Dez razões para compreender o problema do terrorismo no Paquistão

Nos últimos dez anos, no Paquistão, morreram em média quase 6000 pessoas por ano em atentados terroristas. Da geografia aos interesses geopolíticos, várias razões contribuem para tanta violência na “terra dos puros”

O país que viu nascer a Prémio Nobel da Paz Malala Yousafzai é um dos mais vulneráveis ao terrorismo. Segundo o Portal de Terrorismo da Ásia do Sul, em 2007, 3598 pessoas foram mortas em atentados na República Islâmica do Paquistão. Esse número aumentou dramaticamente para 11.704 mortos em 2009. No ano passado, foram mortas 3682 pessoas e este ano, até 23 de outubro, atentados em solo paquistanês já fizeram 1519 vítimas mortais. O que está na origem de tamanha carnificina?

1. O PAÍS TEM UMA GEOGRAFIA ACIDENTADA

Atravessado pelas duas maiores cadeias montanhosas do mundo — a cordilheira dos Himalaias e o Hindu Kush —, o Paquistão abriga 108 picos acima dos 7000 metros e cerca de de outros tantos acima dos 6000 metros. O famoso K-2, o cume mais alto a seguir ao Evereste, localiza-se neste país. Com uma alta taxa de mortalidade entre os alpinistas que o tentam escalar — uma em cada cinco pessoas morre pelo caminho —, o K-2 é referido por muitos aventureiros como “uma entidade de humor oscilante”. A 20 de julho de 2007, João Garcia tornou-se o primeiro português a atingir o cume do K-2 sem recurso a oxigénio artificial. O relevo acidentado do Paquistão não sentencia o país a uma realidade violenta. Mas, como se lê no “Manual de Teoria e Prática de Guerra de Contra-insurreição” (1964), do tenente-coronel francês David Galula (1919–1967): “A geografia pode enfraquecer o mais forte dos regimes políticos ou fortalecer o mais fraco deles”.

2. A SOCIEDADE PAQUISTANESA É PROFUNDAMENTE TRIBAL

Dentro do Paquistão, há uma espécie de “Estado dentro do Estado” onde o poder das autoridades centrais é apenas nominal. O Território Federal das Áreas Tribais (FATA em inglês) situa-se no noroeste do país e faz fronteira com o conturbado o Afeganistão.

A região, que corresponde sensivelmente a um quarto do território português, não está integrada em qualquer província e subdivide-se em áreas correspondentes a tribos, que gozam de um estatuto semiautónomo e exercem a autoridade com base em códigos tradicionais. Zona montanhosa e subdesenvolvida, ali vivem mais de três milhões de pessoas, na sua esmagadora maioria pashtune.

Esta é a segunda etnia do Paquistão — e a primeira do Afeganistão — e vive, ainda hoje, sobretudo nas áreas rurais, segundo um código não escrito — o “pashtunwali” —, com origens anteriores à era cristã. O “pashtunwali” é, juntamente com o fundamentalismo islâmico, um dos pilares do movimento dos talibãs.

3. O PAÍS ESTÁ MUITO EXPOSTO À GUERRA NO AFEGANISTÃO

A natureza porosa da fronteira afgano-paquistanesa e a presença de mesmo grupo étnico (pashtunes) dos dois lados da fronteira tornam o Paquistão vulnerável a tudo o que se passa no país vizinho. Após a invasão norte-americana do Afeganistão, na sequência do 11 de Setembro de 2001, foi na chamada cintura tribal paquistanesa que a Al-Qaeda e os talibãs afegãos encontraram refúgio e organizaram a sua resistência contra a presença militar estrangeira no Afeganistão.

Em “O Novo Estado Islâmico — Como Nasceu o País do Terrorismo” (2014), considerado o primeiro e mais completo livro sobre o fenómeno, o jornalista britânico Patrick Cockburn escreve: “As forças armadas do Paquistão tinham desempenhado um papel central desde inícios dos anos 90 impulsionando os talibãs para o poder no Afeganistão onde eles davam guarida a Bin Laden e à Al-Qaeda.

Após um breve hiato durante e a seguir ao 11 de Setembro, o Paquistão retomou o seu apoio aos talibãs afegãos. Referindo-se ao papel central do Paquistão no apoio aos talibãs, o falecido Richard C. Holbrooke, o representante especial dos EUA para o Afeganistão e Paquistão, disse: ‘Podemos estar a lutar contra o inimigo errado no país errado’”.

