Perante escassos poderes executivos, a personalidade do secretário-geral das Nações Unidas pode fazer a diferença
“Já conversou com o novo secretário-geral? Discutiram uma saída para a Síria?” Vitaly Churkin, embaixador russo na ONU, acabava de confirmar o nome de António Guterres para secretário-geral quando uma jornalista lhe recordou o grande desafio que a organização tem pela frente. Mas a Carta da ONU não dá margem para ilusões. “O secretário-geral poderá chamar a atenção do Conselho de Segurança para qualquer assunto que, na sua opinião, ameace a paz e a segurança internacionais”, lê-se no artigo 99.º. Perante as grandes expectativas e os escassos poderes, só a personalidade do secretário-geral pode fazer a diferença. “Contas feitas”, reconheceu ainda em funções Kofi Annan, “os únicos meios de que disponho são a razão e a persuasão. Não posso chamar aviação nem exército.”
TRYGVE LIE (1946-1952) — PRAGMÁTICO
Nascido em Oslo, foi ministro dos Negócios Estrangeiros da Noruega do Governo no exílio, durante a II Guerra Mundial. Ganhou fama de político pragmático e determinado quando apoiou o Conselho de Segurança na sua decisão de combater pelas armas a invasão da Coreia do Sul pelos norte-coreanos, originando, com essa posição, a hostilidade da União Soviética. Na mesma altura, enfrentou, dentro da ONU, a “caça às bruxas” anticomunista desencadeada nos EUA pelo senador McCarthy. Não concluiu o mandato, demitindo-se em novembro de 1952. Quando recebeu o seu sucessor no aeroporto Idlewild (atual JFK) em Nova Iorque, disse: “Bem-vindo, Dag Hammarskjöld, ao trabalho mais impossível à face da Terra”.
DAG HAMMARSKJÖLD (1953-1961) — ESTADISTA
Homem do terreno, este diplomata sueco visitou 21 territórios africanos entre 18 de dezembro de 1959 e 31 de janeiro de 1960. A sua quarta viagem de mediação à República do Congo, recém-independente e varrida pela guerra civil, terminou tragicamente com a queda do seu avião na Rodésia do Norte (atual Zâmbia), a 18 de setembro de 1961. O desastre foi justificado com um erro do piloto, mas investigações independentes concluíram que o Douglas DC-6 foi abatido. Hammarskjöld venceu o Nobel da Paz a título póstumo. “Foi o maior estadista do nosso século”, disse dele o Presidente dos EUA John F. Kennedy.
U THANT (1961-1971) — MEDIADOR
Foi um negociador ativo na crise dos mísseis de Cuba (1962), uma das mais graves entre EUA e URSS durante a Guerra Fria. “U Thant colocou o mundo profundamente em dívida para com ele”, reconheceu John F. Kennedy, um dos protagonistas da crise juntamente com o Presidente soviético, Nikita Khrushchov. Os bons ofícios do diplomata birmanês colocaram-no entre os favoritos para receber o Nobel da Paz, o que nunca aconteceria. “Não está o secretário-geral a fazer o seu trabalho apenas quando trabalha para a paz?”, disse ele. U Thant está também na origem da missão de manutenção da paz da ONU na ilha de Chipre, em 1964, ainda em funções.
KURT WALDHEIM (1972-1981) — PROSCRITO
Cumpriu dois mandatos, mas quando morreu, a 14 de junho de 2007, foi o seu passado pró-nazi e não o seu legado na ONU que mais títulos fez nos obituários publicados. As revelações de que integrara uma unidade do exército alemão responsável por atrocidades nos Balcãs, na II Guerra Mundial, surgiram já ele era Presidente da Áustria (1986-1992). Na ONU, tornou-se o primeiro secretário-geral a visitar a Coreia do Norte, em 1979. No ano seguinte, voou até Teerão para tentar negociar a libertação dos reféns norte-americanos. O “ayatollah” Khomeini recusou-se a recebê-lo.
JAVIER PÉREZ DE CUÉLLAR (1982-1991) — NEGOCIADOR
Foi o último secretário-geral da Guerra Fria. Envolveu-se nas negociações que resultaram na libertação de reféns no Líbano, na retirada soviética do Afeganistão e no fim do conflito no Camboja. Considerou a missão de manutenção de paz neste último “provavelmente a mais importante e a mais complexa da história da ONU”. Mas foi com o cessar-fogo na guerra Irão-Iraque (1980-88) que este embaixador peruano obteve o maior reconhecimento diplomático.
BOUTROS BOUTROS-GHALI (1992-1996) — INEFICAZ
Antigo ministro dos Negócios Estrangeiros do Egito, foi secretário-geral durante uma sucessão de graves crises — com o massacre no Ruanda (1994) à cabeça, que fez mais de um milhão de mortos — sem que a ONU tenha revelado capacidade para as travar. Foi apupado na Somália, Etiópia e Bósnia. Em Sarajevo, chocou os locais ao dizer que sem querer minimizar os horrores daquela guerra havia outros países onde “a mortandade era maior”. Os EUA vetaram a sua reeleição.
KOFI ANNAN (1997-2006) — HUMANISTA
Na era do terrorismo internacional pós-11 de Setembro, o ganês Kofi Annan elegeu como prioridade a reforma orçamental da ONU e os direitos humanos. Em 2000, lançou os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio que pretendeu constituírem uma ponte entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Em 2001, partilhou com a própria ONU o Nobel da Paz. Opôs-se, derrotado, à invasão do Iraque. Numa entrevista à BBC em 2004, considerou-a “ilegal”.
BAN KI-MOON (2007-2016) — DISCRETO
À semelhança do seu antecessor, este sul-coreano concentrou-se na agenda da ONU para o mundo — Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável — em detrimento dos fogos que se foram ateando em seu redor: Primavera Árabe, guerra na Síria, surgimento do Daesh. Em final de mandato, Ban Ki-moon celebrará a entrada em vigor, a 4 de novembro próximo, do Acordo de Paris sobre o Clima (COP-21), negociado no quadro da ONU.
(Imagem: Bandeira da Organização das Nações Unidas)
Artigo publicado no “Expresso”, a 8 de outubro de 2016

