Líder europeu diz que a maioria dos refugiados não foge da guerra

Vice da Comissão Europeia diz que é por “razões económicas” que tentam entrar na Europa

A maioria dos requerentes de asilo e dos refugiados que chegaram à União Europeia durante o mês de dezembro não reúne os requisitos para beneficiar de proteção internacional, garante o vice-presidente da Comissão Europeia Frans Timmermans.

“Mais de metade das pessoas que estão agora a chegar à Europa vem de países onde não há razões para solicitarem o estatuto de refugiado”, afirmou o comissário numa entrevista ao órgão de informação holandês Nos.

“Mais de metade, cerca de 60%”, detalhou Timmermans. São predominantemente marroquinos e tunisinos que deixaram os seus países por “razões económicas” e tentam entrar na Europa através da Turquia.

O vice-presidente baseia as suas afirmações num relatório da Frontex (Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia) que não foi tornado público.

Estas declarações colidem, no entanto, com as estatísticas de várias organizações que estão atentas ao fenómeno migratório. Segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR), até ao início de dezembro, mais de 75% das pessoas que chegavam à Europa vinham da Síria, Afeganistão e Iraque.

No mesmo sentido, a Organização Internacional para as Migrações (OIM) mantém que, durante o mês de janeiro, cerca de 90% das pessoas que chegaram à Grécia são provenientes dos mesmos três países.

Dificuldade em repatriar

Em outubro passado, os 28 comprometeram-se a reforçar as medidas de repatriamento de pessoas que não tenham os requisitos para ficarem na Europa. Mas o processo tem sido moroso, dadas as resistências de países como o Paquistão ou a Turquia em aceitarem cidadãos de volta.

A Grécia, por exemplo, formalizou o repatriamento de cerca de 12 mil pessoas para a Turquia, mas Ancara apenas aceitou metade e destes apenas 50% regressou efetivamente ao país. “Nalguns casos as pessoas fugiram, noutros as autoridades turcas demoraram muito a responder”, disse na terça-feira Matthias Ruete, coordenador da Comissão Europeia para as questões migratórias.

Na segunda-feira, após um encontro informal em Amesterdão, os ministros do Interior dos Estados membros pediram à Comissão medidas no sentido do prolongamento dos controlos fronteiriços temporários durante mais de dois anos. Seis Estados membros já repuseram esse controlo.

Recentemente, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, afirmou que a UE só “tem dois meses para salvar Schengen”, o acordo europeu que consagra a abertura de fronteiras e a livre circulação de pessoas entre os signatários.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de janeiro de 2016. Pode ser consultado aqui

Amnistia denuncia campanha anti-árabe no Curdistão iraquiano

Um relatório da organização humanitária revela que forças curdas iraquianas demoliram, fizeram explodir e queimaram milhares de casas num esforço deliberado para punir e forçar comunidades árabes à deslocalização

É uma guerra paralela no Iraque — a disputa por território em nome de identidades étnicas. “Forças peshmergas do Governo Regional do Curdistão e milícias curdas no norte do Iraque demoliram, fizeram explodir e queimaram milhares de casas num esforço aparente para desenraizar comunidades árabes em vingança ao que percecionam ser um apoio ao autodenominado Estado Islâmico [Daesh]”, denuncia a Amnistia Internacional num relatório divulgado esta quarta-feira.

O documento — intitulado “Banidos e desapossados: deslocamento forçado e destruição deliberada no norte do Iraque” — assenta numa investigação feita em 13 cidades e aldeias das províncias de Ninive, Kirkuk e Diyala, capturadas ao Daesh entre setembro de 2014 e março de 2015, em testemunhos de mais de 100 pessoas e imagens recolhidas por satélite.

As conclusões apontam para uma destruição em larga escala realizada por “peshmergas” (forças curdas iraquianas) e, em alguns casos, por milícias yazidis e grupos curdos armados oriundos da Síria e da Turquia, coordenados com os “peshmergas”.

“Forças do Governo Regional do Curdistão parecem estar a liderar uma campanha concertada para deslocar à força comunidades árabes, destruindo aldeias inteiras em áreas reconquistadas ao Daesh no norte do Iraque”, acusou Donatella Rovera, conselheira da Amnistia que investigou no terreno. “A deslocação forçada de civis e a destruição deliberada de casas e propriedades sem justificação militar podem constituir crimes de guerra.”

