Papa chegou aos EUA, discursou e não fugiu aos temas delicados

O líder da Igreja Católica iniciou esta quarta-feira uma visita de seis dias aos Estados Unidos. No primeiro discurso, Francisco recordou que é filho de imigrantes e que é urgente enfrentar o problema das alterações climáticas

No seu primeiro discurso em solo norte-americano, o Papa Francisco abordou, esta quarta-feira, algumas das questões que, em fase de pré-campanha para as presidenciais do próximo ano, mais dividem os candidatos, e a sociedade norte-americana em geral.

“Sr. Presidente, considero encorajador que esteja a propor uma iniciativa no sentido da redução da poluição do ar. Parece-me claro que as alterações climáticas são um problema que não pode ser deixado para as futuras gerações”, defendeu o Sumo Pontífice, de 78 anos, apoiando, explicitamente, a política ambiental adotada pelo Presidente Barack Obama.

“Quando está em causa a necessidade de cuidarmos da nossa ‘casa comum’, vivemos num momento crítico da História. Ainda temos tempo de fazer as mudanças necessárias para criarmos um desenvolvimento sustentável e integral”, disse o chefe do Vaticano.

O Papa discursou na Casa Branca, numa cerimónia de boas-vindas realizada no exterior do edifício e que contou com a presença de 11 mil convidados. Numa intervenção marcadamente política, Francisco recordou que, ele próprio, nascido na Argentina, é “filho de uma família de imigrantes [italianos]”, abordando desta forma um outro tema delicado nos Estados Unidos. “Estou feliz por ser um convidado neste país, que foi construído por famílias como a minha.”

O líder da Igreja Católica chegou aos Estados Unidos, na terça-feira, vindo diretamente de Cuba. Na intervenção na Casa Branca, o Papa não se referiu ao processo político em curso de aproximação entre Estados Unidos e Cuba. Esse papel coube a Obama, que agradeceu ao Papa o papel desempenhado pelo Vaticano nesse dossiê: “Santo Padre, estamos gratos pelo seu inestimável apoio em relação ao nosso novo recomeço com o povo cubano, que mantém a promessa de melhores relações entre os dois países, de uma maior cooperação através de todo o hemisfério, e uma vida melhor para o povo cubano”, disse o chefe de Estado norte-americano.

Francisco ficará seis dias nos Estados Unidos. Durante a visita, tem previstos mais dois discursos: um no Congresso, na quinta-feira, e outro na sede das Nações Unidas, na sexta-feira.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de setembro de 2015. Pode ser consultado aqui

Menos um preso em Guantánamo

Foi dos primeiros suspeitos de terrorismo a ser enviado para Guantánamo e está agora de regresso ao seu país natal. O saudita Abdul Shalabi, ex-guarda-costas de Osama bin Laden, é o último de 655 detidos que já foram libertados ou transferidos daquele polémico centro de detenção. Restam ainda 114

Os Estados Unidos anunciaram a transferência de mais um detido em Guantánamo para a Arábia Saudita. Abdul Shalabi, de 39 anos, é descrito como um ex-guarda-costas de Osama bin Laden, capturado por forças paquistanesas em dezembro de 2001, quando tentava cruzar a fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, após fugir das montanhas de Tora Bora, onde o líder da Al-Qaeda estava refugiado.

Shalabi foi levado para Guantánamo em janeiro de 2002, tendo-se tornando assim um dos primeiros detidos naquele centro de detenção para suspeitos de terrorismo mandado abrir por George W. Bush.

Em abril deste ano, representantes legais de Shalabi instaram os Estados Unidos a transferi-lo para a Arábia Saudita “tão rápido quanto possível” e apelaram a que Shalabi “não fosse considerado uma ameaça significativa e continuada à segurança dos Estados Unidos”. Shalabi estava em greve de fome desde 2005.

A 15 de junho seguinte, as autoridades norte-americanas determinaram que a detenção de Shalabi “não era mais necessária” à segurança dos EUA e manifestaram a sua confiança no “programa de reabilitação” saudita para cidadãos implicados em casos de terrorismo.

Washington realçou ainda a coordenação feita com a Arábia Saudita no sentido de “garantir que esta transferência decorra de forma coerente com as medidas de segurança e de tratamento humano adequadas”.

