As citações que fizeram o mito

Fidel Castro à chegada ao aeroporto de Washington D.C., em 1959 WARREN K. LEFFLER / WIKIMEDIA COMMONS
“SE QUISER FERRO PARA FABRICAR OS SEUS BARCOS PODEREI MOSTRAR-LHE AS MELHORES MINAS DE FERRO DO MEU PAÍS. SÃO EM MAYARI, ORIENTE, CUBA.”
Excerto de uma carta enviada por Fidel Castro ao Presidente dos EUA Franklin Roosevelt, tinha o cubano 14 anos
 
“O MOVIMENTO TRIUNFARÁ. SE VENCERMOS, FAR-SE-Á MAIS CEDO AQUILO A QUE MARTÍ ASPIROU. SE OCORRER O CONTRÁRIO, SERVIRÁ DE EXEMPLO AO POVO DE CUBA PARA QUE EMPUNHE A BANDEIRA E SIGA EM FRENTE.”
Fidel invoca José Martí, o herói da independência cubana, no discurso aos homens que o acompanharam no assalto ao quartel de Moncada, a 26 de julho de 1953
 
“NÃO RECEIO A PRISÃO, TAL COMO NÃO RECEIO A FÚRIA DO MISERÁVEL TIRANO QUE ROUBOU A VIDA A SETENTA DOS MEUS CAMARADAS. CONDENAI-ME. NÃO IMPORTA. A HISTÓRIA ABSOLVER-ME Á.”
Conclusão da alegação de defesa feita pelo próprio Fidel, após ser preso na sequência da operação falhada de tomada do quartel de Moncada
 
“QUERO SABER TUDO E ATÉ RELEIO AS BIBLIOGRAFIAS DE CADA LIVRO, ACALENTANDO A ESPERANÇA DE LER MAIS TARDE. LÁ FORA, INQUIETAVA-ME PORQUE O TEMPO ME FALTAVA E AQUI, ONDE O TEMPO PARECE SOBRAR, TAMBÉM ME INQUIETO. QUE ESCOLA TÃO FORMIDÁVEL É ESTA PRISÃO!”
Excerto de uma carta de Fidel a Natty Revuelta, com data de 18 de dezembro de 1953, escrita na prisão, onde se revelou um ávido leitor
 
“NA MONTANHA, SOFRE-SE MAIS DE SEDE QUANDO O CANTIL ESTÁ VAZIO. ADQUIRI O HÁBITO DE NÃO BEBER ÁGUA ATÉ PODER REABASTECE-LO.”
 
“SÓ TENHO UMA NOIVA: A REVOLUÇÃO!”
Após ser rejeitado pela jovem Lidia Amor, por quem se apaixonara
 
“GANHÁMOS! COMO JOSÉ MARTÍ RECUPERÁMOS A NOSSA TERRA! O TIRANO BATISTA TEM OS DIAS CONTADOS!”
Acabado de atracar em Cuba, a bordo do Granma, a 2 de dezembro de 1956, para desencadear a revolução
 
Fidel Castro é interrogado após ser detido na sequência do assalto ao quartel de Moncada, em julho de 1953, em Santiago de Cuba WIKIMEDIA COMMONS
 
“QUEREMOS ESTABELECER EM CUBA UMA VERDADEIRA DEMOCRACIA, SEM VESTÍGIOS DE FASCISMO, PERONISMO OU COMUNISMO.”
Em Nova Iorque, durante uma visita aos Estados Unidos, logo após a revolução de 1959
 
“O PROBLEMA É QUE NOS PUSERAM A ESCOLHER ENTRE UM CAPITALISMO QUE MATA AS PESSOAS DE FOME E O COMUNISMO QUE RESOLVE O PROBLEMA ECONÓMICO MAS SUPRIME AS LIBERDADES TÃO CARAS AO HOMEM.”
 
