O Nobel da Paz de 1994 coroou os esforços de Shimon Peres no sentido da reconciliação entre árabes e judeus. Mas a sua ascensão política em Israel começou sob o signo das armas. Uma de várias contradições que pontuam uma longa carreira de sete décadas. O último dos fundadores do Estado de Israel morreu esta quarta-feira, aos 93 anos

A ironia quis que Shimon Peres desse entrada no hospital de onde não mais sairia com vida após sofrer um acidente vascular no mesmo dia em que israelitas e palestinianos assinalavam o 23º aniversário dos Acordos de Oslo. Peres foi um dos artífices desse tratado, assinado nos jardins da Casa Branca a 13 de setembro de 1993, que devolveu a esperança à região e ao mundo e, ainda hoje, é invocado como solução para o interminável conflito. “Um erro”, sentenciaria poucos anos passados.
“Quando introduzimos no acordo a ideia de uma Autoridade Palestiniana [Governo provisório], concordamos que tudo aquilo seria uma espécie de independência palestiniana a 80%. Foi um erro. Devíamos ter começado imediatamente com a independência”, afirmou ao diário espanhol “El Mundo”, numa entrevista publicada a 20 de fevereiro de 2002. “Não tínhamos a intenção de enganar os palestinianos, mas depois houve uma mudança de Governo em Israel [entrou em cena o “falcão” Benjamin Netanyahu] e as coisas não saíram como esperávamos. Se os palestinianos tivessem tido a independência, tudo teria sido diferente.”
Os Acordos de Oslo valeram a Shimon Peres o Prémio Nobel da Paz de 1994 — juntamente com Yitzhak Rabin (primeiro-ministro de Israel) e Yasser Arafat (líder da Organização de Libertação da Palestina) —, mas também um dos seus maiores arrependimentos em sete décadas de causa pública.
A frustração de Shimon Peres em relação à falta de resultados pós-Oslo em que tanto se empenhara é apenas uma de várias contradições que pontuam a sua longa biografia. Se Peres desapareceu, esta quarta-feira, sob uma chuva de elegias que o rotulam como um homem de paz — Mahmud Abbas, o Presidente palestiniano, falou de um parceiro na busca da “paz dos bravos” —, os factos dizem que ele subiu na hierarquia israelita sob o signo das armas.
Nascido em 1923, em Vishneva (então território polaco, hoje bielorrusso), emigrou para a Palestina (sob mandato britânico) aos 11 anos, para, pouco depois, mergulhar nas operações armadas clandestinas da Haganah, um grupo paramilitar empenhado no estabelecimento de um Estado judeu na Palestina.
Após a criação do Estado de Israel, em 1948, David Ben-Gurion confiou nele para uma posição de relevo no Ministério da Defesa. Durante a Guerra da Independência, o “pai fundador” poupara-o à frente de batalha e encarregara-o da aquisição de armas para o exército israelita. Terminado o conflito, colocou-o de serviço ao fortalecimento da capacidade militar do país, nomeadamente na construção de um programa nuclear secreto.
“Israel não tem a intenção de introduzir armas nucleares. Mas se as pessoas têm medo que nós as tenhamos, porque não? Funcionará como dissuasão.” À semelhança do seu mentor, Shimon Peres acreditava que “a bomba” garantiria estatuto a Israel, entre os árabes e… em Washington.
Em nome da segurança de Israel, Shimon Peres desbravou caminhos conducentes a alianças estratégicas com França e Reino Unido que contribuíram para a construção da central nuclear de Dimona e determinaram estratégias político-militares como a que levou à Crise do Suez (1956): Israel invadiu o Sinai criando o pretexto para uma intervenção anglo-britânica visando a recuperação do controlo do Canal do Suez, entretanto nacionalizado pelos egípcios.
Nos anos 60 e 70, Shimon Peres não pôs em causa a estratégia de ocupação israelita dos territórios palestinianos: apoiou a construção de colonatos na Cisjordânia e Faixa de Gaza e expressou reservas em relação a compromissos territoriais — longe do homem de paz que começou a reclamar a partir da década de 80.
O trabalho discreto nos bastidores da segurança de Israel privaram-no da visibilidade essencial para o reconhecimento público que, por exemplo, Yitzhak Rabin e Ariel Sharon, contemporâneos seus que se notabilizaram como líderes militares, tiveram junto do eleitorado.
Uma das grandes contradições de Shimon Peres prende-se com o facto de ter servido por três vezes como primeiro-ministro, sem nunca ter ganho qualquer das cinco eleições nacionais a que se apresentou para o cargo — entre 1977 e 1996, como militante do Partido Trabalhista.
Peres foi uma espécie de “bombeiro de serviço” chamado a “apagar fogos” provocados por várias crises políticas, mas nunca sentiu o sabor da confiança do eleitorado israelita. A falta de currículo militar privou-o desse reconhecimento popular, mas não inviabilizou que desempenhasse quase todos os cargos significativos do país. Entrou no Parlamento (Knesset) em 1959, foi ministro dos Transportes, das Finanças, da Defesa por duas vezes e dos Negócios Estrangeiros por três vezes em décadas diferentes. E, por fim, a cadeira de Presidente, entre 2007 e 2014.
Presidente aos 84 anos
A presidência do país, que lhe foi confiada pelo Knesset tinha ele 84 anos, trouxe-lhe a popularidade que anteriormente lhe escapara. Os israelitas passaram a vê-lo como uma figura histórica, e já não tanto como um político no ativo. “Tenho a certeza que testemunharei a paz durante a minha vida, mesmo que tenha de prolongar a minha vida um ou dois anos”, insistia, porventura falando já mais com a voz da emoção do que com a da razão.
Na presidência, Shimon Peres coincidiu com o “falcão” Benjamin Netanyahu (Likud, de direita) — defensor do reforço da ocupação da Cisjordânia, através da construção de colonatos, e do controlo de todas as fronteiras da Faixa de Gaza (por terra, mar e ar) — à frente do Governo de Israel.
Em rota de colisão com estas opções políticas, e ao mesmo tempo que continuou a fazer a apologia de dois Estados para dois povos, Peres começou a lançar alertas em relação ao futuro do próprio país. “Israel deve aplicar a solução de dois Estados para o seu próprio bem, porque se perdermos a nossa maioria [demográfica] — e hoje somos quase iguais [judeus e árabes] — não poderemos continuar a ser um Estado judeu ou um Estado democrático. Essa é a questão principal e, com muita pena minha, eles [o Governo] fazem o oposto.”
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 28 de setembro de 2016. Pode ser consultado aqui