Mais um muro na Europa para travar os migrantes

Após a construção de uma vedação na fronteira da Hungria com a Croácia e o encerramento da fronteira entre os dois países, Eslovénia e Áustria tornaram-se zonas de trânsito procuradas por milhares de migrantes que sonham com a chegada à Alemanha. Confrontada com esta pressão migratória, Viena quer levantar “barreiras técnicas e sólidas” para controlar o fluxo

Depois da Hungria, é a vez da Áustria. O Governo austríaco tem planos para construir uma barreira junto à fronteira com a Eslovénia, assediada nos últimos dias por milhares de migrantes que querem prosseguir viagem até ao Norte da Europa. Durante uma visita à localidade fronteiriça austríaca de Spielfeld, a ministra do Interior defendeu a necessidade de “medidas especiais de construção” para reforçar a fronteira.

“A situação é especialmente dinâmica aqui, disse Johanna Mikl-Leitner. “Temos tido entre 3000 e 8000 pessoas a atravessar a fronteira [todos os dias]. Mas temos de nos preparar para [um cenário de] 12.000.”

A governante austríaca não apresentou calendário nem orçamento para o projeto. Um documento governamental entretanto divulgado fala apenas de “barreiras técnicas e sólidas ao longo de vários quilómetros”.

Esta quarta-feira, em entrevista à televisão pública Oe1, a ministra procurou justificar a polémica medida: “Trata-se de assegurar uma entrada no país de forma ordeira e controlada, e não do encerramento da fronteira”. Johanna Mikl-Leitner alertou para a proximidade do inverno, que pode originar uma escalada das situações de risco se os migrantes forem obrigados a esperar durante horas sob temperaturas gélidas.

“Sabemos que nos últimos dias e semanas, grupos de migrantes têm ficado mais impacientes, agressivos e emotivos. Se grupos de pessoas começarem a empurrar, com crianças e mulheres apanhadas no meio, serão necessárias medidas estáveis e massivas.”

A um passo da Alemanha

A cidade austríaca de Spielfeld, que a ministra visitou na terça-feira, dista menos de um quilómetro da cidade eslovena de Sentilj. As duas localidades fronteiriças situam-se no coração do mais recente corredor procurado por milhares de migrantes que buscam o “el dorado europeu”.

Esta nova rota foi desbravada após a Hungria ter encerrado a sua fronteira sul com a Croácia, no passado dia 16. Vindos do leste, os migrantes tentam agora atravessar a Eslovénia e depois a Áustria, ambos já no espaço Schengen. Chegados à Áustria, estará a um passo da tão desejada Alemanha.

Segundo as autoridades eslovenas, só nos últimos dez dias, chegaram ao país (de dois milhões de habitantes) à volta de 86.500 pessoas. Na terça-feira, 14.500 encontravam-se ainda em território esloveno; os restantes já terão entrado na Áustria.

Como foi decidido na Cimeira extraordinária sobre a Rota Migratória dos Balcãs Ocidentais, realizada em Bruxelas, no domingo passado, a Eslovénia recebeu, esta terça-feira, os primeiros cinco (todos alemães) de 400 guardas que irão reforçar o controlo da fronteira.

O encontro reuniu chefes de Estado ou de Governo de Albânia, Alemanha, Áustria, Bulgária, Croácia, Eslovénia, Grécia, Hungria, Macedónia, Roménia e Sérvia. Foi também decretado o reforço do dispositivo Frontex junto à fronteira entre a Eslovénia e a Croácia.

Relação azeda entre Berlim e Viena

Enquanto tentava justificar a nova barreira decidida por Viena, a ministra austríaca do Interior criticou também a política migratória de porta aberta da chanceler Angela Merkel. “Sinais dados aos migrantes têm consequências e nós estamos a senti-las.”

A pressão migratória está a azedar a relação entre os dois países vizinhos. Se a Áustria critica as opções do Governo da Alemanha, esta aponta o dedo à falta de informação e de coordenação demonstrada pelas autoridades austríacas.