“CRISTO NÃO FOI BUSCAR DOZE PROPRIETÁRIOS PARA FAZER DELES SEUS APÓSTOLOS MAS SIM DOZE PESCADORES POBRES…”
Discurso a 9 de novembro de 1959, por altura de uma festa religiosa em honra de Nossa Senhora da Caridade do Cobre, santa padroeira de Cuba
 
“SOU UM MARXISTA-LENINISTA E ASSIM SEREI ATÉ AOS ÚLTIMOS DIAS DA MINHA VIDA.”
Discurso a 2 de dezembro de 1961
 
“SE SOBREVIVER A TENTATIVAS DE ASSASSINATO FOSSE UMA MODALIDADE OLÍMPICA, EU TERIA GANHO A MEDALHA DE OURO.”
Segundo Fabián Escalante, fundador dos serviços de segurança cubanos, Fidel foi alvo de 634 tentativas de assassinato
 
“QUE HAJA DISTRIBUIÇÃO EQUITATIVA E QUE NINGUÉM ENTRE EM COMPADRIOS, POIS NÃO PODE HAVER PRIVILÉGIOS, ABSOLUTAMENTE!”
Após instituir a “caderneta” de racionamento para cada chefe de família cubano, em março de 1962
 
“CREIO QUE TODOS NÓS DEVEMOS APOSENTAR-NOS RELATIVAMENTE JOVENS.”
Em entrevista à “Playboy”, publicada em janeiro de 1967
 
“CHEGARÁ UM DIA EM QUE FRUTAS, VEGETAIS E ATÉ O LEITE SERÃO DISTRIBUÍDOS GRATUITAMENTE POR TODO O POVO. CHEGARÁ O DIA EM QUE O DINHEIRO NADA VALERÁ. O HOMEM TRABALHARÁ PELO HÁBITO.”
Por alturas da “ofensiva revolucionária” de 1968, em que Fidel nacionaliza o que restava da iniciativa privada cubana
 
“AS RELAÇÕES NÃO PODERÃO MELHORAR ENTRE NÓS ENQUANTO OS ESTADOS UNIDOS SE ARROGAREM O DIREITO DE PRATICAR A INTERVENÇÃO E A SUBVERSÃO NA ÁREA.”
 
“O ESCRAVO SOU EU! SOU O ESCRAVO DO MEU POVO. DEDICO-LHES DIAS E NOITES HÁ JÁ QUASE CINQUENTA ANOS. COM QUE IDADE SE REFORMAM NOS VOSSOS PAÍSES?”
 
“FOI O MEU PAI QUE ME DEU O PRIMEIRO CHARUTO. EU DEVIA TER UNS 14 OU 15 ANOS. LEMBRO-ME QUE FUMEI AQUELE PRIMEIRO ‘PURO’ SEM SABER COMO SE FAZIA. FELIZMENTE, NÃO INALEI O FUMO.”
Até deixar de fumar, Fidel tornou-se o maior propagandista dos charutos Cohiba
 
“SOCIALISMO OU MORTE!”
Durante uma cerimónia comemorativa do 30.º aniversário da revolução, em janeiro de 1989
 
Fidel Castro e o revolucionário cubano Camilo Cienfuegos, por volta do ano 1959, momentos antes de jogarem uma partida de beisebol pela equipa dos “Barbudos” WIKIMEDIA COMMONS
 
“PEDEM-NOS QUE RETIREMOS AS NOSSAS TROPAS DE ÁFRICA, ENQUANTO NO NOSSO PRÓPRIO TERRITÓRIO, NA BASE DE GUANTÁNAMO, TEMOS MILHARES DE SOLDADOS AMERICANOS CONTRA A NOSSA VONTADE!”
Em 1976, criticando os EUA, numa altura em que tropas cubanas combatiam em Angola
 
“UMA VEZ, A NATIONAL GEOGRAPHIC TIROU-ME UMA FOTOGRAFIA EM HAVANA E PAGOU COM UM CHEQUE DE 100 DÓLARES, QUE NÃO FOI POSSÍVEL DESCONTAR. ASSIM, OS ESTADOS UNIDOS, ALÉM DE TODAS AS OUTRAS DÍVIDAS, DEVEM-ME ESSES 100 DÓLARES.”
Ironizando sobre a dívida reivindicada pelos Estados Unidos, por causa das nacionalizações de empresas norte-americanas em Cuba
 