Estratégia inversa à de Saddam

Os curdos, que não são árabes, correspondem a cerca de 20% da população iraquiana e são a etnia maioritária no norte do país. Apoiados por bombardeamentos aéreos dos Estados Unidos, os “peshmergas” têm conseguido recuperar territórios ao Daesh, alguns etnicamente mistos.

Citado pela agência Reuters, Dindar Zebari, do departamento internacional do Governo do Curdistão, justificou que a destruição resultou dos combates entre os “peshmergas” e os jiadistas, bem como dos bombardeamentos da coligação internacional e de bombas deixadas para trás pelo Daesh. E recordou que a região deu guarida a 700 mil árabes em fuga à violência no resto do país.

A Amnistia Internacional alerta a coligação para que se assegure que a assistência ao Governo do Curdistão não contribua para abusos, nomeadamente para um processo inverso à campanha de arabização da região promovida por Saddam Hussein. Então, as populações visadas por deslocações forçadas foram os curdos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de janeiro de 2016. Pode ser consultado aqui

Cercado por inimigos

Habituado a viver sob tensão, Israel reconhece passar, atualmente, por uma situação de incerteza junto às suas fronteiras. O “Expresso” visitou três e constatou que, apesar de o Daesh estar às portas, é o Irão que mais causa preocupação. Reportagem em Israel 

Quando olham para o mapa do país, as autoridades de Israel, em vez de Estados, tendem a analisar a vizinhança mais na perspetiva das ameaças. E são muitas. Estamos em Jerusalém, no edifício do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e Ariel Shafransky, diretor do departamento para o Médio Oriente, distribui um mapa de Israel pelos cinco jornalistas portugueses que o visitam. “Quando Israel acorda de manhã e olha pela janela, o que vê em termos estratégicos?”

A noroeste, no Líbano, está o Hezbollah. No território palestiniano da Faixa de Gaza, estão o Governo do Hamas, a Jihad Islâmica Palestiniana (“apoiada e financiada pelo Irão [xiita], apesar de ser uma organização sunita”) e “elementos da jihad global reunidos em pequenos grupos”. A ocidente, o Sinai egípcio é um porto de abrigo de grupos jiadistas. Quanto à fronteira com a Síria, é controlada, a norte, pelo Governo de Bashar al-Assad, ao centro pela oposição armada e a sul por um pequeno grupo local associado ao autoproclamado Estado Islâmico (Daesh). “E temos uma longa fronteira com a Jordânia que está… sossegada. Graças a Deus!”

Com o Daesh a apenas 100 km para leste do território israelita, pode causar estranheza o facto de esta organização extremista ou as suas sucursais — que atacou em Paris a 13 de novembro (129 mortos), afrontou a Rússia abatendo um avião comercial sobre o Sinai (224 mortos) e, inclusive, já visou o Hezbollah no atentado do Líbano de 12 de novembro (43 mortos) — nunca tenha virado as armas diretamente para Israel.

Tudo cai aos bocados

A verdade é que, para vários diplomatas do Ministério dos Negócios Estrangeiros e investigadores do Instituto de Estudos de Segurança Nacional (INSS), de Telavive, a maior ameaça a Israel está a mais de 1500 km de distância. “Por muito grande que uma ameaça como o Daesh seja, contígua à nossa fronteira”, diz Ariel Shafransky, “se tivesse de elaborar uma lista, em primeiro colocaria o Irão, depois o Hezbollah, o Hamas e, só depois, o Daesh e a jihad global.”

Ainda Abu Bakr al-Baghdadi não tinha declarado o ‘califado’ (o que viria a acontecer a 30 de junho de 2014) e já interesses de judeus eram visados pelo terrorismo internacional. São exemplos o ataque ao supermercado kosher em Paris (dois dias após o atentado contra o “Charlie Hebdo” em janeiro de 2014), contra o Museu Judaico de Bruxelas, a 24 de maio de 2014, ou contra uma escola judaica em Toulouse, a 19 de março de 2012.

“A situação em Israel é extremamente complexa, não tanto por razões internas, mas pelo que se está a passar na região”, diz Emanuel Nahshon, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Vivemos numa agitação e incerteza como nunca antes, uma situação desconhecida e imprevisível, com mudanças dramáticas a um ritmo diário. Parece o fim da I Guerra Mundial: o Império Otomano acabou e há o caos. Os Estados estão a desintegrar-se. Já não há Iraque, Síria nem Líbia. Está tudo a cair aos bocados, com consequências dramáticas para todos. Mas Israel está a tentar manter-se de fora.”