O autor recorda também que quando os talibãs começaram a desintegrar-se sob os bombardeamentos norte-americanos, em 2001, ainda antes da rendição “centenas de membros do ISI [os serviços secretos paquistaneses], formadores militares e conselheiros foram precipitadamente transferidos por via aérea” desde o norte do Afeganistão. “Apesar da mais clara das provas de que o ISI patrocinava os talibãs e os jihadistas em geral, Washington recusou-se a confrontar o Paquistão.” Mullah Omar e Mullah Akhtar Muhammad Mansour, que lideraram os talibãs desde o 11 de Setembro, morreram ambos em território paquistanês. Mas esta cumplicidade é anterior ao histórico atentado. Quando os talibãs tomaram o poder em Cabul, em 1996, apenas três países reconheceram oficialmente o novo regime: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e… Paquistão.

4. O PAQUISTÃO É, ELE PRÓPRIO, UM VIVEIRO DE TERRORISTAS

Quando os EUA anunciaram a “guerra contra o terrorismo”, após o 11 de Setembro, o Paquistão surgiu como um ator-chave dessa estratégia. O tempo revelaria que o país é também parte do problema. Segundo o Departamento de Defesa norte-americano, até 15 de maio de 2006, passaram pelo centro de detenção de Guantánamo — aberto em 2002 e destinado a suspeitos de terrorismo — 60 cidadãos paquistaneses.

Nesse campo, os paquistaneses foram a quarta nacionalidade mais numerosa, a seguir a afegãos, sauditas e iemenitas. Entre os paquistaneses detidos, está ainda Khalid Sheikh Mohammed, considerado “o principal arquiteto do 11 de Setembro” no Relatório Final da Comissão ao atentado.

Nascido na província do Baluquistão, foi detido a 1 de março de 2003 em Rawalpindi, numa operação conjunta da CIA e do ISI. No já citado livro de Patrick Cockburn, este defende que o falhanço da “guerra ao terrorismo” e o ressurgimento da Al-Qaeda tornaram-se previsíveis a partir do momento em que Washington delineou uma estratégia sem confrontar diretamente os aliados Arábia Saudita e Paquistão, “sem o envolvimento dos quais o 11 de Setembro provavelmente não teria acontecido”.

5. A RELIGIÃO DOMINA A DOUTRINA DE SEGURANÇA NACIONAL PAQUISTANESA

O ano de 1979 foi dos mais importantes — e tumultuosos — do século XX e no Paquistão não foi exceção. Em fevereiro concretizou-se a Revolução Islâmica no Irão, em março foi assinado o tratado de paz entre o Egito e Israel, em agosto estalou o choque petrolífero, em novembro islamitas armados ocuparam a Grande Mesquita de Meca e em dezembro a União Soviética invadiu o Afeganistão.

De permeio, em abril, no Paquistão, Zulfiqar Ali Bhutto (pai de Benazir) foi executado e o país começou um novo rumo. “Um primeiro-ministro eleito, Zulfiqar Ali Bhutto, foi executado por um ditador militar, [o General] Zia ul-Haq, estabelecendo a base para uma governação do exército de 11 anos que, por um lado, desencadeou ambições políticas e estratégicas arrogantes por parte do exército e, por outro, pôs em movimento o processo de islamização do país”, defende o antigo embaixador paquistanês Touqir Hussain, no artigo “Paquistão pós-1979: O que correu mal?”, publicado pelo The Middle East Institute, de Washington. Estes dois eixos de ação “fundiram-se como parte de uma doutrina de segurança nacional dominada pela religião que transformou a política regional do Paquistão numa jihad”.

6. POLÍTICAS INTERNAS DE ISLAMIZAÇÃO ALIMENTARAM O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO

Ao abrigo das políticas de islamização iniciadas na década de 80, muitos “mujahidin” foram encorajados por Islamabad (em aliança com os EUA) a combater a URSS no Afeganistão. Após a retirada soviética, em 1989, a maioria deles nunca seria desarmada, dando origem a grupos que, anos depois, aterrorizariam países vizinhos e tornar-se-iam uma ameaça à segurança nacional do próprio Paquistão.

São exemplo o Tehrik-i-Taliban Pakistan (TTP, talibãs paquistaneses) e o Lashkar-e-Taiba, que reivindicou os ataques de Bombaim de 2008 (166 mortos). Um telegrama de 13 de novembro de 2008 do consulado dos EUA de Lahore para o Departamento de Estado, divulgado pelo caso Wikileaks, alertava para a existência de “madrassas” paquistanesas (escolas, geralmente anexas ou no interior de mesquitas) financiadas pela Arábia Saudita e onde era fomentado o “radicalismo religioso” em regiões “anteriormente moderadas”.