“ASSIM DESEMBARCAREI. O MEU COLETE É MORAL E FOI O QUE ME PROTEGEU SEMPRE.”
Em outubro de 1979, a bordo de um avião onde seguiam também jornalistas americanos, a caminho da sede da ONU, em Nova Iorque, mostrando que não trazia colete à prova de bala
 
“TODOS OS MEUS AMORES SÃO PLATÓNICOS.”
Fidel Castro teve nove filhos de cinco mulheres
 
“ACIMA DE TUDO, USO UNIFORME POR UMA QUESTÃO PRÁTICA. ASSIM NÃO TENHO DE COLOCAR UMA GRAVATA TODOS OS DIAS. ACABA-SE O PROBLEMA DE TER DE ESCOLHER O FATO, A CAMISA, AS MEIAS. TUDO COMBINA.”
 
“VOU PROCURANDO AS MULHERES AQUI E ALI, LUTANDO CONTRA OS PRECONCEITOS QUE SUBSISTEM. MAS SE DEIXARMOS A QUESTÃO ENTREGUE ÀS LEIS QUE VIGORAM NO CAPITALISMO, DEDICAR-SE-ÃO A TRABALHAR EM BARES, A SEREM PROSTITUTAS OU MULHERES DE SEUS MARIDOS, COMO ANTERIORMENTE QUANDO UMA MULHER DIVORCIADA ERA CONDENADA AO DESPREZO.”
 
“NÃO ENTENDO PORQUE ME CHAMAM DITADOR. UM DITADOR É ALGUÉM QUE TOMA DECISÕES ARBITRÁRIAS E UNILATERAIS E QUE ATUA ACIMA DAS INSTITUIÇÕES.”
 
“O POVO COLOCOU-ME ALI E UM REVOLUCIONÁRIO NÃO DESERTA.”
Em março de 1990, em conversa com jornalistas durante uma visita ao Brasil
 
“CUBA NÃO É UM PAÍS ONDE O SOCIALISMO CHEGOU DEPOIS DOS BATALHÕES VITORIOSOS DO EXÉRCITO VERMELHO. MAS SE HOUVESSE REGRESSO AO CAPITALISMO, SERÍAMOS UM PROLONGAMENTO DE MIAMI.”
Após a queda do Muro de Berlim
 
“TODAS AS CRÍTICAS SÃO OPOSIÇÃO. E TODA A OPOSIÇÃO É CONTRARREVOLUCIONÁRIA.”
 
“HÁ QUEM PENSE QUE TENHO O PODER DE ESPANTAR A CHUVA. VAMOS VER…”
 
“O PAPA NÃO PODE SER CONSIDERADO O ANJO EXTERMINADOR DE SOCIALISMOS, COMUNISMOS E REVOLUÇÕES. ELE É UM CRÍTICO PERMANENTE DA GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL. E MUITO NOS ALEGRAMOS COM ISSO.”
Sobre João Paulo II, que visitou Cuba em janeiro de 1998
Na sala da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, a 22 de setembro de 1960 WARREN K. LEFFLER / WIKIMEDIA COMMONS
 
“CHEGUEI À CONCLUSÃO, TALVEZ UM POUCO TARDE, QUE OS DISCURSOS DEVEM SER CURTOS.”
Frase proferida em agosto de 2000. Em setembro de 1960, Fidel discursou na Assembleia Geral da ONU, com uma alocução que entrou para o Livro de Recordes do Guinness como a mais longa feita nas Nações Unidas
 
“A NOSSA JUVENTUDE PRECISA DE EDUCAÇÃO ABRANGENTE, UMA PROFUNDA CULTURA POLÍTICA, NEM DOGMÁTICA NEM SECTÁRIA. JOSÉ MARTÍ DISSE: ‘SER CULTO PARA SER LIVRE’. HÁ QUE ACRESCENTAR A APÓSTROFE: ‘SEM CULTURA NÃO HÁ LIBERDADE POSSÍVEL’.”
Em 2000, quando promove uma re-estruturação da política cultural cubana
 
