Um Ramadão sangrento

O mês islâmico dedicado ao jejum foi marcado por uma sequência nunca vista de atentados

Para qualquer muçulmano, o Ramadão é uma época de recolhimento, jejum e partilha, seja o crente sunita, xiita ou professe qualquer outra interpretação do Islão. Este ano, o mês sagrado muçulmano — de 5 de junho a 5 de julho — transformou-se num banho de sangue em vários pontos do globo. Algo difícil de perceber quando os atacantes invocam Alá para justificar os atos e as vítimas são, muitas vezes, irmãos de fé.

“Há uma frase corânica que diz: ‘Fizeste tu bem a um homem, salvaste a humanidade. Fizeste tu mal a um inocente, fizeste mal a toda a humanidade’. Este princípio devia, à partida, inibir qualquer atentado”, diz ao “Expresso” Paulo Mendes Pinto, do Instituto Al-Muhaidib de Estudos Islâmicos (Universidade Lusófona). “O Ramadão é uma cerimónia longa em que os muçulmanos mais se sentem irmanados uns com os outros. Se há época em que faz sentido falar de comunidade islâmica no seu todo é essa. Fazer um atentado no Ramadão é a maior negação do sentido de fraternidade islâmica.”

Correspondendo a um apelo do líder do Daesh, em finais de maio, visando a época do Ramadão, simpatizantes jiadistas — sob ordem direta de Abu Bakr al-Baghdadi ou inspirados por ele — realizaram atentados tão diferentes quanto o ataque à bomba de 3 de julho numa área comercial de Bagdade (292 mortos) ou o massacre de 12 de junho numa discoteca de Orlando, EUA (49 mortos).

No primeiro caso — o pior atentado no Iraque pós-Saddam —, os alvos foram muçulmanos em grande azáfama com as compras para o ‘Id al-Fitr, a festa do fim do Ramadão. O segundo, levado a cabo por um atirador isolado, teve como alvo uma discoteca gay.

A lei do Daesh

À lista de ataques em pleno Ramadão somam-se 43 mortos em quatro ataques à bomba contra um checkpoint em Mukalla (Iémen, 27 de junho), ao fim da tarde quando os militares tomavam a refeição que quebra o jejum (“iftar”); 44 mortos num triplo ataque suicida no aeroporto de Istambul (Turquia, 28 de junho); e 23 mortos num restaurante em Daca (Bangladesh, 2 de julho). Ontem, após o Ramadão, suicidas e atiradores mataram 35 pessoas num santuário xiita da cidade iraquiana de Balad, suspeitando-se do Daesh.

“Se olharmos para esta sequência louca de atentados, vemos que há um grupo que se reivindica detentor do Islão ortodoxo. Isto acontece regularmente, no Islão e noutras religiões, cristianismo, hinduísmo, etc. A certa altura, há um grupo que diz: ‘O que nós dizemos e fazemos é o que está certo’”, continua Paulo Mendes Pinto. “Eles têm dois alvos. O principal é externo, não especificamente contra o Ocidente, mas contra o modo de vida ocidental.” Daí os ataques a bares, discotecas, estádios, espaços públicos, aeroportos ou associações como aquela em Bagdade onde, a 13 de maio, 16 adeptos iraquianos do Real Madrid foram assassinados por homens armados.

“O outro alvo é um inimigo interno, aqueles que se dizem muçulmanos mas que o Daesh diz não serem verdadeiros muçulmanos.” O recente atentado no bairro comercial de Karrada, em Bagdade, enquadra-se nesta lógica, já que a área visada é maioritariamente xiita (o Daesh é sunita). “Eles acham que a maioria dos muçulmanos precisa de se reislamizar segundo aquilo que o Daesh diz estar certo. Para eles, é legítimo o ataque a muçulmanos, porque as vítimas não são muçulmanos corretos. Se fossem, estariam com o Daesh.”

Ataque no coração do Islão

Esta semana, aquele que foi dos atentados menos sangrentos do Ramadão foi, porventura, o mais relevante politicamente. Na segunda-feira, três ataques suicidas atingiram outras tantas cidades da Arábia Saudita, provocando quatro mortos, todos agentes de segurança: um em Jeddah, perto do consulado dos EUA, outro junto a uma mesquita xiita em Qatif (no leste, onde se concentra a minoria xiita saudita) e o terceiro na cidade santa de Medina, próximo da mesquita onde jaz o profeta.

“Os recentes ataques na Arábia Saudita, Bangladesh, Iraque e Turquia podiam ser interpretados como um sinal de força do grupo. No entanto, por muitos estragos, vítimas e sofrimento que causem, na minha opinião, são mais um sinal de fraqueza”, comenta ao Expresso Manuel Almeida, doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics. “A organização central do Daesh está sob uma pressão sem precedentes a nível militar e financeiro no Iraque, Síria e Líbia. Figuras importantes foram eliminadas nos últimos meses e esforços para evitar que aspirantes a jiadistas se juntem ao grupo têm surtido efeito. O projeto de um califado que domine, pelo menos, grande parte de Iraque e Síria está a revelar-se cada vez mais irrealizável.”

Pressão passa pela Síria

Após a vitória em Fallujah, as forças governamentais iraquianas apoiadas pela coligação internacional já planeiam o assalto a Mossul (norte), enquanto na Síria forças maioritariamente curdas têm infligido derrotas importantes ao Daesh. “Se a pressão se mantiver — ou até aumentar em resultado de um acordo entre americanos e russos sobre a Síria e Bashar Al-Assad —, iremos ver o Daesh comportar-se mais como um grupo terrorista ‘tradicional’, apostando mais em ações de guerrilha e atentados do que no controlo efetivo de cidades e grandes áreas”, defende Manuel Almeida. “A tendência é para um aumento do número de ataques, muitos levados a cabo por indivíduos com laços ténues ao grupo, com pouco ou nenhum treino e que apenas partilham a ideologia. Os ataques quase simultâneos, esta semana, em três cidades sauditas sugerem-no.”

(Foto: “Fanous”, a lanterna egípcia tradicionalmente usada no Ramadão IBRAHIM.ID / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso, a 9 de julho de 2016

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