Fidel Castro 1926-2016. Relato de uma vida histórica

Durante quase meio século, Fidel Castro foi o líder incontestado de Cuba. No dia da sua morte, o Expresso publica a biografia de uma das figuras históricas do século XX

Era Fidel Castro uma criança e desconhecia por que razão, no recreio do Colégio de La Salle, em Santiago de Cuba, lhe chamavam porco judeu. Na católica Cuba dos anos 1930, era assim que era denunciado quem não fosse batizado. Era o caso de Fidel, filho do galego Ángel Castro, um latifundiário próximo da United Fruit Company a açucareira norte-americana que empregava meia Cuba , e de Lina, criada de Ángel na sua quinta de Manacas.

Fidel nascera a 13 de agosto de 1926, em Biran, e era o terceiro filho dessa relação proibida. As duas famílias de Ángel Castro casado perante Deus e a lei com a professora primária Maria Luisa Argota causavam falatório nas redondezas. Para se defender no processo de divórcio interposto pela mulher, D. Ángel envia os filhos bastardos para Santiago de Cuba, onde nunca ninguém ouvira falar dos Castro. Nessa semi-clandestinidade, o pequeno Fidel cede à sensação de abandono. Na escola, as notas são uma catástrofe e o comportamento uma calamidade. Torna-se insolente, recusa a autoridade e é açoitado amiúde.

A 19 de janeiro de 1935, é finalmente batizado na Catedral de Santiago. O pai não está presente e o registo de batismo não o refere. No papel, Fidel já não era um pária, mas o reconhecimento paterno apenas surgiria aos 17 anos de idade, já D. Ángel se tinha casado com Lina. Só então, Fidel passa a usar o apelido do pai.

No ambiente de estudo e recolhimento proporcionado pelos colégios jesuítas, Fidel parece desabrochar. Torna-se um aluno exemplar e o primeiro em todos os desportos. Aos 14 anos, num inglês básico, escreve uma carta ao amigo Franklin Roosevelt, pedindo-lhe uma nota de 10 dólares, porque gostaria de ter uma. Propõe-lhe, também, uma visita guiada às minas de ferro de Mayari. O Presidente dos Estados Unidos nunca respondeu.

Aos 14 anos, Fidel Castro ao Presidente dos Estados Unidos Franklin Roosevelt, com data de 6 de novembro de 1940 WIKIMEDIA COMMONS

Em 1945, após assistir ao fim da II Guerra Mundial, Fidel inscreve-se em Direito na Universidade de Havana, que se distinguia pela politização dos seus alunos. Após a disciplina jesuíta, ele mergulha na desordem. Tomada por estudantes nacionalistas e revolucionários, que idolatram José Martí, o herói da independência cubana, a universidade está em brasa. Fidel percebe que o mundo dos discursos, dos murros e das armas à cintura está talhado para si.

A OVELHA NEGRA DA FAMÍLIA

Cinquenta anos após a independência formal (1902), Cuba continua sob tutela dos Estados Unidos. Para Fidel, que chefia as Juventudes Ortodoxas, uma formação social-democrata, só uma revolução profunda libertaria o povo das frustrações provocadas pelas injustiças sociais. Depois de viajar pela Venezuela, Panamá e Colômbia, apercebe-se que o ódio ao domínio neocolonial norte-americano não é exclusivo dos cubanos. À luz desse antiamericanismo, os comunistas já não lhe parecem os monstros sedentos de sangue que os padres jesuítas e o pai lhe tinham descrito.

Antes, pareciam ser os únicos com sentido de disciplina e capacidade para organizar um exército capaz de enfrentar ditadores. Mas em Cuba, o Partido Comunista era ultraminoritário, sem representatividade nas universidades nem influência no sindicato operário. E os cubanos nem sequer simpatizavam com a União Soviética.

Fidel vive com o dinheiro que o pai lhe manda. As raparigas amedrontam-no e fazem-no corar, mas, a 12 de outubro de 1948, casa com Mirta Díaz Balart, uma estudante de Filosofia oriunda de uma família influente. D. Ángel não comparece à cerimónia nem à festa no American Club, sentido com a rebeldia do filho. Fidel não se empenha nos estudos, é a vergonha da família. Ainda assim, o patriarca aceita financiar a lua-de-mel… nos Estados Unidos.