“EU TAMBÉM SOU UM SONHADOR QUE VIU OS SEUS SONHOS TORNAREM-SE REALIDADE.”
A 8 de dezembro de 2000, durante a inauguração de uma estátua em bronze de John Lennon, que surge sentado num banco de parque, em Havana
 
“TRAIRIA A MINHA CONSCIÊNCIA SE ASSUMISSE UMA RESPONSABILIDADE QUE REQUER MOBILIDADE E ENTREGA TOTAL E QUE NÃO ESTOU EM CONDIÇÕES FÍSICAS DE OFERECER. DIGO-O SEM DRAMATISMO.”
Excerto da mensagem de Fidel, publicada no “Granma” a 19 de fevereiro de 2008, explicando a sua renúncia à presidência de Cuba

Artigo publicado no Expresso Online, a 30 de dezembro de 2015, onde as citações surgem acompanhadas de fotos. Pode ser consultado aqui

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Pressionado no terreno, Daesh contra-ataca… com palavras

Após a conquista de Ramadi aos jiadistas, as autoridades iraquianas apressaram-se a identificar a próxima batalha — Mosul — e a prometer o fim do Daesh para 2016. Confrontados com crescentes perdas territoriais, os extremistas contra-atacam com retórica. Muçulmanos de todo o mundo respondem-lhes… com sarcasmo

A reconquista de Ramadi, concluída na segunda-feira pelas tropas iraquianas, é o mais visível — e importante — de um conjunto de desaires acumulados recentemente pelo autoproclamado Estado Islâmico (Daesh). Aquela cidade iraquiana é um dos vértices do chamado “triângulo sunita”, uma grande área habitada maioritariamente por populações muçulmanas sunitas (confissão minoritária no Iraque) que engloba a capital, Bagdade.

No tempo de Saddam Hussein, o “triângulo” era um bastião de apoio ao Presidente (também ele sunita). No pós-Saddam, tornou-se um pólo aglutinador do descontentamento sunita em relação à governação sectária de Bagdade (beneficiando a maioria xiita) e uma zona permeável ao Daesh (sunita) que capitalizou apoio com a frustração sunita.

Mas para Bagdade, Ramadi é só o início da libertação do Iraque das mãos do Daesh. “Após a vitória em Ramadi, a libertação da nossa querida Mosul será alcançada graças à cooperação e à unidade de todos os iraquianos”, afirmou o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi. “2016 será o ano da grande vitória final, quando a presença do Daesh no Iraque terminar.”

Situada a 400 km para norte de Bagdade, a retoma de Mosul (a segunda cidade iraquiana) significará, para as autoridades iraquianas, o fim do “califado” proclamado, a 29 de junho de 2014. “Foi ali que Abu Bakr al-Baghdadi declarou o seu califado”, disse o ministro das Finanças Hoshiyar Zebari. “É, literalmente, a capital deles.”

Raqqa debaixo de fogo

Também na Síria, o cerco ao Daesh está a apertar-se. Raqqa, onde o Daesh tem o seu quartel-general, tem sido alvo de fortes bombardeamentos da aviação norte-americana, russa e francesa, intensificados após os atentados de Paris de 13 de novembro.

No sábado, as Forças Democráticas da Síria — uma coligação rebelde apoiada pelos EUA e que inclui curdos sírios e grupos árabes e cristãos — capturaram ao Daesh a grande barragem de Tishrin, no Rio Eufrates, 90 km para leste de Alepo, no âmbito de uma operação que visa cortar as linhas de abastecimento dos jiadistas no norte da Síria.

No dia seguinte, o ministério da Defesa da Rússia — país que tem sido acusado de alvejar mais grupos opositores a Bashar al-Assad do que posições do Daesh — divulgou um vídeo filmado com drone mostrando bombardeamentos russos a 37 refinarias e outras instalações petrolíferas e 17 colunas de camiões do Daesh preparados para transportar, clandestinamente, petróleo para a Turquia.