Só durante o fim de semana, chegaram à Baviera cerca de 15.000 candidatos a asilo vindos da Áustria. Horst Seehofer, primeiro-ministro bávaro, acusou a Áustria de encaminhar migrantes na direção daquela região do sul da Alemanha. “Não podemos nem devemos comportarmo-nos assim uns com os outros”, disse em entrevista ao jornal regional “Passauer Neue Presse”. A atitude austríaca, acrescentou, “está a prejudicar as relações de vizinhança”.

Na terça-feira, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, criticou a lentidão com que os Estados membros da UE estão a responder à pior crise migratória na Europa desde a II Guerra Mundial. “Estão a agir lentamente quando deviam estar a correr”, criticou.

Diante do Parlamento Europeu, Juncker alertou para a urgência na obtenção de mais fundos e mais especialistas para fazer face à dramática situação. “A Turquia precisa de pelo menos 3000 milhões de euros para tentar combater esta crise e nós temos, no nosso orçamento, à volta de 200 milhões de euros”, disse. “Os Estados membros têm de assumir mais responsabilidade e disponibilizar um financiamento mais considerável.”

Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), este ano já entraram na Europa mais de 700 mil pessoas, em fuga à guerra e à pobreza em países do Médio Oriente, África e Ásia.

IMAGEM PAWEL WOZNIAK / WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 28 de outubro de 2015. Pode ser consultado aqui

Um cartoon para uma das frases que está a agitar o mundo

Primeiro-ministro de Israel chegou esta quarta-feira à Alemanha, horas após defender que Hitler não quis exterminar os judeus. Em Israel, há quem o acuse de estar a banalizar o Holocausto

Após Netanyahu defender que Hitler não quis exterminar os judeus, um sobrevivente do Holocausto manda-o estudar História. Desde as profundezas do inferno, o Führer agradece a “absolvição”. CARLOS LATUFF

Benjamin Netanyahu quis culpar os palestinianos pelo Holocausto, mas as suas palavras voltaram-se contra ele. Ao defender que foi o Mufti de Jerusalém que, em 1941, sugeriu a Adolf Hitler que exterminasse os judeus, o primeiro-ministro de Israel tornou-se alvo de muitas críticas e da chacota de ilustradores, como o brasileiro Carlos Latuff, de quem o Expresso reproduz o cartoon que pode ver no início do texto.

A polémica estalou horas antes de uma visita do primeiro-ministro de Israel à Alemanha, onde já se encontra. Agendada para o início do mês, a deslocação foi adiada em virtude da mais recente vaga de violência israelo-palestiniana.

“Todos os alemães conhecem a história da obsessão racista criminosa dos nazis que levou à rutura civilizacional que foi o Holocausto”, reagiu à polémica Steffen Seibert, porta-voz da chanceler alemã, Angela Merkel. “Isto é ensinado nas escolas alemãs por uma boa razão, nunca deve ser esquecido. E não vejo razão para mudarmos a nossa visão da história de forma alguma. Sabemos que a responsabilidade por este crime contra a humanidade é alemã.”

Moshe Zimmermann, estudioso do Holocausto e do Antissemitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém, criticou as palavras do líder israelita: “Qualquer tentativa para desviar a responsabilidade de Hitler para outros é uma forma de negação do Holocausto”, disse ele à Associated Press. “Banaliza o Holocausto.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de outubro de 2015. Pode ser consultado aqui

Hitler não queria matar os judeus, defende o primeiro-ministro de Israel

A violência entre israelitas palestinianos passou dos atos às palavras. Netanyahu afirmou que o responsável pelo Holocausto foi o Mufti de Jerusalém, enquanto na UNESCO os palestinianos lutam para que o Muro das Lamentações seja “parte integrante” da Esplanada das Mesquitas

O primeiro-ministro israelita defendeu, esta terça-feira, que Adolf Hitler não tinha intenção de matar os judeus durante o Holocausto. Segundo Benjamin Netanyahu, o responsável pelo extermínio de seis milhões de judeus foi Haj Amin al-Husseini, o Mufti de Jerusalém (líder religioso muçulmano), que sugeriu a ideia ao líder nazi alemão.