Apenas um foi julgado

Shalabi foi o 655º preso a ser libertado ou transferido daquele centro situado na base naval que os EUA têm na ilha de Cuba. Para além destes 655, um outro detido foi transferido para ser julgado nos EUA (o tanzaniano Ahmed Khalfan Ghailani, condenado a prisão perpétua em 2011) e nove morreram (o último o iemenita Adnan Latif, em 2012).

 

Ao todo, foram detidas em Guantánamo 779 pessoas. Ainda estão presos 114 presos, 65 dos quais são iemenitas.

Durante 2015, já foram transferidos sete detidos: em janeiro, quatro iemenitas foram enviados para o sultanato de Omã e um quinto para a Estónia; em junho, outro iemenita foi transferido para Omã; e já este mês, foi repatriado em marroquino.

O encerramento de Guantánamo — centro aberto a 11 de janeiro de 2002, na sequência do 11 de Setembro — é uma das principais promessas eleitorais de Barack Obama. As próximas eleições presidenciais norte-americanas, às quais Obama já não poderá concorrer, realizam-se a 8 de novembro do próximo ano.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de setembro de 2015. Pode ser consultado aqui

A guerra esquecida

Liderados pela Arábia Saudita, os ataques aéreos começaram há meio ano. Já mataram mais civis do que os combates em terra

Há uma guerra em curso que já não comove nem capta atenções. No Iémen, e à semelhança do que se passa na orla mediterrânica, muitos lançam-se ao mar para fugir a um futuro incerto — e mesmo à morte. Para esses, a Europa é um sonho impossível. “A maioria dos iemenitas que deixou o país foi [por mar] para o Djibouti e para a Somália”, explica ao Expresso” Philippe Dam, vice-diretor da organização humanitária Human Rights Watch.

“Normalmente, as duas fronteiras terrestres estão encerradas: junto à Arábia Saudita há uma frente de guerra; e a fronteira com Omã foi fechada quando a guerra começou.” Abrem ocasionalmente para deixar passar poucas pessoas.

Se querem deixar o país, “os iemenitas têm de apanhar barcos e ir para os únicos países onde podem chegar, Djibouti e Somália”, continua Philippe Dam. “Depois, uns ficam, outros seguem para a Etiópia ou para o Sudão”, igualmente pobres e instáveis.

Fugir para países instáveis

Muitos dos que fogem são refugiados que chegaram ao Iémen fugindo de conflitos nos seus países. Segundo o Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados, o Iémen tem registados cerca de 246 mil refugiados, 95% dos quais somalis. Há ainda etíopes, iraquianos, sírios e eritreus. Um relatório de 3 de setembro da Organização Internacional para as Migrações diz que pelo menos 59.230 pessoas já fugiram para o Djibouti, Somália, Sudão e Etiópia.

“Compreendo perfeitamente que muita gente fuja”, diz ao “Expresso” Sameh Salah ad-Din, 33 anos, desde Sana’a. “Por tudo o que se está a passar aqui e pensando na segurança da minha família, também eu devia partir… Não esqueçamos que as pessoas que fugiram têm condições económicas ou, pelo menos, têm dinheiro para viver fora uns dois ou três meses, à espera de que tudo acalme. A maioria não pode fazer tal coisa…”

Sameh é o segundo de quatro filhos de um casal de professores sudaneses que chegou ao Iémen no início da década de 80. Após anos de guerra, o país precisava de mão de obra especializada, sobretudo para formar os jovens. O pai de Sameh foi à frente. Chegou a Sana’a integrado numa missão educativa. “Foi uma grande oportunidade para ele poder sair do Sudão e começar uma nova vida. Ainda só tinha um filho. Decidiu ficar por cá, a família cresceu e nunca mais saímos.”

Brincar ao som dos F16

Sameh é contabilista numa empresa de importação de bens, sobretudo alimentares. Continua a trabalhar, ainda que em horário reduzido, das oito da manhã à uma da tarde. “Perdi metade do salário por causa da guerra. Mas o maior problema é que vivo na zona de Hadda, perto das montanhas Al-Nahdayn, onde fica o palácio presidencial, um grande alvo dos bombardeamentos aéreos, e o meu trabalho fica na baixa de Sana’a. Todas as manhãs, tenho de passar por um posto das forças especiais, que também é um alvo. Mas tem de ser. As nossas vidas e as da nossa família estão em risco a cada segundo, as nossas casas também. Às vezes, há mais de 30 raides por dia. Um amigo dizia-me há dias: ‘Sempre que vou trabalhar, penso que posso não voltar a ver a minha família.’ É assim que nos sentimos.”