GAZA  Ao alcance dos rockets do Hamas

Na localidade israelita mais próxima da Faixa de Gaza, Netiv HaAsara, 800 pessoas vivem com o coração nas mãos

Na aldeia de Netiv HaAsara, há uma parede que funciona como exposição permanente. Fragmentos de mísseis lançados pelo Hamas da Faixa de Gaza revelam ao visitante o perigo a que está exposta aquela localidade israelita, a mais próxima do território palestiniano.

Um dos foguetes parece ser mais sofisticado. “Foi lançado por Israel… Fazia parte do sistema antimíssil [Cúpula de Ferro]”, explica Hila Fenlon, uma agricultora de 38 anos. Netiv Ha’asara está na encruzilhada: apanha com mísseis do Hamas e, involuntariamente, com foguetes de interceção lançados por Israel para defender a população mas que explodem sobre a aldeia.

Nesta aldeia, que funciona como cooperativa agrícola (moshav), vivem 800 pessoas. Muitas, como Hila, que produz sementes que exporta para todo o mundo, tinham sido colonos na Península do Sinai — território egípcio ocupado por Israel em 1967 e devolvido em 1982 na sequência do tratado de 1979.

O primeiro rocket caiu em Netiv HaAsara em 2000, ainda Israel tinha tropas e colonos em Gaza. Até ao momento, foram mortos três habitantes. A possibilidade de haver mortos é maior em cidades grandes como Sderot ou Ashkelon, ainda que mais afastadas do território controlado pelo Hamas e onde Israel, nos últimos sete anos, realizou três grandes operações militares.

“Nominalmente, o Hamas governa a Faixa de Gaza, mas ao mesmo tempo está disposto a permitir a existência de grupos mais extremistas desde que não desafiem a sua autoridade em termos religiosos”, explica o diplomata Ariel Shafransky.

Moradores têm APP no telemóvel que apita quando um rocket vem

Além do Hamas, estão presentes a Jihad Islâmica Palestiniana (PIJ) e pequenos grupos com uma agenda jiadista global, à semelhança da Al-Qaeda e do Daesh. “O Hamas foi, originalmente, estabelecido como um ramo da Irmandade Muçulmana”, explica Shafransky. “A PIJ é um movimento jiadista e as outras organizações mais pequenas servem a jihad global. Todos se comportam-se segundo o lema ‘vive e deixa viver’. Não é uma convivência fácil, há fricções que podem transbordar para Israel.”

Muitos habitantes de Netiv HaAsara têm instalada no telemóvel uma aplicação que alerta, em tempo real, para o disparo de foguetes vindos de Gaza. A app também disponibiliza um chat para saberem notícias de familiares e amigos que vivam ao alcance dos mísseis do Hamas. Junto à Faixa de Gaza, vive-se com o coração nas mãos.

LÍBANO   Uma ameaça contínua chamada Hezbollah

O perigo que a milícia xiita significa não se fica pelo Líbano. O Hezbollah ameaça também a partir da Síria

Espraiada ao longo de 79 km, a fronteira entre Israel e Líbano é chamada “linha azul”. Mas atendendo à conflitualidade frequente teria sido mais lógico um tom mais negro. “O Hezbollah está espalhado ao longo de toda a fronteira norte de Israel”, diz Ariel Shafransky, diretor do Departamento para o Médio Oriente do MNE. “Tem um arsenal de milhares de foguetes de diferentes tamanhos, alcances e precisões, capazes de atingir quase todo o território israelita.”

Na guerra de 2006, mísseis disparados pelo Hezbollah chegaram a Haifa. “Foi terrível. Mas agora têm mísseis mais precisos e destruidores. É um grande problema de segurança para Israel”, diz Samuel Ravel, vice-diretor da Divisão para a Europa do MNE.

A preocupação israelita em relação ao Hezbollah não se confina à fronteira com o Líbano. Israel estima que a milícia xiita tenha à volta de 5000 homens na Síria, em forte cooperação com o Irão em defesa do regime de Assad. Nos últimos três anos e meio sofreram mais de 1200 baixas.

“O interesse de Israel está mais relacionado com o Hezbollah do que com a Síria, que é um pântano que tentamos manter à distância, até agora com sucesso”, diz Shafransky. “É importante para Israel que nenhum equipamento russo vá parar às mãos do Hezbollah no Líbano. E também que a Rússia não permita que Irão e Hezbollah reforcem a sua presença nas áreas junto à nossa fronteira, para que o conflito não transborde para o nosso lado.”