“Hitler não queria exterminar os judeus naquela altura, ele queria expulsá-los”, afirmou Netanyahu num discurso perante o Congresso Mundial Sionista, que decorre em Jerusalém entre terça e quinta-feiras. Descreveu, de seguida, o que se passou no histórico encontro entre as duas personalidades, a 28 de novembro de 1941, na Alemanha: “Haj Amin al-Husseini visitou Hitler e disse: ‘Se os expulsar, todos eles irão para lá [para a Palestina]’.” Segundo Netanyahu, Hitler terá perguntado: “O que devo fazer com eles?” O Mufti respondeu: “Queime-os”.

Não é a primeira vez que o primeiro-ministro israelita responsabiliza Al-Husseini pelo Holocausto. Em 2012, diante do Parlamento de Israel (Knesset), referiu-se ao Mufti como “um dos principais arquitetos” da “solução final”.

“Em nome dos milhares de palestinianos que combateram ao lado das tropas aliadas na defesa da justiça internacional, o Estado da Palestina denuncia estas declarações moralmente indefensáveis e inflamatórias”, reagiu Saeb Erekat, secretário-geral da Organização de Libertação da Palestina (OLP). “É um dia triste da história que o líder do Governo israelita odeie tanto o seu vizinho que esteja na disposição de absolver o criminoso de guerra mais reconhecido na história, Adolf Hitler, pelo assassínio de seis milhões de judeus durante o Holocausto. Netanyahu devia parar de usar esta tragédia humana para marcar pontos com fins políticos”.

Palestinianos ao ataque na UNESCO

As palavras de Netanyahu surgem no mesmo dia em que se espera que a UNESCO se pronuncie sobre uma polémica proposta de resolução apresentada por um grupo de países árabes. Nela pede-se que o Muro das Lamentações — o lugar mais sagrado do judaísmo — seja designado “parte integrante” do complexo onde se situa a Mesquita de Al-Aqsa — o terceiro lugar mais sagrado dos muçulmanos, em Jerusalém.

A iniciativa, que devia ter sido votada na terça-feira, foi adiada e desencadeou fortes críticas não só em Israel, mas também ao mais alto nível da organização. A diretora-geral da UNESCO, a búlgara Irina Bokova, lamentou a proposta, defendendo que a alteração do estatuto da Cidade Velha de Jerusalém e dos seus Muros, património da Humanidade reconhecido por aquela organização cultural, poderá “incitar a novas tensões”.

Fisicamente, o Muro das Lamentações (também chamado Muro Ocidental) e a Mesquita de Al-Aqsa estão integrados num complexo conhecido por Esplanada das Mesquitas — em rigor, os muçulmanos chamam ao espaço Al-Haram al-Sharif (literalmente Santuário Nobre) e os judeus Monte do Templo. Localiza-se na Cidade Velha de Jerusalém, na parte leste do município, anexada por Israel durante a Guerra dos Seis Dias (1967).

A atual vaga de violência entre israelitas e palestinianos foi agravada por rumores que davam conta de que Israel se preparava para controlar todo o Monte do Templo, incluindo a Mesquita de Al-Aqsa. Israel negou as acusações, afirmando não ter quaisquer planos para alterar o “status quo” do local — que os judeus podem visitar, mas não usar para orações.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de outubro de 2015. Pode ser consultado aqui

Porque se fala de apartheid em Israel?

A ocupação israelita assenta em práticas discriminatórias que geram constante tensão nos territórios palestinianos

Tributo ao músico Roger Waters, ativista pró-Palestina e anti-apartheid CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

Há 28 anos, as pedras foram a arma dos palestinianos na revolta (Intifada) contra a ocupação israelita. Treze anos depois, a Intifada de Al-Aqsa explodia sob o signo de ataques suicidas. A resistência palestiniana à ocupação israelita — que dura há 48 anos — assemelha-se, cada vez mais, a um vulcão aparentemente adormecido mas com explosões pontuais. Na origem da violência estão práticas discriminatórias usadas por Telavive para controlar — e frustrar — os palestinianos e que levam cada vez mais vozes a comparar Israel a um Estado de apartheid.

