“Guerra fria” aquece no Médio Oriente

Arábia Saudita e Irão protagonizam, há mais de 30 anos, uma espécie de “guerra fria” na região, exibindo toda a sua histórica rivalidade através de guerras por procuração. A execução de um clérigo xiita na Arábia Saudita azedou a já de si tensa relação entre os dois gigantes. Riade cortou relações e já arrastou consigo o Bahrain

A fasquia da conflitualidade no Médio Oriente subiu consideravelmente após, no domingo, a Arábia Saudita ter cortado relações diplomáticas com o Irão. Os dois países personificam as grandes rivalidades políticas, religiosas e culturais que caracterizam — e dividem — a região: a Arábia Saudita (31,5 milhões de habitantes) é uma monarquia árabe sunita, que abriga os principais lugares santos do Islão (Meca e Medina); o Irão (79,1 milhões) é uma república islâmica xiita de cultura persa.

A mais recente crise entre os dois gigantes geopolíticos estalou na sequência da execução, na Arábia Saudita, de um importante clérigo xiita, o xeque Nimr Baqir al-Nimr que, em 2011, no contexto da Primavera Árabe, apelou à realização de eleições no país e apoiou os protestos contra a Casa de Saud (a monarquia reinante).

O xeque pertencia à minoria xiita no país (estima-se que entre 10 e 15% da população, concentrados nos oásis de Al-Ahsa e Qatif, na Província Oriental, onde se encontram as zonas agrícolas mais produtivas e as maiores jazidas de petróleo do reino). Os xiitas dizem-se marginalizados e perseguidos por Riade.

Juntamente com Nimr, foram executados três ativistas xiitas (incluindo um sobrinho) e 43 sunitas condenados por envolvimento em ataques terroristas no reino, em 2003 e 2004, atribuídos à Al-Qaeda — fundada pelo saudita Osama bin Laden.

Com estas execuções — realizadas através de pelotões de fuzilamento e decapitações —, Riade mostra mão firme em matéria de segurança interna e aproveita para calar vozes críticas e reivindicativas de direitos e liberdades para os xiitas, que partilham com o inimigo iraniano a mesma interpretação do Islão.

Conhecida a morte do xeque Nimr, no sábado, violentos protestos visaram a embaixada saudita em Teerão (que foi incendiada) e o consulado em Mashhad (nordeste do Irão), levando à detenção de dezenas de pessoas.

No Twitter, o Presidente do Irão, Hassan Rouhani, criticou os distúrbios junto àquelas representações diplomáticas, levados a cabo por “indivíduos extremistas”, escreveu. Esta posição não foi suficiente para impedir a retaliação saudita que, no domingo, anunciou o corte de relações diplomáticas com o Irão.

O agravamento da relação Riade-Teerão é um cenário que não agrada a ninguém, sobretudo nos Estados Unidos. Os sauditas têm sido fortes aliados e essa relação tem sobrevivido intacta ao facto de serem sauditas 15 dos 19 terroristas do 11 de Setembro serem sauditas e também ao facto dos sauditas serem, a seguir aos afegãos, a nacionalidade mais representada entre os 779 detidos em Guantánamo, desde 2002.

Quanto aos iranianos — inscritos pelo Presidente norte-americano George W. Bush no “eixo do mal” que apoia o terrorismo internacional —, estão em rota de aproximação com o Ocidente, após o histórico acordo de 14 de julho sobre o seu programa nuclear. Irão e EUA continuam, oficialmente, de relações cortadas, mas o acordo de Genebra abriu perspetivas de uma maior colaboração do Irão em várias crises na região.

Guerras por procuração

Em sentido figurado, quando a relação entre Arábia Saudita e Irão apanha um resfriado, é toda a região que se constipa. À semelhança da Guerra Fria que opôs EUA e URSS durante mais de 40 anos, Riade e Teerão travam, hoje, no Médio Oriente várias guerras por procuração, acicatando divisões sectárias para expandir a sua influência — o que acontece, com maior intensidade na Síria e no Iémen.

Na Síria, os iranianos são, juntamente com a Rússia, o mais sólido apoio internacional do Presidente Bashar al-Assad, enquanto os sauditas apoiam e financiam grupos rebeldes.

No Iémen, os papéis invertem-se: os sauditas têm em curso uma intervenção militar em defesa do Presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi e os iranianos apoiam a milícia huthi (xiita) que tomou o poder pelas armas.

O potencial de conflito não se resume, porém, a esses dois teatros. Desde a Revolução Islâmica de 1979 que um dos pilares do regime dos ayatollahs tem sido a exportação desse modelo político-religioso que, hoje, passa pela preservação do chamado ‘arco xiita’: o Iraque (onde a derrota de Saddam Hussein catapultou a maioria xiita para o poder), a Síria (os alauitas de Bashar al-Assad são xiitas) e o Hezbollah (o movimento xiita que, para além de ser uma milícia armada, também está representado no Parlamento e no Governo do Líbano).

A estratégia internacionalista consta igualmente da agenda da Arábia Saudita, empenhada em divulgar a doutrina waabita, para o que afeta quantias milionárias de petrodólares, seja para apoiar fações políticas ou armadas seja para financiar mesquitas um pouco por todo o mundo.

Pesos pesados do petróleo

Esta disputa geopolítica coloca frente a frente os dois maiores e mais ricos países do Médio Oriente, situados nas margens do Golfo — Pérsico para os iranianos, Arábico para os sauditas —, por onde é transportado um quinto do petróleo consumido em todo o mundo. (Esta segunda-feira, os preços do petróleo e do ouro aumentaram.)

Na margem ocidental do Golfo, os sauditas controlam a Península Arábica com rédea curta, exercendo uma influência quase absoluta sobre as outras petromonarquias (Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Bahrain, Qatar e Omã).

Quando a Primavera Árabe atingiu o Bahrain — onde o regime é sunita e a população maioritariamente xiita —, tropas sauditas cruzaram a fronteira em socorro dos Al-Khalifa. Nos países onde os xiitas são minoritários, como na Arábia Saudita, Riade vê-os como uma ‘quinta coluna’ ao serviço de Teerão.

Precisamente o Bahrain, esta segunda-feira, seguiu o exemplo da Arábia Saudita e cortou relações diplomáticas com o Irão. Os Emirados e o Sudão também anunciaram uma revisão da sua relação diplomática com o Irão.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 4 de janeiro de 2016. Pode ser consultado aqui