A intervenção russa na Síria obriga os Estados Unidos a reagir. Mas a força enviada por Washington “roça o ridículo”, diz um analista

Ainda não foi anunciada, mas a batalha por Raqqa, a capital do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh), parece já estar em marcha. “Eles vão iniciar uma operação forte para tomar Raqqa. Não sei o dia exato. Eles não dizem. Mas a movimentação já começou”, disse ao Expresso o fotógrafo Gabriel Chaim. “Eles” são um grupo das Unidades de Proteção Popular (YPG, curdos sírios) que o brasileiro tem acompanhado desde Kobane, de onde saíram na semana passada. “Eles estão a tomar aldeias. Mas o avanço é lento. Há muitas minas escondidas.”
O repórter refere que a força que vai tentar reconquistar Raqqa inclui também peshmergas (curdos iraquianos) e milicianos do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, separatistas curdos turcos). “Não vai ser fácil nem rápido. Só com apoio aéreo poderão derrotar o Daesh.”
Dois povos, duas Sírias
Gabriel recorda que Raqqa é uma cidade árabe. Os curdos, que não são árabes, “fizeram uma parceria com um grupo ligado ao Exército Livre da Síria (rebeldes moderados), composto por ex-moradores da cidade, e estão a treiná-los. Quando recuperarem Raqqa vão entregar o poder a esse grupo árabe. Imagine-se o que aconteceria se curdos tomassem conta de uma cidade árabe… os árabes iriam revoltar-se”.
Na Síria, como no Iraque, árabes e curdos são mundos diferentes. Mas é do outro lado da fronteira, na Turquia — onde o poder central é desafiado pelo separatista PKK —, que este protagonismo curdo no combate ao Daesh mais indispõe. “Depois do surpreendente resultado eleitoral do AKP, a possibilidade de um entendimento entre rebeldes curdos e Governo ficou mais distante”, disse ao Expresso Manuel Castro e Almeida, colunista da televisão Al-Arabiya.
“Mal foi conhecido o resultado, o AKP acelerou a retórica anticurda, em relação ao PKK e aos curdos sírios. A Turquia continua a bombardear posições curdas na Síria e já vincou que não permitirá uma entidade curda autónoma, quase independente, na fronteira com a Síria. Este cenário, cada vez mais real, daria aos curdos da Turquia uma grande vantagem. Para o Governo AKP, fortemente ideológico e conservador, esta sempre foi a principal ameaça do conflito sírio.”
Na estratégia anti-Daesh que se esboça, nem só a Turquia mostra reservas. Após os EUA anunciarem o envio de 50 homens para o terreno, o Presidente russo, Vladimir Putin, alertou para o risco de uma “guerra por procuração” na Síria. Castro e Almeida defende, antes, que a preocupação de Washington é evitar um envolvimento prolongado e de difícil saída naquele que é o conflito mais complicado em décadas.
Há espaço para cooperar
“O programa americano de treino de rebeldes moderados, cancelado recentemente, propunha treinar milhares, mas treinou poucas dezenas. O contingente que Obama decidiu agora enviar (nem são tropas de combate) por enquanto roça o ridículo dada a gravidade da situação e a magnitude da ameaça”, diz este especialista em assuntos do Médio Oriente.
Há oito dias, em Viena, negociações sobre o conflito sentaram à mesa, pela primeira vez, todos os Estados da região, incluindo os arqui-inimigos Arábia Saudita (árabe sunita) e Irão (persa xiita). “Rússia e EUA podem ter visões diferentes em relação à Síria e ao regime, mas também têm preocupações comuns, com o Daesh no topo. Apesar da intervenção russa envolver bombardeamentos contra a oposição em geral, e não só o Daesh, há bastante espaço para cooperação. É verdade que a intervenção russa obriga os americanos a reagir. Mas para a Rússia a crise síria é mais importante estrategicamente do que para os EUA. Há uma forte possibilidade de a Rússia aceitar um novo governo sem Bashar al-Assad, desde que os seus interesses estratégicos sejam garantidos.”
Artigo publicado no “Expresso”, a 7 de novembro de 2015
