Jogos de guerra

Rússia e Estados Unidos retomam hoje, em Lausana, o diálogo sobre a Síria. Em cima da mesa está mais uma tentativa de cessar-fogo, num conflito onde os hospitais já se tornaram um alvo e que está refém de interesses geopolíticos

CARLOS LATUFF

A guerra na Síria transformou-se num banho de sangue contínuo sem que, nos corredores da política, se esboce uma solução credível para lhe pôr fim. Acordos de cessar-fogo sucedem-se sem resultados efetivos. O último, no mês passado, terminou com os EUA a anunciar o rompimento das conversações oficiais com a Rússia.

Esta semana, um dos cidadãos russos mais respeitados no Ocidente alertou para as consequências deste “divórcio”. “Penso que o mundo se aproxima perigosamente da zona vermelha. Não quero dar receitas concretas, mas isto tem de acabar”, afirmou Mikhail Gorbatchov, antigo líder da União Soviética. “Temos de retomar o diálogo. Ter-lhe posto fim foi um erro.”

As conversações sobre a Síria são retomadas este sábado, com um encontro previsto para Lausana (Suíça) entre os chefes da diplomacia dos Estados Unidos, Rússia, Turquia, Qatar, Arábia Saudita e Irão. Será um diálogo ao som das bombas, já que a 3500 km de distância, prosseguem os intensos bombardeamentos levados a cabo pelo Governo sírio sobre áreas de Alepo controladas pelos rebeldes — com apoio aéreo russo e terrestre de milícias apoiadas pelo Irão — e que não têm poupado civis nem hospitais.

No xadrez sírio, Estados Unidos e Rússia estão em lados opostos da barricada, arrastando atrás de si aliados com interesses particulares num amplo conflito travado, no terreno, entre forças leais ao Presidente Bashar al-Assad, oposição antigovernamental, forças curdas e milícias jiadistas, com o autodenominado Estado Islâmico (Daesh) à cabeça.

Cinco anos após o início do conflito na Síria, “a grande tragédia deste século”, como lhe chamou António Guterres — confirmado na quinta-feira secretário-geral da ONU 2017/2021 —, está refém de interesses geopolíticos, contraditórios entre si, que tornam a solução para o problema um grande quebra-cabeças.

RÚSSIA

Em defesa do aliado de sempre

O início da intervenção militar russa na Síria, a 30 de setembro de 2015 — em resposta a um pedido de ajuda oficial do Governo de Damasco —, constituiu um “game changer”, com um “peso pesado” da política internacional a tomar parte por um dos contendores. A Rússia é um aliado antigo da Síria, presente militarmente no país desde 1971 — ano em que Damasco arrendou a Moscovo a base naval de Tartus que possibilitou aos russos a sua única saída para águas quentes (Mediterrâneo). Situada numa região conflituosa como é o Médio Oriente — fronteira ao Cáucaso e à Ásia Central, territórios que há menos de 30 anos eram soviéticos —, a Síria garante aos russos um posto de vigia estratégico. A intervenção russa contribuiu para resultados mediáticos, como a reconquista da cidade histórica de Palmira ao Daesh, e desastrosos, como os bombardeamentos a hospitais. Em setembro, Washington acusou Moscovo de “violações flagrantes do direito internacional” na Síria. Guerras de palavras, apenas e só, já que nem EUA nem Rússia arriscam colocar “botas no terreno” para defender civis ou acabar com o conflito.

ESTADOS UNIDOS

Sem iniciativa nem autoridade

Em agosto de 2012, Barack Obama fez saber, alto e bom som, que o uso de armas químicas na Síria corresponderia ao desrespeito de um ultimato. Isso poderia levar à intervenção norte-americana no conflito. Um ano depois, quando foi conhecido o ataque químico em Ghouta, o Presidente dos EUA teve oportunidade de cumprir, mas não o fez. As cedências de Washington culminaram em finais de 2015 quando os EUA deixaram cair a exigência de uma “mudança de regime” em Damasco no quadro de uma solução para o conflito. Neste momento, o “polícia do mundo” está reduzido a um papel de negociador de tréguas e de instrutor e fornecedor de equipamento a forças afetas à oposição, nomeadamente curdas. A 28 de setembro, dias antes do fim do diálogo entre EUA e Rússia sobre a Síria, o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano era a voz da falta de iniciativa e autoridade do país nesta crise: “Grupos extremistas continuarão a explorar os vácuos na Síria para expandir operações, que podem incluir ataques contra interesses russos, talvez contra cidades russas”, disse John Kirby. “A Rússia continuará a mandar soldados para casa dentro de caixões e a perder material de guerra, nomeadamente aviões.”