Os diplomatas norte-americanos reportaram ainda o envio de crianças oriundas de famílias pobres para “madrassas” isoladas para depois serem recrutadas para “operações de martírio”. Em janeiro de 2016, o senador norte-americano Chris Murphy (democrata) denunciou a existência de 24 mil “madrassas” paquistanesas financiadas pela Arábia Saudita — país cuja ideologia oficial é o waabismo, uma interpretação integrista do Islão.

7. A ALIANÇA COM OS EUA NA “GUERRA AO TERRORISMO” TORNA O PAÍS ALVO DO EXTREMISMO

Ao aderir à coligação anti-terrorista liderada pelos EUA, o Paquistão colocou-se na mira do extremismo islâmico que o via como um obstáculo à “jihad” contra as “forças de ocupação” do Afeganistão. Como contributo para essa campanha, Islamabad desencadeou uma guerra dentro de portas, na zona do Waziristão (noroeste), contra grupos armados — de talibãs e membros da Al-Qaeda a elementos do crime organizado.

Este conflito interno rapidamente escalou para um cenário de resistência armada, colocando instituições do Estado, forças de segurança e a população civil na mira. Segundo o Portal de Terrorismo da Ásia do Sul, só em 2009 (o ano mais mortífero no pós-11 de Setembro) morreram 11.704 pessoas em atentados terroristas no Paquistão. Mas o ódio às autoridades de Islamabad não é exclusivo dos jihadistas.

Entre a população civil, a impopularidade do Governo cresce de cada vez que morrem civis em bombardeamentos dos EUA com aparelhos não tripulados (drones). Desde 2004 que a CIA tem em curso uma operação que visa, sobretudo, as áreas tribais do noroeste, em especial o vale do Swat, junto ao Afeganistão. Segundo a New America Foundation, até 22 de fevereiro de 2016, os drones já mataram 3053 pessoas no Paquistão. Dos 402 ataques registados, 48 foram ordenados por George W. Bush e 354 por Barack Obama. As mortes de civis e os milhões de deslocados internos em fuga aos bombardeamentos disseminam o desejo de vingança entre os jovens, que assim se tornam cérebros fáceis de manipular por grupos como os talibãs.

8. FORÇAS DE SEGURANÇA E SERVIÇOS DE INFORMAÇÃO PAQUISTANESES NÃO SÃO FIÁVEIS

A captura de Osama bin Laden, a 2 de maio de 2011, em Abbottabad, colocou o Paquistão numa situação embaraçosa. Oficialmente, o país era aliado dos EUA na “guerra ao terrorismo”, mas na prática mais parecia ser cúmplice dos maiores terroristas. Khalid Sheikh Mohammed, o arquiteto do 11 de Setembro, tinha sido capturado em território paquistanês (2003) e agora “o homem mais procurado do mundo”, que vivia numa cidade onde estavam sedeados três regimentos do Exército paquistanês, o sexto mais poderoso do mundo.

Bin Laden vivia numa mansão construída em 2005, protegida por muros altos e situada a 1300 metros da Academia Militar de Kakul. Nos mapas, áreas circundantes à casa surgiam assinaladas como “áreas de acesso restrito”. O Wikileaks revelou que, em dezembro de 2009, um general do Tadjiquistão com responsabilidades na área do contraterrorismo alertara para o facto dos esforços para apanhar Bin Laden estarem a ser frustrados paquistaneses corruptos.

“No Paquistão, Osama bin Laden não é um homem invisível e muitos conhecem o seu esconderijo no Waziristão Norte”, disse Abdullo Sadulloevich Nazarov, citado num telex diplomático norte-americano. “Mas sempre que forças de segurança tentam efetuar um ataque surpresa, o inimigo recebe um alerta por parte de fontes das forças de segurança.” O facto de Washington não ter informado o Paquistão acerca da operação da CIA no interior do país foi a maior prova de desconfiança em relação a Islamabad.

9. O PAQUISTÃO É DOS PAÍSES MAIS SUBDESENVOLVIDOS E CORRUPTOS DO MUNDO

Com mais de 185 milhões de habitantes, o país sofre de uma situação generalizada de subdesenvolvimento, ocupando um modesto 147º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas de 2015 (em 188 países). A esperança média de vida à nascença é de 66,2 anos e a média de escolaridade não vai além dos 4,7 anos. Mais de 45% da população vive em situação de “pobreza multidimensional” (privada de escolaridade, sofrendo de subnutrição ou sem acesso a água potável) ao nível da maternidade há uma média de 170 mortes por cada 100.000 nados vivos. No ranking de 2015 da organização Transparência Internacional sobre a corrupção no mundo, o Paquistão surge na 117ª posição (num total de 168 países). Paralelmente, o Paquistão é dos cinco países que mais ajuda recebe, anualmente, dos Estados Unidos: em 2014, recebeu 933 milhões de dólares (819 milhões de euros) de ajuda económica e mais 280 milhões de dólares (246 milhões de euros) para fins militares.