100.000 mísseis é a estimativa que Israel faz em relação ao arsenal do Hezbollah. O número é aproximado, mas a origem é exata: o Irão, que fornece treino, dinheiro e material

Israel já revelou tolerância zero em relação a presenças suspeitas nos Golã. A 18 de janeiro de 2015, bombardeou a parte síria do planalto, matando um general iraniano e seis membros do Hezbollah.

Igualmente, por várias vezes, já atingiu veículos suspeitos de transportarem armas para o Hezbollah, dentro de território sírio. “Ao bombardear armamento sofisticado que está a ser transportado para o Hezbollah não quer dizer que Israel se queira envolver na guerra”, explica Benedetta Berti, do INSS. “Israel atua no pressuposto de que tanto o Hezbollah como os sírios estão demasiado ocupados para responderem à altura. Para mim, é um cálculo perigoso. Israel e Hezbollah estão muito contidos, mas é brincar com o fogo e arriscar uma escalada involuntária.”

Paramos num miradouro sobranceiro à aldeia israelita de Metula para observar o Líbano. Na paisagem verdejante, nada distingue as terras israelitas das libanesas. Ainda assim, um grupo de turistas brasileiros, previsivelmente judeus, insiste com o guia: “O que é nosso e o que é deles?”

GOLà Balcão com vista para a guerra na Síria

Desde o estratégico planalto dos Golã, Israel tem vista privilegiada para o conflito sírio. Mas não quer ser beligerante

“Se tivermos sorte, ainda poderemos ver um caça russo a entrar em Israel, mas não a ser abatido…” Estamos nos Montes Golã, e Oren Rozenblat, quadro do Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita, usa a ironia para, por um lado, aludir à proximidade geográfica com a guerra na Síria e, por outro, afirmar que Israel é um aliado fiável. (A Turquia tinha abatido um Su-24 russo dias após outro aparelho russo ter violado espaço aéreo israelita, sem consequências.)

Estamos a 3 ou 4 km da guerra, mas não há sinais de combates — nem de tropas de Bashar al-Assad, forças rebeldes, grupos jiadistas ou mesmo caças russos. Neste território ocupado por Israel em 1967, e reclamado pela Síria, Israel tem destacada a segunda maior concentração de tropas (a maioria para participar em manobras), a seguir ao deserto do Neguev. Mas à vista desarmada, há ali mais turistas do que militares. O mais famoso é o ator Sean Penn para quem, no kibbutz Merom Golan, se prepara um almoço.

À vista desarmada, há mais turistas nos Golã do que militares

A tranquilidade que se observa nos Montes Golã — onde vivem cerca de 15 mil colonos judeus em 15 aldeias — surpreende quem tenha presente a tensão que se atribui àquela fronteira desde há décadas. Em 1974 (após a guerra do Yom Kippur), a ONU estabeleceu ali uma missão de manutenção de paz (UNDOF), com o objetivo de manter o cessar-fogo entre sírios e israelitas.

É assim no papel, mas não no terreno. Em março de 2013, 21 capacetes azuis filipinos foram raptados na zona desmilitarizada por forças rebeldes, levando ao recuo da força da ONU para dentro de território israelita… Num posto de vigia próximo do Café Annan (que, diz-se por ali, Kofi Annan, apreciou particularmente quando o visitou), dois militares ao serviço da ONU consultam um portátil e olham pelos binóculos na direção da Síria. “Deviam estar no meio, não do nosso lado”, diz Oren. Para Israel, é uma prova de como, em matéria de segurança, o país tem poucos parceiros em quem confiar.

Desde que a Rússia começou a bombardear na Síria, a 30 de setembro, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, já se encontrou com o Presidente russo, Vladimir Putin, pelo menos duas vezes. Em Israel, tem-se a perceção de que a intervenção russa, em socorro de Assad, mudou as regras do jogo. “Ainda não sabemos se para melhor ou para pior em termos de duração do conflito”, diz Benedetta Berti, investigadora no INSS. “Sabemos sim que há um interesse estratégico de Israel no sentido de não ser beligerante.”

AUTORIDADE PALESTINIANA  O crepúsculo de Abbas

A liderança palestiniana está gasta, mas tarda em escolher sucessores. Em Israel, já se discute o que fazer se a AP ruir

Há duas semanas, uma citação atribuída ao primeiro-ministro de Israel fez correr rios de tinta na imprensa. “Temos de impedir o colapso da Autoridade Palestiniana (AP), se possível. Mas ao mesmo tempo, temos de nos preparar para a eventualidade de isso acontecer”, terá dito Benjamin Netanyahu a um grupo restrito de ministros e responsáveis pela segurança do país. A dissolução da AP acarretaria para Israel pesados encargos ao nível da segurança e da administração civil das áreas controladas pela AP — ou seja, parte da Cisjordânia, já que 60% do território é controlado por Israel e em Gaza quem governa é o Hamas.