COLONATOS: Todo o hectare conta

Qualquer dos 550 mil colonos judeus que vivem no território palestiniano da Cisjordânia (os da Faixa de Gaza foram transferidos em 2005) goza dos privilégios decorrentes da lei civil israelita. Isso inclui o direito de voto e de recurso aos tribunais. Em contrapartida, os palestinianos que vivem no mesmo território são tutelados pela lei militar, estando sujeitos a ameaças de prisão e detenções arbitrárias e indefinidas. A expansão dos colonatos — considerados “ilegais” pelo Tribunal Penal Internacional — tem levado ao confisco de terras de populações árabes. A situação é dramática para os beduínos (nómadas) que veem escassear as áreas de pastoreio, ficando limitados a trabalhar nos colonatos, que lhes tiraram as terras e lhes pagam salários inferiores. É o que acontece com as populações afetadas pelo polémico projeto E1, que ligará Jerusalém Oriental (ocupada) ao colonato de Ma’ale Adumim, onde vivem 40 mil pessoas.

ESTRADAS: Sair à rua pelo telhado

Na paisagem da Cisjordânia é possível ver modernas autoestradas asfaltadas paralelas a ruas em terra. As primeiras ligam colonatos e apenas judeus as podem usar. Foi numa destas vias que foram raptados, a 12 de junho de 2014, três jovens judeus, posteriormente encontrados mortos. O caso esteve na origem da última ofensiva israelita na Faixa de Gaza e levou israelitas a questionarem a capacidade do Estado para garantir a segurança dos seus compatriotas num cenário de ocupação. Os jovens foram raptados na área C — assim definida pelos Acordos de Oslo de 1993 —, cuja administração e segurança são da total responsabilidade de Israel. Mas é na cidade de Hebron que esta prática tem contornos mais extremos. Em 2000, o exército israelita interditou a circulação de palestinianos na Rua Shuhada, o coração comercial da localidade. As portas de algumas casas onde viviam palestinianos foram soldadas ou entaipadas, obrigando os moradores a recorrer a saídas alternativas. O documentário “The Rooftops of Hebron” (Os Telhados de Hebron, 2006), divulgado pela B’tselem (organização israelita de defesa dos direitos humanos nos territórios ocupados), conta a história de Malka Kafisha, uma palestiniana que para sair à rua passou a ter de subir pelo telhado.

MURO: Rendilhado de cantões

Iniciado em 2003, para travar os ataques suicidas da segunda Intifada, o muro da Cisjordânia cresce de forma cega, cortando aldeias a meio (como em Abu Dis) e separando casas e áreas agrícolas. A “barreira de separação”, como Israel prefere chamar — os seus 708 km são sobretudo em arame e não em betão —, não segue o traçado do armistício de 1949 (Linha Verde). Perto de Belém, a aldeia de Al-Nu’man, por exemplo, ficou cercada pelo muro. Os habitantes foram informados que não seriam abertas passagens na vedação, pelo que melhor seria se abandonassem a aldeia. O mapa da Cisjordânia é hoje um rendilhado de cantões, afastados por checkpoints militares israelitas em prejuízo da circulação quotidiana dos árabes e, a prazo, de uma Palestina independente e economicamente viável. Na Faixa de Gaza, o outro território palestiniano, controlado pelos islamitas do Hamas, Israel bloqueia por terra, ar e mar.

DEMOLIÇÕES: Destrói ou paga!

A contagem é feita por uma organização israelita: desde 1967, Israel já ordenou a demolição de 48.488 casas palestinianas, denuncia o Comité Israelita Contra a Demolição de Casas (ICHAD). Invocando procedimentos administrativos, como a falta de uma determinada licença, autoridades municipais israelitas emitem ordens de demolição de casas árabes. “Na prática, essas licenças são quase impossíveis de obter por parte dos palestinianos em áreas controladas pelos israelitas, considerando que um processo de planeamento separado disponível apenas para colonos lhes garante licenças de construção muito mais facilmente”, denuncia a Human Rights Watch, num relatório de 2012. Esta prática é particularmente relevante em Jerusalém Oriental (ali fica o Muro das Lamentações e a Esplanada das Mesquitas), onde a percentagem de árabes é cada vez menor. Casos há em que após receberem a ordem de demolição, palestinianos lutam anos nos tribunais (quando o podem custear), acabando por ver as suas pretensões rejeitadas. Depois, restam-lhes duas opções: ou destroem as suas casas pelas próprias mãos ou terão de pagar uma multa, o que não impedirá os tratores municipais de deitarem a casa abaixo. A questão das demolições tornou a norte-americana Caterpillar um alvo da campanha internacional BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções), contra Israel.

