Fantasia num filme de terror

Entra em vigor no próximo sábado, mas deixa de fora o Daesh e outros grupos jiadistas. A oposição teme que o cessar-fogo negociado por EUA e Rússia beneficie, acima de tudo, Bashar al-Assad

Estados Unidos e Rússia anunciaram uma trégua para a guerra na Síria, prevista para entrar em vigor à meia-noite de sábado (horário de Damasco, menos duas horas em Lisboa). As partes em confronto têm até ao meio dia de sexta-feira para comunicar a sua adesão ao cessar-fogo.

Esta seria uma boa notícia — sobre um conflito que, em março, dobrará o seu quinto ano de duração, onde já perderam a vida mais de 250 mil pessoas e que se tornou a maior fonte de refugiados da atualidade — não fossem as dúvidas que se acumulam sobre a viabilidade da trégua.

Anunciada na segunda-feira, através de um comunicado conjunto de Rússia e Estados Unidos, que, neste conflito, estão em lados opostos da barricada — Moscovo apoia Bashar al-Assad, juntamente com o Irão e o libanês Hezbollah, ambos xiitas; Washington está do lado da oposição, tal como Arábia Saudita e Turquia, ambos sunitas —, a trégua prevê o fim da troca de fogo entre as forças leais ao Presidente Assad e grupos da oposição.

O acordo deixa, porém, de fora grandes protagonistas dos combates — o autodenominado Estado Islâmico (Daesh), a Frente al-Nusra (associada à Al-Qaeda) e outras organizações igualmente rotuladas como “terroristas” pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.

“Para nós, a Al-Nusra é uma questão problemática, porque esse grupo está presente não só em Idlib, como também em Alepo, em Damasco e no sul”, reagiu Khaled Khoja, atual presidente da Coligação Nacional de Forças Revolucionárias e de Oposição da Síria. “O que é crítico aqui é que civis ou o Exército Livre da Síria [rebeldes moderados] possam ser atingidos a pretexto de ser a Al-Nusra o alvo dos bombardeamentos.”

Esta terça-feira, o Governo sírio anunciou que aceita a trégua e que vai coordenar com a Rússia a decisão de quais os grupos ou áreas abrangidos pela “cessação de hostilidades”. Para a oposição ao regime, uma possível paragem nos combates dará cobertura ao ditador Assad para continuar a investir sobre áreas rebeldes.

Se o Presidente tem recuperado algum controlo territorial, muito se deve ao apoio da aviação russa que, desde setembro, tem bombardeado em defesa do regime de Damasco. “O apoio russo e iraniano foi essencial aos avanços do nosso exército”, afirmou Bashar al-Assad, ao jornal espanhol “El País”, numa entrevista publicada no domingo. “Nós precisamos dessa ajuda por uma simples razão: porque mais de 80 países apoiaram os terroristas [como Assad se refere à oposição] de várias formas, alguns diretamente com dinheiro, com apoio logístico, com armamento, com recrutamento [de combatentes].”

Do lado da oposição, Bashar al-Zoubi, responsável político do Exército Yarmouk, uma das fações que integram o Exército Livre da Síria (rebelde), não tem grande confiança nesta trégua. “A Rússia e o regime irão visar áreas dos grupos revolucionários a pretexto de ali haver membros da Frente al-Nusra. Nós sabemos como essas áreas são mistas. Se isso acontecer, esta trégua vai colapsar.”

Esta é a primeira tentativa para trazer uma pausa ao conflito desde que, em 2012, um cessar-fogo mediado pelas Nações Unidas durou escassas horas. Mas olhando para a situação no terreno, e a ausência de qualquer dimensão política, mais parece ser este acordo uma resposta às situações de emergência humanitária do que um contributo sério para tirar os sírios do pesadelo da guerra. Um pesadelo que só Assad parece não ver: esta segunda-feira, ele marcou eleições legislativas para 13 de abril.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 23 de fevereiro de 2016. Pode ser consultado aqui

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