“A Fatah [partido que lidera a AP] está decadente há anos”, refere o diplomata Ariel Shafransky. “O sentimento geral, dentro e fora do movimento, é que estamos a assistir ao crepúsculo de Mahmoud Abbas [Presidente palestiniano]. Há uma luta pelo poder e uma divisão profunda sobre a direcção a seguir, não em relação a Israel mas internamente.” Em setembro, a primeira reunião em 20 anos do Conselho Nacional Palestiniano foi adiada indefinidamente.

Enquanto isso, o processo de paz não avança e a estratégia palestiniana de reconhecimento internacional é questionada. “Se eu perguntar que tipo de Estado palestiniano reconheceu o Parlamento português não será possível detalhar, porque simplesmente não existe”, diz o porta-voz do MNE, Emanuel Nahshon. “Existirá como consequência de negociações com Israel. Preocupa-nos que os palestinianos se apaixonem por este processo de reconhecimento e pensem que vai substituir a realidade. Mas, concretamente, o que significa? Nada.”

TEXTOS DE APOIO AO MAPA

HEZBOLLAH — Organização xiita, criada em 1982, o “Partido de Deus” nasceu durante a invasão israelita do Líbano, no vale de Beqaa. Financiado e armado pelo Irão, partilha com a República Islâmica a interpretação xiita do Islão. Em 2006, combateu Israel durante 34 dias. Atualmente tem 13 deputados e dois ministros (Agricultura e Reforma Administrativa) nas instituições de Beirute. É muitas vezes descrito como “um Estado dentro do Estado”

HAMAS — Despontou em 1987, na Faixa de Gaza, com a primeira “Intifada” (insurreição) contra a ocupação israelita. O “Movimento de Resistência Islâmica” (de inspiração sunita) derrotou a secular Fatah nas legislativas palestinianas de 2006, resultado que não foi reconhecido. Em 2007, tomou o poder pela força na Faixa de Gaza. Nos últimos sete anos, travou três guerras contra Israel

DAESH — Acrónimo árabe de “Estado Islâmico do Iraque e do Levante”. Corresponde ao “califado” (governo islâmico) mundial proclamado pelo iraquiano Abu Bakr al-Baghdadi, a 30 de junho de 2014. De inspiração waabita (fundamentalismo sunita), a sua afirmação beneficiou da violência sectária que se seguiu à queda de Saddam Hussein (2003), no Iraque, e da guerra civil na Síria, iniciada em 2011

AUTORIDADE PALESTINIANA — Saída dos Acordos de Oslo de 1993 — os últimos assinados entre israelitas e palestinianos —, funciona como “governo interino” até à declaração da independência do Estado da Palestina. Presidida por Mahmoud Abbas, controla uma parte da Cisjordânia: a maioria do território é controlada por Israel (colonatos e vale do Jordão) e a Faixa de Gaza está nas mãos do Hamas

ACORDO NUCLEAR SÓ É BOM PARA O IRÃO

Investigadora israelita realça fragilidades do acordo nuclear e alerta: “O Irão vai testar a comunidade internacional”

É início da tarde de uma terça-feira e, no Instituto de Estudos de Segurança Nacional (INSS), em Telavive, uma sala lotada impressiona quem passe no corredor. “É uma conferência sobre o Irão”, explica Oren Rozenblat, do gabinete do porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel. “Os europeus acham que os israelitas dizem que estão preocupados com o Irão, mas na verdade não estão. Basta olhar para esta sala e tirar conclusões…”

Traumatizado por Mahmoud Ahmadinejad — o Presidente iraniano que, em 2005, disse que Israel devia ser “varrido do mapa” —, Israel é dos países que mais brama contra o acordo nuclear, assinado em Genebra, a 14 de julho passado. “É um acordo problemático, pelas suas fraquezas e falhas”, diz Emily Landau, que dirige o Programa de Segurança Regional e Controlo de Armas do INSS. “Não assegura a contenção do Irão.”

O sistema de verificação é uma das fraquezas. As instalações nucleares iranianas estão a ser inspecionadas, mas há sítios militares sob suspeita que Teerão não deixa que sejam vistoriados — como o complexo de Parchin, no norte.