RETALIAÇÃO: Punição coletiva

A demolição de casas é, pontualmente, utilizada para punir ou enviar uma mensagem a palestinianos suspeitos de envolvimento em “ataques terroristas”. Foi o que aconteceu em Hebron, às casas dos dois suspeitos da morte dos três jovens judeus, em junho de 2014. A medida afeta, muitas vezes, toda a família do suspeito, independentemente da sua participação ou não no crime e, por vezes, toda a região. A seguir ao rapto dos três judeus, a operação de busca (Guardião dos Irmãos) decorreu em várias cidades da Cisjordânia: foram mortos nove palestinianos, detidas centenas de pessoas e efetuadas incursões em universidades, jornais e milhares de casas. Outras formas de punição coletiva são o confisco de terras e arranque ou queima de oliveiras e árvores de fruto (seja para construir o muro ou entregar as propriedades a judeus), a imposição de recolher obrigatório, incursões militares (por vezes, noturnas), o corte de eletricidade ou o próprio bloqueio à Faixa de Gaza.

JUSTIÇA: Presos sem acusação

Em julho passado, o Parlamento de Israel (Knesset) aprovou uma lei que possibilita que jovens palestinianos possam ser condenados até 20 anos de prisão por atirarem pedras contra as forças de ocupação israelitas. O deputado israelita árabe Jamal Zahalka pôs o dedo na ferida: “Imaginem que são levados diante de um verdadeiro juiz aquele que atirou a pedra e os responsáveis pela situação que o levou a atirar a pedra. Quem mandaria o juiz para a prisão? Quem destruiu a casa do atirador da pedra, expropriou as suas terras, matou o seu irmão, ou o rapaz que a atirou?” Segundo a organização B’tselem, no fim de agosto passado, havia nas prisões israelitas 5373 palestinianos detidos por razões de segurança: 156 eram menores e 341 objeto de “detenção administrativa”, ou seja, sem acusação nem julgamento.

VIOLÊNCIA: Colonos intocáveis

A 5 de agosto, Mordechai Meyer tornou-se o primeiro colono judeu alvo de detenção administrativa (por seis meses), por envolvimento no fogo posto que destruiu a Igreja da Multiplicação, na Galileia (norte de Israel). Tratou-se de um caso inédito também por ter levado as autoridades de Telavive a referirem-se a Mordechai como “membro de um grupo terrorista judaico”. Três dias antes, o Governo de Benjamin Netanyahu aprovara a extensão das medidas de detenção administrativa (até então aplicáveis apenas a árabes) a cidadãos israelitas judeus suspeitos de ataques contra palestinianos. A medida do Governo de Telavive era uma resposta a um crime que está na origem da atual vaga de violência: a 31 de julho, na aldeia de Duma, Ali Dawabsheh, de 18 meses, foi queimado vivo quando a sua casa foi atingida por cocktails molotov lançados por colonos. Os pais sobreviveram com queimaduras graves, mas acabariam por sucumbir. Dois colonos foram identificados mas, até ao momento, ninguém foi detido.

ÁGUA: A conta-gotas

Israel controla, virtualmente, toda a água disponível nos aquíferos da Cisjordânia: 73% destes recursos são canalizados para território israelita, 10% são para uso nos colonatos, ficando os restantes 17% de água para os palestinianos, que têm de a comprar a Israel a preços mais altos. A maioria da água consumida em Israel flui da bacia do rio Jordão, ainda que apenas 3% da sua extensão fique dentro das fronteiras anteriores a 1967, data do início da ocupação.

Artigo publicado no Expresso, a 17 de outubro de 2015

Muharram 1437 *

* Que é como quem diz, feliz ano novo islâmico. Milhões de muçulmanos assinalam, esta quinta-feira, a chegada de um novo ano

Passagem de ano é sinónimo de festa, feriado e… uma mesa farta com a família à volta. É assim em muitas casas portuguesas — e na generalidade do mundo muçulmano, que assinala esta quinta-feira a chegada do ano 1437. “Na Tunísia, temos o hábito de preparar um bom cuscus, que é o nosso prato nacional, com uma carne seca e salgada (o mesmo modo de preparação do bacalhau)”, explica ao Expresso a tunisina Sihem, que vive em Lisboa. “Normalmente, essa carne foi preparada antes, a partir do borrego sacrificado no ‘Id’, a festa que marca o fim da peregrinação a Meca.”