10. O CONFLITO NA CAXEMIRA CONTRIBUI PARA UM ESTADO DE GUERRA PERMANENTE

O Paquistão, enquanto país independente, nasceu em 1947, fruto da partição da Índia Britânica. Dessa divisão resultou também a Índia, de maioria hindu — e uma ferida aberta entre os dois novos países: o território da Caxemira, que ambos disputam. Se é verdade que o Paquistão está muito exposto a tudo o que acontece no Afeganistão, é a rivalidade com a Índia que mais preocupa a república islâmica.

Durante o século XX, os dois países travaram três guerras abertas (1947, 1965, 1999) que, direta ou indiretamente, tiveram na origem a disputa pela Caxemira. Esta rivalidade contribui para um permanente estado de alerta e para o facto do Paquistão ter o sexto maior exército do mundo, com cerca de 650 mil efetivos — ainda assim muito longe do contingente da Índia, que tem mais de 1.300.000 militares. Em 1998, o Paquistão tornou-se o primeiro país (e até agora único) a entrar no estrito clube das potências nucleares, elevando o nível de perigosidade de um eventual novo conflito com a Índia, também ela uma potência nuclear.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 9 de agosto de 2016 e republicado no Expresso Online, a 25 de outubro de 2016. Pode ser consultado aqui

Os jogos da diplomacia

Em tempo de olimpíadas não esqueçamos que o desporto é uma eficaz arma política

Na reta final da sua histórica visita a Cuba, Barack Obama passou pelo Estadio Latinoamericano, em Havana, para um aparente momento de descompressão. Sorridente, sem gravata, de óculos de sol e recetivo à “hola mexicana” que corria as bancadas, o Presidente dos EUA — sentado entre a mulher Michelle e o homólogo cubano, Raúl Castro — assistiu a um jogo de basebol entre a seleção cubana e os Tampa Bay Rays, da Florida.

A sua presença descontraída no estádio, em amena cavaqueira com Raúl Castro, era a prova, para os 55 mil cubanos que enchiam as bancadas e para os milhões que seguiam pela televisão, que a tensa relação de décadas entre EUA e Cuba fazia parte do passado. Não parecendo, aquela ida ao basebol era também um ato político.

“O desporto é uma linguagem global e um fenómeno social compreendido por todas as culturas, raças, etnias, religiões e nações. É a força motriz por trás da globalização na medida em que aumenta a interação e a comunicação entre povos que podem não ter qualquer interação ou comunicação entre si”, explica ao Expresso Omar Salha, perito em Diplomacia do Desporto da Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS), da Universidade de Londres.

“A vantagem de ser parte integrante da cultura popular global torna o desporto mais eficaz, em termos de ligação e comunicação entre as massas, do que a diplomacia tradicional centrada nos Estados. Isso é evidente quando vemos muitos países a adotar o desporto como plataforma e porta-voz de uma Diplomacia Pública e de uma marca nacional, através da organização de Jogos Olímpicos ou do Campeonato do Mundo da FIFA.”

Diplomacia do basebol

Ao contrário da maioria dos países latino-americanos, onde o futebol é rei, nos EUA e em Cuba, o desporto por excelência é o basebol. Desde a revolução cubana de 1959 e até 22 de março passado, cubanos e norte-americanos tinham-se defrontado apenas por uma vez — em 1999, mandava Fidel Castro em Cuba e Bill Clinton nos EUA. A 28 de março desse ano, os Baltimore Orioles tornaram-se a primeira equipa norte-americana a competir na Cuba comunista. Cinco semanas depois, os Baltimore acolheriam os “peloteros” cubanos.

Ao comparecer no estádio de Havana, Obama celebrou uma paixão partilhada pelos dois povos e reafirmou semelhanças em relação ao antigo inimigo. Os Tampa Bay Rays ganhariam por 4-1. “O resultado final foi favorável aos Rays, mas hoje todos ganhámos no Estadio Latinoamericano”, escreveu a equipa norte-americana no Twitter.