“Há informações de serviços secretos nas mãos da Agência Internacional de Energia Atómica sobre atividades ali desenvolvidas”, diz a investigadora. A Agência tem um mandato para ir ao local, mas o Irão não colabora. “No verão, houve uma inspeção a Parchin. Enquanto os iranianos recolhiam amostras do solo, os inspetores estavam do lado de fora do complexo a vigiar com câmaras…”

Violações “insignificantes”

Emily Landau defende que, em nome de um processo de intenções ocidental de que dentro de 10 ou 15 anos (a validade do acordo) talvez o Irão seja mais moderado, a comunidade internacional vai fechar os olhos às ilegalidades de Teerão. “Não vai haver vontade política para denunciar violações ao acordo. O impulso vai ser dizer que não são significativas.”

Foi o que aconteceu em outubro após o Irão testar um míssil balístico (que pode transportar ogivas nucleares). “Os americanos disseram: ‘sim, viola a resolução do Conselho de Segurança, mas não o acordo nuclear’. É ridículo.” Para Telavive, a não inclusão do programa de mísseis balísticos do Irão é uma falha grave do acordo.

Este fim de semana, está previsto o levantamento formal de sanções ao Irão por parte de EUA e da União Europeia. “Este foi um bom acordo para o Irão”, conclui a israelita. “Sente-se forte e, por isso, sem razões para ser mais moderado para com os EUA. A inimizade com os EUA e Israel é uma forte componente deste regime. O Irão vai testar a comunidade internacional.”

O “Expresso” viajou a convite da Embaixada de Israel em Portugal

(Foto: Jovens militares israelitas, nos Montes Golã MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado no Expresso, a 16 de janeiro de 2016

Faíscas num barril de pólvora

A Arábia Saudita cortou relações com o Irão. A rivalidade transcende a religião e tem potencial para incendiar toda a região

Arábia Saudita e Irão, os dois gigantes do Médio Oriente WIKIMEDIA COMMONS

Sempre que a relação entre Irão e Arábia Saudita azeda, agita-se a bandeira de um conflito global entre sunitas e xiitas. No entanto, a rivalidade entre os dois gigantes do Médio Oriente vai muito além da religião. “A rivalidade é essencialmente geoestratégica e a desastrosa invasão do Iraque, que destruiu um dos três pilares de equilíbrio do poder regional, veio agravar de sobremaneira esta rivalidade”, explica ao Expresso Manuel Castro e Almeida, colunista do sítio da televisão Al-Arabiya. “Em tempos de crise como os de hoje, o elemento religioso/sectário ganha mais importância.”

A questão voltou a colocar-se esta semana, na sequência do corte de relações diplomáticas, no domingo, decretado pela Arábia Saudita, após a sua embaixada em Teerão ter sido atacada por iranianos em fúria contra a decapitação de um clérigo saudita xiita — braço do Islão minoritário no reino que é o guardião das mesquitas sagradas de Meca e Medina.

“A decisão de cortar relações é inevitável após o ataque à embaixada saudita em Teerão. Qualquer outro país faria o mesmo”, continua o ex-editor do jornal “Asharq Al-Awsat”. “Há muita especulação sobre as intenções da Arábia Saudita ao executar Al-Nimr. Alguns analistas veem-no como uma manobra destabilizadora numa altura em que há uma relativa melhoria nas relações entre o Irão e o Ocidente depois do acordo sobre o programa nuclear iraniano”, assinado em Genebra, a 14 de julho.

Revolução iraniana mudou tudo

O xeque Nimr al-Nimr foi condenado à morte juntamente com mais 46 pessoas (na esmagadora maioria sunitas), acusadas de participação em “organizações terroristas” e “conspirações criminosas”. “Al-Nimr não era um ativista pacífico como foi descrito por parte da imprensa internacional”, continua o analista. “Durante anos, muito antes da primavera árabe, advogou nos sermões que a dinastia Al-Saud era ilegítima, que os xiitas na Arábia Saudita deviam optar pela resistência armada contra o Governo e até o secessionismo. Os sauditas defendem que não o executaram por ser xiita, mas pelo seu papel de incentivador da violência armada.”