TURQUIA

Curdos, nem vê-los. Negócios, bem-vindos

A Turquia está em acelerada reaproximação à Rússia, passada a tormenta provocada pelo abate de um caça russo junto à fronteira turca, a 24 de novembro de 2015. Esta segunda-feira, os Presidentes Recep Tayyip Erdogan e Vladimir Putin enterraram definitivamente o machado de guerra, assinando, em Istambul, um acordo relativo à construção de um gasoduto submarino (TurkStream) que tornará a Rússia menos dependente da Ucrânia. No conflito sírio, os dois países estão, porém, em lados opostos: Moscovo apoia Assad e Ancara grupos rebeldes. “Temos uma posição comum de que tudo deve ser feito para fazer chegar ajuda humanitária a Alepo”, disse Putin esta semana. E ficam-se por aí. Em entrevista ao “Komsomolskaya Pravda”, ontem, Bashar al-Assad desejou que a aproximação entre russos e turcos altere a política de Ancara em relação à Síria. Para a Turquia (membro da NATO), o conflito tem dois pilares difíceis de equilibrar: os turcos apoiam os rebeldes, mas não querem ver os curdos (que têm revelado serem as forças armadas mais capazes) ganhar território e aumentar o prestígio. Na Turquia, a minoria curda aspira à independência e Ancara quer evitá-la, custe o que custar.

FRANÇA

Caças nos céus da antiga colónia

Antigo poder colonial na Síria, a França tem sido o país ocidental mais ativo no conflito sírio: numa fase inicial, fornecendo “ajuda não-letal” a forças da oposição a Assad, depois apelando a uma intervenção militar após o massacre de Ghouta (2013) e, mais recentemente, armando grupos rebeldes e bombardeando. Após os atentados de Paris de 13 de novembro de 2015 — que o Presidente François Hollande atribuiu ao Daesh —, a França intensificou os ataques aéreos, ao abrigo do artigo 51º da Carta da ONU (legítima defesa). Há uma semana, no Conselho de Segurança da ONU, França e Espanha apresentaram uma proposta de resolução exigindo o fim dos bombardeamentos e dos voos militares sobre Alepo — a Rússia vetou (pela quinta vez num diploma sobre a Síria). À televisão TF1, Hollande defendeu que quem bombardeia Alepo (ou seja, Assad e Rússia) pratica “crimes de guerra” e deve ser levado ao Tribunal Penal Internacional. Na próxima semana, Putin era esperado em Paris para inaugurar uma catedral ortodoxa e visitar uma exposição de arte russa. “Fiz saber ao sr. Putin que se viesse a Paris, eu não o acompanharia em nenhuma cerimónia, mas que estaria pronto para falar sobre a Síria”, disse Hollande. “Ele decidiu adiar a visita.”

ÁRABES & IRÃO

Xiitas e sunitas complicam a equação

Além dos EUA, Rússia e Turquia, em Lausana estarão Arábia Saudita, Qatar e Irão. Os dois primeiros (árabes sunitas) apoiam rebeldes. O último (persa, xiita) é aliado de Assad, um muçulmano alauíta (xiita), que apoia de forma direta e indireta, através de combatentes do Hezbollah, o movimento xiita libanês. “O Hezbollah, integra as forças lideradas pela Rússia que apertam o cerco a Alepo em apoio de Assad. Pode pensar que com Damasco e Moscovo lhe dão mais liberdade para se armar”, alertou esta semana o diário israelita “Haaretz”. “Nessa circunstância, poderia tentar levar para o Líbano sistemas avançados, alguns de fabrico russo, que Israel disse no passado que não permitiria.” A guerra na Síria tem ainda margem para piorar.

Artigo publicado no Expresso, a 15 de outubro de 2016

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