O “Expresso” recolheu o testemunho de Sameh na quarta-feira. “Esta manhã, numa rua ao lado do meu trabalho, uns miúdos brincavam. Subitamente, ouviu-se o som de um F16. As crianças começaram a gritar: ‘O avião! O avião!’ E lançaram-se a correr. Algumas choravam. Esta guerra afeta-nos a todos os níveis.”

A situação no Iémen agravou-se desde que, no fim de março, uma coligação de países da região liderada pela Arábia Saudita começou a bombardear o país, com o objetivo de arredar a minoria huthi do poder e de reinstalar o Presidente Abd Rabbuh Mansur al-Hadi.

“É muito preocupante. O meu gabinete concluiu que já foram mortos mais de 2000 civis”, alertou, segunda-feira, Zeid Ra’ad Al Hussein, alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos, na abertura da 30ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, em Genebra. A maioria foi atingida pelos bombardeamentos aéreos da coligação. “Estima-se que cerca de 21 milhões de iemenitas — 80% da população — precisem de ajuda. Relatos credíveis de violações dos direitos humanos por parte de todas as partes em conflito deviam ser amplamente investigados por um órgão independente e abrangente.”

No Iémen, um país fortemente tribal com 24 milhões de habitantes, além de haver bombardeamentos aéreos da coligação árabe, combatem tropas leais ao Governo, forças huthis, grupos leais ao ex-Presidente Ali Abdullah Saleh (deposto no contexto da Primavera Árabe) e a Al-Qaida na Península Arábica (que reivindicou o ataque ao “Charlie Hebdo”). Desde 2002, os EUA têm em curso uma operação de ataques com drones (aviões não tripulados) que, segundo o Alto-Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, terá morto mais de 40 civis, entre 1 de julho de 2014 e 30 de junho deste ano. Para complicar, na província de Al-Bayda (sul), tem-se registado um aumento da presença do autodenominado Estado Islâmico (Daesh).

Violência não poupa civis

A violência não tem poupado mercados, escolas, hospitais e fábricas. Na costa oeste, o porto de Al-Hudaydah, por onde entra a maioria da ajuda humanitária, deixou de estar operacional após ser alvejado pelos aviões da coligação. No sul, o de Aden continua a funcionar, embora o transporte de carga por terra para o resto do país esteja muito limitado.

Para os que sobrevivem — à guerra e ao bloqueio por terra, mar e ar imposto pela coligação —, as condições de vida são cada vez mais insuportáveis.

“Não temos eletricidade há cinco meses”, diz Sameh. “Só há combustível para os carros no mercado negro, que por estes dias está muito dinâmico. Grande parte dos geradores foram transformados para poderem trabalhar com bilhas de gás doméstico. Há água para beber, mas não nas casas, para lavarmos roupas ou tomarmos banho.” Sameh diz que o tempo que antes era passado fora de casa, a conviver, é agora gasto na fila para aceder a produtos básicos. “Os preços dos alimentos aumentaram como um foguete, uns 200-300%. Mas o pior de tudo é a falta de emprego.”

Para Philippe Dam, a indiferença internacional em relação a esta guerra tem uma explicação: Este conflito “tem pouca importância política para muitos atores mundiais, que, por isso, o ignoram. Quem beneficia com isto são aqueles países que não estão diretamente envolvidos, mas que contribuem para o aumento do número de mortos, como EUA e Reino Unido. Ambos fornecem ajuda militar à Arábia Saudita, aos Emirados Árabes Unidos e a outros membros da coligação. E ainda não foram condenados por esse papel”.