Daesh sobe a fasquia e ameaça Israel

Enquanto, no sábado, já se anunciava a recuperação de Ramadi — e Bagdade celebrava um teste bem sucedido à capacidade operacional das forças iraquianas —, surgia nas redes sociais um áudio atribuído a Abu Bakr al-Baghdadi (mas cuja autenticidade não foi confirmada de forma independente).

Na mensagem de 24 minutos, o “califa” (que não se ouvia desde maio) garantia que os bombardeamentos da Rússia e da coligação liderada pelos EUA não conseguiam enfraquecer o Daesh. “Estejam confiantes de que Deus concedará a vitória àqueles que o adoram, e ouçam as boas notícias de que o nosso Estado está a ir bem. Quanto mais intensa é a guerra, mais pura e mais difícil ela se torna”, disse.

Al-Baghdadi não se limitou à defesa e subiu a fasquia das ameaças como nunca antes, visando diretamente… Israel, que faz fronteira com a Síria, mas, até ao momento, não foi alvo dos jiadistas. “Estamos mais próximos de vocês a cada dia que passa. Não pensem que nos esquecemos de vocês”, disse. “Deus fez com que os judeus de todo o mundo se reunissem em Israel, o que torna a guerra contra eles mais fácil.”

Ao ameaçar Israel, o Daesh tenta ganhar popularidade entre os muçulmanos — o ódio a Israel é um sentimento partilhado de Rabat a Jacarta. Mas também corre o risco de estar a lavrar a sua sentença de morte. Jurgen Todenhofer, um jornalista alemão de 75 anos que, em 2014, passou dez dias junto do Daesh, afirmou, recentemente, numa entrevista ao jornal digital britânico “The Jewish News”: “O único país que o Daesh teme é Israel. Disseram-me que estão conscientes que o exército israelita é demasiado forte para eles”.

Muçulmanos sarcásticos com o Daesh

Na gravação atribuída a Al-Baghdadi, o Daesh diz-se rodeado de inimigos e apela ao levantamento de muçulmanos no mundo inteiro. O apelo foi correspondido, mas não exatamente no sentido pretendido pelos jiadistas…

“Desculpa camarada, não quero arriscar morrer antes de sair o próximo Guerra das Estrelas”, tweetou @MohsinArain91. “O meu pai diz que tenho de estar em casa às oito da noite. Estamos despachados a essa hora?”, ironizou uma muçulmana que se identifica como @guidanceofgod.

“Desculpa lá Daesh. Este muçulmano aqui acaba de acordar. Precisa de café. E também, como é fim de semana de Natal, tenho de estar com a família. Estou no ir”, escreveu @SalmanSoz. “Desculpa, mas vou celebrar o ano novo com amigos e estou ocupado a organizar a festa. Talvez mais tarde?”, propôs @najibsamehgmail.

Acossado no terreno, também no teatro da propaganda o Daesh está a sentir cada vez mais resistência.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 29 de dezembro de 2015. Pode ser consultado aqui

Troca de populações atravessa três países

A evacuação de três localidades sírias, esta segunda-feira, obriga populações a entrarem em dois países vizinhos antes de regressarem à Síria. Um processo complicado que espelha a complexidade deste conflito, a três semanas de uma nova ronda de conversações de paz, em Genebra

Três localidades sírias começaram a ser evacuadas, esta segunda-feira, na sequência de “acordos locais de reconciliação” entre regime e rebeldes. Mediados pelas Nações Unidas, em setembro passado, estes entendimentos visam levar os rebeldes a depor as armas em troca de assistência humanitária a populações sitiadas há meses.

Zabadani, junto à fronteira com o Líbano, era, até agora, uma cidade controlada por forças rebeldes e cercada por forças governamentais (apoiadas pelo movimento xiita libanês Hezbollah).

Um cortejo de veículos da Cruz Vermelha Internacional e das Nações Unidas transportou, esta segunda-feira, cerca de 120 combatentes e famílias, alguns deles feridos, através da fronteira com o Líbano. Em Beirute, estas pessoas apanharão um avião rumo à Turquia, para depois voltarem a entrar em território sírio, onde serão recolocadas em áreas controladas pelos rebeldes, na província de Idlib (noroeste).