No Médio Oriente, os xiitas — que, basicamente, se distinguem dos sunitas por defenderem Ali na linha de sucessão do Profeta Maomé — são maioritários em apenas três países: Irão, Iraque e Bahrain. No resto do mundo islâmico o sunismo é a corrente dominante mas desde a Revolução Islâmica no Irão, em 1979, o peso demográfico das duas sensibilidades deixou de ter uma importância meramente estatística…

“Historicamente, a relação entre Arábia Saudita e Irão foi, de uma maneira geral, racional e cordial, especialmente quando ambos se centraram não em questões ideológicas mas nos seus interesses nacionais”, defende Manuel Castro e Almeida. “As relações pioraram drasticamente com a revolução iraniana. A política externa iraniana passou a assentar no objetivo de exportar a revolução para o mundo árabe” — o Irão não é um país árabe, mas antes de cultura persa —, “incentivar as populações xiitas a revoltarem-se contra os seus governos e mesmo a procurar derrubar outros governos árabes, incluindo os da Arábia Saudita, Kuwait, Iraque, Bahrain, etc.” Na perspetiva de Riade, que é tudo menos um exemplo de respeito pelos direitos humanos (veja-se a sentença de flagelação do blogger Raif Badawi), o clérigo Al-Nimr seria um peão da estratégia iraniana.

Rédea curta no Golfo

Outro exemplo da rédea curta da Arábia Saudita perante agitações xiitas aconteceu em 2011, no Bahrain, em plena primavera árabe. A maioria da população daquele reino do Golfo Pérsico (com o Irão em frente) é xiita, mas o poder reinante é sunita. Quando as manifestações começaram a reivindicar direitos políticos para os xiitas e a contestar a família real, a Arábia Saudita enviou tanques e tropas em socorro dos Al-Khalifa.

Sem surpresa, na segunda-feira, o Bahrain seguiu a posição saudita e cortou relações com o Irão. Emirados Árabes Unidos, Qatar, Sudão, Djibouti e Jordânia anunciaram corte ou revisão da relação com Teerão.

Em lados opostos

O braço de ferro entre sunitas e xiitas ocorre em países com guerras civis, ou seja, na Síria e no Iémen, onde sauditas e iranianos estão em lados opostos. Na Síria, o Irão apoia o regime liderado pelo alauita Bashar al-Assad (os alauitas são uma das seitas do xiismo) e as incursões do libanês Hezbollah, enquanto a Arábia Saudita financia grupos rebeldes (e tem uma relação dúbia com o Daesh). No Iémen, os iranianos apoiam os rebeldes houthis (que são zaiditas, outra seita xiita) e os sauditas apoiam o Presidente deposto pelos houthis.

“Não está nas intenções dos governos de Riade e de Teerão iniciar um confronto direto”, diz o articulista da Al-Arabiya. “Seria desastroso para ambos e para a região. Mas com tanta tensão e conflitos regionais com envolvimento iraniano e saudita, pode haver agravamento das guerras por procuração.”

No Irão, as eleições de fevereiro darão pistas sobre o futuro interno do país e sobre a relação com a Arábia Saudita

Na quinta-feira, órgãos de informação iranianos, citando um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, noticiaram que a embaixada do Irão na capital do Iémen tinha sido atingida deliberadamente pelos bombardeamentos da coligação liderada pelos sauditas. Horas depois, a partir de Sanaa, multiplicavam-se testemunhos de que fora apenas atingida a vizinhança da embaixada.

“A tensão pode baixar se houver acordo em relação à Síria e ao futuro de Assad. Mas isso parece distante. Vai depender da política interna iraniana e quem irá vencer a rivalidade entre as fações radicais e as mais moderadas, que se acentuou com o acordo nuclear. Os moderados querem ver o Irão comportar-se mais como um Estado e menos como uma ideologia imperialista.”

A 26 de fevereiro, as eleições para o Parlamento iraniano e para a Assembleia de Peritos — o órgão que escolhe o Líder Supremo (o ayatollah Ali Khamenei tem 76 anos) — poderão dar pistas sobre o futuro do Irão e, consequentemente, sobre a relação com a Arábia Saudita.

Artigo publicado no Expresso, a 9 de janeiro de 2016

Coreia do Norte diz que testou a bomba H, mas há dúvidas

A Coreia do Norte acaba de aceder ao “grupo dos Estados nucleares avançados”, garantem as autoridades de Pyongyang. A realização de um teste nuclear, esta quarta-feira, não está em causa. Mas especialistas duvidam que tenha envolvido uma bomba de hidrogénio, como os norte-coreanos reclamam

A Coreia do Norte tem uma capacidade única de acordar o mundo em sobressalto. Em virtude da diferença horária, quando grande parte do planeta está a despertar do sono, já o dia vai lançado no país. E quando um líder como Kim Jong-un decide fazer jus à sua megalomania, a abertura dos noticiários internacionais está garantida.