Documentos do Departamento de Estado norte-americano com data de 1975, entretanto desclassificados e divulgados pelo Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington, revelam que, em Washington, havia quem defendesse o recurso ao basebol para “ajudar a quebrar o gelo” com Cuba. Mas, para os EUA, a década de 70 não seria frutuosa, no que respeita ao dossiê Cuba.

Diplomacia do pingue-pongue 

Inversamente, os anos 70 seriam marcados pelo desanuviamento entre EUA e China, com origem na diplomacia do pingue-pongue. Em abril de 1971, a convite da China, um grupo de mesatenistas norte-americanos viajou até Pequim. Fotografados junto à Grande Muralha, foram capa da “Time”, com o título “China: um jogo totalmente novo”. Esta digressão abriu caminho à visita à China do Presidente Richard Nixon, em fevereiro de 1972, um dos marcos da Guerra Fria.

“O uso de ‘soft power’ no desporto por parte das administrações norte-americanas evoluiu significativamente com o programa de Diplomacia do Desporto, do Gabinete de Assuntos Educativos e Culturais [do Departamento de Estado]”, comenta Omar Salha. “Com este programa — treinando jovens, comprometendo-os com uma grande variedade de desportos, como natação, basebol, basquetebol e “soccer” (futebol), e oferecendo bolsas a instituições que partilhem a mesma filosofia e ética —, os EUA criam uma imagem favorável, aumentam a sua popularidade em termos desportivos e, mais importante, tentam promover objetivos de política externa através de práticas educativas, culturais e desportivas.”

Diplomacia do basquetebol

Nos últimos anos, sem cobertura oficial, o excêntrico basquetebolista norte-americano Dennis Rodman empenhou-se numa diplomacia do basquete para limar arestas entre EUA e Coreia do Norte. Os dois países nunca tiveram relações diplomáticas desde a divisão da península coreana, em 1953, sendo os interesses norte-americanos em Pyongyang representados pela Suécia.

“Não sou Presidente, nem político, nem embaixador. Sou apenas um atleta, que quer lá ir e fazer alguma coisa pelo mundo. Só isso.” Assim falava Rodman em janeiro de 2014 à partida para uma visita à Coreia do Norte, onde esteve pelo menos seis vezes. Na mala, a antiga estrela dos Chicago Bulls levava planos para organizar um “jogo de boa vontade” entre antigas glórias da NBA e atletas norte-coreanos.

A cruzada de Rodman, que não produziu resultados políticos, levantou um coro de críticas segundo as quais estaria a contribuir para a legitimação de um regime repressivo. “É importante perceber a legitimidade política e económica que os países procuram quando se tornam membros de organizações desportivas”, refere Omar Salha. “Há mais países representados e reconhecidos no Comité Olímpico Internacional e na FIFA do que na ONU. Apesar do atrativo que há em unificar e unir uma nação sob os auspícios de um espetáculo desportivo, o risco de a dividir é tão grande como o de a unir. Ou, recordando as palavras de George Orwell: ‘O desporto é a guerra sem os tiros’.”

CRÍQUETE APROXIMA OS RIVAIS
ÍNDIA E PAQUISTÃO

O aproveitamento político do desporto não é uma estratégia exclusiva dos EUA. Entre Índia e Paquistão — potências nucleares que disputam o controlo da região de Caxemira —, o críquete tem sido usado para desanuviar as frequentes situações de tensão entre os dois países que, no século XX — desde a partição da Índia Britânica (1947), de que resultou a Índia, de maioria hindu, e o Paquistão, muçulmano —, travaram três guerras (1947, 1965 e 1971). A foto mostra uma fase de aproximação, em abril de 2005, com o Presidente paquistanês Pervez Musharraf (de óculos) e o primeiro-ministro indiano Manmohan Singh (de turbante) a assistirem, em Nova Deli, ao último de seis jogos de críquete entre as duas seleções nacionais em solo indiano. Após os atentados de Bombaim de novembro de 2008, que provocaram pelo menos 166 mortos, e que foram planeados e organizados a partir do Paquistão, a relação entre os dois países só recuperou alguma normalidade em 2011, por ocasião das meias finais do Campeonato do Mundo de Críquete, disputadas entre ambos. Então, o primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, agradeceu a presença do homólogo paquistanês, Yousuf Raza Gilani, que assistiu ao jogo na cidade indiana de Mohali. O críquete ainda não conseguiu o milagre da paz entre Índia e Paquistão, mas, de tempos a tempos, vai criando essa ilusão.

Artigo publicado no Expresso” e no “Expresso Diário”, a 6 de agosto de 2016, decorriam os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Pode ser consultado aqui