Em contrapartida, precisamente em Idlib, um processo semelhante decorre nas aldeias xiitas de Fuaa e Kafraya (apoiantes do regime), que têm vivido sitiadas por forças sunitas, desde março.

Cerca de 335 pessoas, selecionadas entre os habitantes mais necessitados em termos médicos, beneficiarão de passagem segura, por terra, através do posto fronteiriço sírio-turco de Bab al-Hawa. Depois seguirão de avião até ao aeroporto de Beirute (Líbano) e regressarão por terra para zonas controladas pelo Governo sírio, nos arredores de Damasco.

Assad fortalece posição

A concretização de um outro acordo, visando a transferência de milhares de rebeldes — incluindo jiadistas do autodenominado Estado Islâmico (Daesh) — de dentro e dos arredores do campo de refugiados palestinianos de Yarmouk, a sul de Damasco, foi suspenso após o assassínio de um importante líder rebelde.

Zahran Alloush, comandante do Jaysh al-Islam (próximo da Arábia Saudita), foi morto na sexta-feira, num bombardeamento sobre a área de Ghouta, um bastião da oposição a leste de Damasco. Figuras da oposição atribuem o ataque à aviação russa, que bombardeia na Síria desde 30 de setembro em apoio do Presidente Bashar al-Assad.

Recentemente, o Jaysh al-Islam participou, na Arábia Saudita, em conversações de grupos da oposição, visando a preparação da terceira ronda de conversações de paz previstas para 25 de janeiro, em Genebra.

A eliminação de líderes como Zahran Alloush, que, no campo político, poderiam emergir como alternativas a Bashar al-Assad, fortalecem a posição do Presidente sírio e a sua retórica segundo a qual a alternativa à sua liderança é o terrorismo do Daesh.

A 15 de dezembro, após um encontro em Moscovo entre o Presidente russo, Vladimir Putin, e o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, os Estados Unidos deixaram cair a exigência da saída de Bashar al-Assad do poder. “Os Estados Unidos e os nossos parceiros não procuram a chamada mudança de regime”, afirmou Kerry.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de dezembro de 2015. Pode ser consultado aqui

Rússia está a matar civis na Síria, denuncia a Amnistia Internacional

Uma análise a 25 ataques da aviação russa na Síria permitiu à Amnistia concluir que entre os alvos há zonas residenciais, um mercado, uma mesquita e um hospital. A organização humanitária acusa ainda a Rússia de usar bombas de fragmentação “de forma indiscriminada”

Os bombardeamentos russos na Síria já mataram pelo menos 200 civis, denunciou a Amnistia Internacional, num relatório divulgado esta quarta-feira.

A organização de defesa dos direitos humanos diz ter analisado mais de 25 ataques russos em Homs, Hama, Idlib, Latakia e Alepo, realizados entre 30 de setembro e 29 de novembro.

O documento exemplifica um ataque realizado na província de Idlib, a 29 de novembro. Um caça russo disparou três mísseis na direção de um mercado na área de Ariha. Era domingo e o local estava cheio de gente. Um ativista local disse à Amnistia que 49 civis foram mortos ou estão dados como desaparecidos.

Mohammed Qurabi al-Ghazal acrescentou que a área é controlada pelo Jaysh al-Fatah, mas que não havia presença do grupo islamita na zona de Ariha.

A Aministia acusa a Rússia de usar bombas de fragmentação “de forma indiscriminada” e bombas sem sistemas modernos de guiamento em “áreas densamente povoadas”, o que pode constituir crimes de guerra.

Entre os alvos dos ataques de Moscovo, estão identificados, para além de áreas residenciais e do mercado de Ariha, uma mesquita e um hospital.

A Rússia começou a bombardear na Síria em setembro passado, a pedido do Presidente Bashal al-Assad, justifica Moscovo. Os russos insistem que atacam apenas posições “terroristas”, sejam do autodenominado Estado Islâmico (Daesh), sejam de outros grupos armados, alguns deles apoiados pelo Ocidente.