Foi o que aconteceu esta quarta-feira quando, às primeiras horas da manhã em Portugal, foi conhecida a realização, na Coreia do Norte, de um teste envolvendo um dispositivo nuclear de hidrogénio miniaturizado. Segundo a agência oficial KCNA, o ensaio nuclear — o quarto desde 2006 — aconteceu às 10 horas locais (uma e meia da madrugada em Lisboa).

“Esta é a medida de auto-defesa que temos de tomar para defender o nosso direito de viver em face das ameaças nucleares e chantagens por parte dos Estados Unidos e para garantirmos a segurança da península coreana”, justificou a apresentadora da televisão estatal norte-coreana. “Não vamos desistir de um programa nuclear, enquanto os EUA mantiverem a sua postura agressiva.”

Coreia do Sul pede mais sanções

O Conselho de Segurança da ONU reuniu-se de urgência para discutir este aparente significativo avanço das ambições militares norte-coreanas. Park Geun-hye, a Presidente da Coreia do Sul — com quem o Norte continua tecnicamente em guerra desde 1953, quando foi assinado um armistício mas não um tratado de paz após a Guerra da Coreia —, instou a comunidade internacional a adotar sanções mais duras contra a Coreia do Norte.

Pyongyang garante que a detonação da bomba de hidrogénio (bomba H) coloca o país “no grupo dos Estados nucleares avançados”. Mas, na região, especialistas questionam os componentes usados no ensaio, defendendo que a atividade sísmica detetada no sítio de testes de Punggye-ri (nordeste) — 5.1 na escala de Richter — sugere a utilização de um dispositivo menos potente.

Citado pelo jornal “The Japan Times”, o australiano Crispin Rovere, especialista em política nuclear e controlo de armas, afirmou: “A informação sísmica recebida indica que a explosão é significativamente mais baixa do que a que seria de esperar de um teste com a bomba H. O que me parece é que eles realizaram com sucesso um teste nuclear, mas não conseguiram completar a explosão de hidrogénio”.

Uma bomba de hidrogénio — também designada bomba termonuclear — tem um poder muito mais destruidor do que as bombas atómicas despejadas pelos EUA sobre Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945. Enquanto estas baseavam-se em reações de fissão de elementos radioativos (urânio e plutónio respetivamente), a bomba H baseia-se numa reação de fusão de isótopos do hidrogénio, libertando quase mil vezes mais energia.

A bomba H nunca foi usada em tempo de guerra. A única vez que foi detonada foi a 1 de novembro de 1952, no atol de Eniwetok (Ilhas Marshall). Nesse ensaio (operação Ivy), a bomba teve um poder de explosão de cerca de 10 milhões de toneladas de TNT, sensivelmente 700 vezes o poder da bomba de Hiroshima.

A Coreia do Norte é, oficialmente, uma potência nuclear desde que, a 9 de outubro de 2006, realizou o seu primeiro ensaio atómico. Nessa altura, já se havia retirado do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), de 1970. Fê-lo a 10 de janeiro de 2003, após os EUA terem acusado Pyongyang de possuírem um programa secreto de enriquecimento de urânio.

Do “clube do nuclear”, fazem mais sete países: os cinco Estados permanentes do Conselho de Segurança da ONU (EUA, Rússia, Reino Unido, França e China), a Índia e o Paquistão. A nona potência, não declarada, é Israel. Os três últimos não subscrevem o TNP.

O teste hoje anunciado por Pyongyang aconteceu dois dias antes do 32º aniversário de Kim Jong-un, no poder há quatro anos. Analistas referem que o líder norte-coreano busca um grande feito para dar visibilidade ao sétimo congresso do Partido dos Trabalhadores da Coreia, marcado para maio — o partido no poder já não reune em congresso há 36 anos.

“Não creio que tenha sido um teste com uma bomba H. A explosão teria de ser maior”, disse Choi Kang, vice-presidente do Instituto Asan de Estudos Políticos, sedeado em Seul (Coreia do Sul), citado pelo diário “The Japan Times”. “Eu acho que eles estão a disfarçar o teste realizado, porque recentemente Kim Jong-un falou do assunto.”

No mês passado, durante uma inspeção militar, o líder norte-coreano sugeriu que o país já tinha desenvolvido a bomba H. Fora de portas — então, como agora —, o anúncio foi acolhido com ceticismo.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 6 de janeiro de 2016. Pode ser consultado aqui