes, iraquianos, sírios e eritreus. Um relatório de 3 de setembro da Organização Internacional para as Migrações diz que pelo menos 59.230 pessoas já fugiram para o Djibouti, Somália, Sudão e Etiópia.
“Compreendo perfeitamente que muita gente fuja”, diz ao “Expresso” Sameh Salah ad-Din, 33 anos, desde Sana’a. “Por tudo o que se está a passar aqui e pensando na segurança da minha família, também eu devia partir… Não esqueçamos que as pessoas que fugiram têm condições económicas ou, pelo menos, têm dinheiro para viver fora uns dois ou três meses, à espera de que tudo acalme. A maioria não pode fazer tal coisa…”
Sameh é o segundo de quatro filhos de um casal de professores sudaneses que chegou ao Iémen no início da década de 80. Após anos de guerra, o país precisava de mão de obra especializada, sobretudo para formar os jovens. O pai de Sameh foi à frente. Chegou a Sana’a integrado numa missão educativa. “Foi uma grande oportunidade para ele poder sair do Sudão e começar uma nova vida. Ainda só tinha um filho. Decidiu ficar por cá, a família cresceu e nunca mais saímos.”
Brincar ao som dos F16
Sameh é contabilista numa empresa de importação de bens, sobretudo alimentares. Continua a trabalhar, ainda que em horário reduzido, das oito da manhã à uma da tarde. “Perdi metade do salário por causa da guerra. Mas o maior problema é que vivo na zona de Hadda, perto das montanhas Al-Nahdayn, onde fica o palácio presidencial, um grande alvo dos bombardeamentos aéreos, e o meu trabalho fica na baixa de Sana’a. Todas as manhãs, tenho de passar por um posto das forças especiais, que também é um alvo. Mas tem de ser. As nossas vidas e as da nossa família estão em risco a cada segundo, as nossas casas também. Às vezes, há mais de 30 raides por dia. Um amigo dizia-me há dias: ‘Sempre que vou trabalhar, penso que posso não voltar a ver a minha família.’ É assim que nos sentimos.”
O “Expresso” recolheu o testemunho de Sameh na quarta-feira. “Esta manhã, numa rua ao lado do meu trabalho, uns miúdos brincavam. Subitamente, ouviu-se o som de um F16. As crianças começaram a gritar: ‘O avião! O avião!’ E lançaram-se a correr. Algumas choravam. Esta guerra afeta-nos a todos os níveis.”
A situação no Iémen agravou-se desde que, no fim de março, uma coligação de países da região liderada pela Arábia Saudita começou a bombardear o país, com o objetivo de arredar a minoria huthi do poder e de reinstalar o Presidente Abd Rabbuh Mansur al-Hadi.
“É muito preocupante. O meu gabinete concluiu que já foram mortos mais de 2000 civis”, alertou, segunda-feira, Zeid Ra’ad Al Hussein, alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos, na abertura da 30ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, em Genebra. A maioria foi atingida pelos bombardeamentos aéreos da coligação. “Estima-se que cerca de 21 milhões de iemenitas — 80% da população — precisem de ajuda. Relatos credíveis de violações dos direitos humanos por parte de todas as partes em conflito deviam ser amplamente investigados por um órgão independente e abrangente.”
No Iémen, um país fortemente tribal com 24 milhões de habitantes, além de haver bombardeamentos aéreos da coligação árabe, combatem tropas leais ao Governo, forças huthis, grupos leais ao ex-Presidente Ali Abdullah Saleh (deposto no contexto da Primavera Árabe) e a Al-Qaida na Península Arábica (que reivindicou o ataque ao “Charlie Hebdo”). Desde 2002, os EUA têm em curso uma operação de ataques com drones (aviões não tripulados) que, segundo o Alto-Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, terá morto mais de 40 civis, entre 1 de julho de 2014 e 30 de junho deste ano. Para complicar, na província de Al-Bayda (sul), tem-se registado um aumento da presença do autodenominado Estado Islâmico (Daesh).
Violência não poupa civis
A violência não tem poupado mercados, escolas, hospitais e fábricas. Na costa oeste, o porto de Al-Hudaydah, por onde entra a maioria da ajuda humanitária, deixou de estar operacional após ser alvejado pelos aviões da coligação. No sul, o de Aden continua a funcionar, embora o transporte de carga por terra para o resto do país esteja muito limitado.
Para os que sobrevivem — à guerra e ao bloqueio por terra, mar e ar imposto pela coligação —, as condições de vida são cada vez mais insuportáveis.
“Não temos eletricidade há cinco meses”, diz Sameh. “Só há combustível para os carros no mercado negro, que por estes dias está muito dinâmico. Grande parte dos geradores foram transformados para poderem trabalhar com bilhas de gás doméstico. Há água para beber, mas não nas casas, para lavarmos roupas ou tomarmos banho.” Sameh diz que o tempo que antes era passado fora de casa, a conviver, é agora gasto na fila para aceder a produtos básicos. “Os preços dos alimentos aumentaram como um foguete, uns 200-300%. Mas o pior de tudo é a falta de emprego.”
Para Philippe Dam, a indiferença internacional em relação a esta guerra tem uma explicação: Este conflito “tem pouca importância política para muitos atores mundiais, que, por isso, o ignoram. Quem beneficia com isto são aqueles países que não estão diretamente envolvidos, mas que contribuem para o aumento do número de mortos, como EUA e Reino Unido. Ambos fornecem ajuda militar à Arábia Saudita, aos Emirados Árabes Unidos e a outros membros da coligação. E ainda não foram condenados por esse papel”.
BALANÇO
21
das 22 províncias do Iémen são afetadas pela guerra. Só o arquipélago de Socotra, a 240 km do Corno de África e 380 km da Península Arábica, escapa à violência. Socotra já foi apontado como o local que receberá os 65 iemenitas presos em Guantánamo
90%
dos alimentos e do combustível consumido no país são importados. A Human Rights Watch defende que o bloqueio imposto pela coligação pode ser considerado crime de guerra
(Foto: Captura de ecrã do “site” da Amnistia Internacional, onde é publicado um artigo intitulado “Iémen: A Guerra Esquecida” AMNISTIA INTERNACIONAL)
Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de setembro de 2015