A Amnistia diz que está a investigar também ataques realizados pela coligação liderada pelos Estados Unidos, desde setembro de 2014.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de dezembro de 2015. Pode ser consultado aqui

EUA cedem à Rússia e aceitam que Assad continue no poder

Barack Obama chegou a defender, alto e bom som, que “Assad tem de partir”. A paralisação do processo de paz para a Síria e o aumento da ameaça jiadista obrigaram Washington a rever a sua posição, cedendo às exigências da Rússia

O futuro de Bashar al-Assad será determinado pelo povo sírio. Esta tem sido uma intransigência da Rússia relativamente ao conflito na Síria que, esta terça-feira, os Estados Unidos aceitaram.

“Os Estados Unidos e os seus parceiros não procuram uma alteração de regime”, afirmou o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, em Moscovo, após um encontro com o Presidente Vladimir Putin. Esta posição representa uma inversão relativamente à política seguida pelos EUA desde o verão de 2011, altura em que o Presidente Barack Obama defendeu: “Assad tem de sair” do poder.

A cedência norte-americana surge na sequência de “um grande dia de negociações”, como o qualificou Sergei Lavrov, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, país que tem sido um aliado consistente do Presidente da Síria. Kerry afirmou que, neste momento, o foco não deve incidir sobre as diferenças bilaterais sobre o futuro imediato de Assad, mas antes na facilitação de um processo de paz que leve os sírios “a tomar decisões sobre o futuro da Síria”.

O chefe da diplomacia norte-americana anunciou a realização de uma conferência sobre a Síria no final desta semana, em Nova Iorque. “Ninguém deveria ser forçado a escolher entre um ditador e ser atormentado por terroristas”, referindo-se ao autodenominado Estado Islâmico (Daesh). Contudo, a exigência da oposição síria de que Assad deve deixar o poder mal as conversações de paz comecem não será pré-condição.

Provas autênticas e condenatórias do regime

Horas após o anúncio da nova posição dos Estados Unidos relativamente a Bashar al-Assad, a organização humanitária Human Rights Watch (HRW) divulgou o relatório “If the Dead Could Speak: Mass Deaths and Torture in Syria’s Detention Facilities” (Se os mortos pudessem falar: mortes em massa e tortura nos centros de detenção da Síria), que denuncia “crimes contra a humanidade” realizados pelo Governo sírio.

O relatório resulta de uma análise a 28.707 fotografias que documentam a morte de 6786 detidos às mãos das autoridades de Damasco. Durante a investigação, que durou nove meses, a HRW localizou e entrevistou 33 familiares e amigos de 27 vítimas cujos relatos foram posteriormente confirmados; 37 antigos detidos que testemunharam mortes de presos; e quatro desertores que trabalharam em centros de detenção governamentais ou hospitais militares onde a maioria das fotografias foram tiradas.

“Confirmamos meticulosamente dezenas de histórias e acreditamos que as fotografias de Cesar apresentam provas autênticas — e condenatórias — de crimes contra a humanidade na Síria”, afirmou Nadim Houry, vice diretor da HRW para o Médio Oriente, num comunicado divulgado esta quarta-feira. “Cesar” é o nome de código de um militar sírio desertor que, em agosto de 2013, fez sair da Síria, de forma clandestina, 53.275 fotografias. As imagens foram entregues a um grupo opositor ao regime sírio (Movimento Nacional Sírio) que posteriormente as fez chegar à HRW.

“Os países que se vão encontrar visando possíveis negociações de paz na Síria — incluindo a Rússia, o maior apoiante do Governo sírio — devem fazer do destino de milhares de detidos na Síria uma prioridade”, refere o comunicado da organização humanitária. “Devem insistir para que o Governo sírio dê aos investigadores internacionais acesso imediato a todos os centros de detenção e que os serviços secretos da Síria acabem com os desaparecimentos forçados e a tortura de detidos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de dezembro de 2015. Pode ser consultado aqui