BALANÇO

21
das 22 províncias do Iémen são afetadas pela guerra. Só o arquipélago de Socotra, a 240 km do Corno de África e 380 km da Península Arábica, escapa à violência. Socotra já foi apontado como o local que receberá os 65 iemenitas presos em Guantánamo

90%
dos alimentos e do combustível consumido no país são importados. A Human Rights Watch defende que o bloqueio imposto pela coligação pode ser considerado crime de guerra

(Foto: Captura de ecrã do “site” da Amnistia Internacional, onde é publicado um artigo intitulado “Iémen: A Guerra Esquecida” AMNISTIA INTERNACIONAL)

Artigo publicado no Expresso, a 19 de setembro de 2015

O dia em que a Rússia sugeriu o afastamento de Assad e o Ocidente ignorou

Corria o ano de 2012 e ainda não se tinha ouvido falar do autodenominado Estado Islâmico (Daesh). Nos corredores das Nações Unidas, em Nova Iorque, o embaixador russo sugere um plano que passa pelo afastamento de Bashar al-Assad do poder. EUA, Reino Unido e França ignoraram, convencidos que o ditador sírio não duraria muito mais tempo

“O Ocidente chora pelos refugiados por um dos olhos e pelo outro faz-lhes pontaria com armas.” A acusação foi feita pelo Presidente da Síria durante uma entrevista a órgãos de informação russos divulgada esta quarta-feira. Bashar al-Assad acusa os países ocidentais de interferência no conflito e diz que só sairá do poder quando o povo sírio quiser e não mediante pressão do Ocidente.

A guerra na Síria dura há mais de quatro anos e está na origem de grande parte da atual pressão migratória sobre as fronteiras europeias. Na segunda-feira, em entrevista à BBC, o general norte-americano John Allen, enviado presidencial especial para a coligação liderada pelos EUA de combate ao autodenominado Estado Islâmico (Daesh), defendeu que o fim dos conflitos na Síria e no Iraque é crucial para a resolução da crise migratória. Allen defendeu também que Bashar al-Assad “tem de sair” do poder.

Precisamente o afastamento do ditador sírio esteve no centro de um plano sugerido pela Rússia (aliada do regime de Damasco), em fevereiro de 2012 — numa altura em que o terror do Daesh ainda não tinha irrompido. Segundo o britânico “The Guardian”, a proposta foi ignorada pelo Ocidente, noticiou na terça-feira.

Os três pontos do plano russo

A informação foi revelada por Martti Ahtisaari, ex-Presidente da Finlândia e Nobel da Paz 2008. Era 22 de fevereiro e Ahtisaari tinha sido enviado pelo grupo The Elders, fundado por Nelson Mandela, para se reunir com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido). O encontro com o embaixador russo na ONU, Vitaly Churkin, foi “o mais intrigante”, confessa.

“Eu conhecia Vitaly Churkin”, recorda Ahtisaari. “Discordamos em muitos assuntos mas conseguimos falar abertamente. Eu expliquei-lhe o meu papel naquelas conversações e ele disse: ‘Martti, sente-se. Eu digo-lhe o que devíamos fazer’. E falou em três coisas: Um — não devíamos entregar armas à oposição. Dois — devíamos iniciar um diálogo imediatamente entre a oposição e o Assad. Três — devíamos arranjar uma forma elegante de Assad afastar-se.”

Oportunidade perdida

O diplomata finlandês disse ter transmitido a proposta russa às delegações de Estados Unidos, Reino Unido e França. “Nada aconteceu. Julgo que estes três países, e muitos outros, estavam convencidos que Assad seria deposto dentro de algumas semanas”, disse Ahtisaari ao “Guardian”. “Foi uma oportunidade perdida em 2012.”

Oficialmente, Moscovo continua a defender o regime de Damasco, tendo enviado para a Síria tropas e tanques em defesa de Bashar al-Assad. As forças leais ao Presidente controlam menos de metade do território sírio, sobretudo em redor das cidades costeiras de Latakia e Tartus (ocidente), onde, nesta última, a Rússia tem uma base naval. A capital, Damasco, é disputada por tropas do regime e forças da oposição (não jiadistas).

Na terça-feira, numa cimeira sobre segurança realizada no Tadjiquistão, o Presidente russo Vladimir Putin apelou aos Estados Unidos e à União Europeia que se unam à Rússia e a Bashar al-Assad numa aliança contra o Daesh. “É óbvio que sem as autoridades sírias e os militares que estão ativamente no terreno, sem o Exército sírio que está a combater o Daesh, será impossível conduzir os terroristas para fora da Síria e de toda a região”, defendeu Putin.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de setembro de 2015. Pode ser consultado aqui