“Por norma, o dia é feriado administrativo em todos os países muçulmanos”, continua Sihem. “Os festejos diferem de país para país, mas em geral privilegia-se os encontros familiares sempre à volta de uma mesa rica.” Com a família na Tunísia, ela confessa que a data já lhe passa um pouco ao lado. “Cá não dá para festejar. As nossas festas passam muito pela família. Já me habituei a ignorar a data.”

O calendário muçulmano tem na sua origem um importante acontecimento histórico: a fuga do Profeta Maomé, e dos seus seguidores, de Meca para Medina. Em Meca, a popularidade das suas pregações era sentida, pelo poder instalado, como uma ameaça crescente. A hégira de Maomé (“hijra” em árabe significa “migração”) aconteceu a 622 d.C., que passou a ser o ano 1 do calendário islâmico.

Menos 11 dias todos os anos

Para determinar o ano em que vivem os muçulmanos não basta subtrair 622 ao ano em curso no Ocidente. O calendário muçulmano é lunar e totaliza, por ano, 354 ou 355 dias. Na prática, isto resulta num desfasamento de cerca de 11 dias comparativamente ao calendário gregoriano, que é solar.

Daqui resulta também uma rotação dos 12 meses do calendário islâmico — cada mês tem, alternadamente, 29 e 30 dias. Isto significa que a data da passagem de ano islâmica é variável, assim como as datas das festividades muçulmanas.

O primeiro dos 12 meses islâmicos chama-se Muharram (tem 30 dias). O mês mais famoso é o nono, Ramadan (30 dias), que corresponde ao período de jejum, que constitui uma das cinco obrigações de cada muçulmano. As outras quatro são o testemunho da fé, a oração, o pagamento da esmola e a peregrinação a Meca. O mês do Ramadão, por exemplo, demora 36 anos a perfazer uma volta ao calendário gregoriano.

Cada mês do calendário islâmico corresponde ao período entre duas lunações — tempo entre duas luas novas consecutivas. Em alguns países, o início do novo ano é determinado após observação da Lua, mas na maioria fazem-se cálculos astronómicos.

Métodos diferentes originam, por vezes, um hiato de um ou dois dias entre países na determinação do primeiro dia do ano. Nada que perturbe os negócios ou o normal funcionamento das instituições, já que, mesmo para os muçulmanos, o calendário lunar é usado apenas para determinar as datas das festividades religiosas. Em tudo o resto, é o calendário gregoriano ocidental que mede o tempo.

Sunitas vs xiitas: cisma também no calendário

Entre os cerca de 1200 milhões de muçulmanos em todo o mundo, este não será, porém, o primeiro “reveillon” de 2015. No Irão, e em países com grupos étnicos de influência persa, como é o caso do Afeganistão, o novo ano é assinalado impreterivelmente a 21 de março, coincidindo com a entrada da primavera.

O “Nowruz” — assim é conhecida a festa — está associado a tradições oriundas da religião zoroastriana, fundada na antiga Pérsia, muito antes do advento do Islão. “Apesar de sermos muçulmanos e de festejarmos todas as festas islâmicas, nós, iranianos, temos mais festas religiosas, como o ‘Id al-Ghadir’”, explica ao Expresso a iraniana Sepideh, que trabalha em Portugal. “Mas o nosso ano novo é o Nowruz. Seguimos o calendário solar persa.”

O “Id al-Ghadir” de que fala Sepideh refere-se à escolha de Ali, pelo Profeta, como seu sucessor, algo em que apenas os xiitas (como os iranianos) acreditam. Os sunitas não reconhecem essa nomeação, facto que está na origem do grande cisma entre muçulmanos sunitas e xiitas.

Em Portugal, como no resto do mundo, a esmagadora maioria dos cerca de 50 mil muçulmanos são sunitas. Estão maioritariamente concentrados na zona da grande Lisboa (Odivelas, Laranjeiro, Palmela e Barreiro), mas também há locais de culto no Porto e no sul do país.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 15 de outubro de 2015. Pode ser consultado aqui