Em Miami e Nova Iorque, Fidel deslumbra-se com o urbanismo galopante e a densidade do tráfego automóvel, choca-se com a falta de pudor dos jovens casais que se beijam em público e perde-se nas livrarias. Compra O Capital de Karl Marx e interroga-se como um país tão profundamente anticomunista permite a venda de obras que apelam à destruição do sistema capitalista. Fica com a sensação que o american way of life resulta da pilhagem dos pobres pelos ricos: se os americanos têm frigoríficos, arranha-céus, Cadilacs e devoram corn flakes, devem-no à espoliação dos povos da América do Sul pelas suas multinacionais. O anti-imperialismo é o motor que faz Fidel mover.

De regresso a Havana, o casal instala-se num hotel. Mirta retoma os estudos e Fidel as atividades no Partido Ortodoxo. A política causa-lhe dependência e, em poucos meses, a mulher está só. Fidel intima-a a recusar tudo o que é oferecido pelos Dias Balart. Não quer sentir-se comprado. Para alimentar o filho — Fidelito, nascido a 1 de setembro de 1949 —, Mirta pede dinheiro aos amigos. Aos poucos, Fidel torna-se agressivo, mesquinho e quase tirânico. O seu espírito de missão tudo transcende. Vive unicamente para o povo cubano. Foi alvo de um chamamento.

Em setembro de 1950, ele conclui o curso, mas não consegue uma bolsa de estudo para ir para os Estados Unidos e preparar a revolução nas entranhas do monstro. Abre um escritório na capital, no n.º 57 da Rua Tejadillo, e põe-se à prova. Após ser preso durante uma manifestação estudantil, assume a sua defesa. Pede uma toga emprestada e, na sala de audiências, organiza uma coleta para pagar a caução. É absolvido.

Fidel com “Fidelito”, seu filho e de Mirta Diaz-Balart, a sua primeira mulher, numa foto datada de 1954 WIKIMEDIA COMMONS

DO GRANMA À SIERRA

A 11 de março de 1952, após liderar o assalto ao campo militar de Columbia, centro de operações do exército, o general Fulgencio Batista autoproclama-se Presidente de Cuba. Conhecidas as suas inclinações pró-americanas, chamam-lhe Mister Yes. Este status quo fortalece o projeto de luta armada de Fidel, que cria uma organização militar — Movimento — que visa a ação direta, la guerrilla. Rigoroso na seleção dos seus seguidores, apenas aceita quem esteja disposto a morrer pela revolução e aceite uma vida de austeridade. Fidel é o chefe incontestado deste exército secreto, instruído no manejamento das armas nas caves da Universidade de Havana.

O Movimento sai da clandestinidade a 27 de janeiro de 1953. Por ocasião do centenário de José Marti, 500 homens munidos de tochas integram-se no cortejo oficial. Faltava passar à ação. Fidel concebe então a captura de um centro nevrálgico para iniciar a libertação do país. A 26 de julho, lidera o desastroso assalto ao quartel de Moncada, em Santiago, que se salda na morte de 64 dos 123 membros do comando. Fidel escapa para a sierra, mas acaba por ser preso. Na prisão de Boniato, recompõe-se das emoções. Divorcia-se de Mirta, dedica-se à leitura e prepara a defesa. A história absolver-me-á é o título da sua alegação.

Condenado a quinze anos de prisão, beneficia de uma amnistia presidencial. Refugia-se no México, onde reagrupa os efetivos, junta fundos recolhidos nas comunidades cubanas exiladas nos Estados Unidos e contacta com o revolucionário argentino Ernesto Che Guevara. É informado da morte do pai, que não via há anos, e fica a saber que Naty Revuelta, uma ex-amante oriunda da burguesia cubana, dera à luz uma menina, Alina. Fidel encarrega a mãe de verificar se a bebé tem traços dos Castro.

A 25 de novembro de 1956, Fidel, o irmão Raúl, Che e 79 seguidores partem de Tuxpan a bordo do Granma, um barco de recreio de 14 metros e dois motores a diesel, para iniciarem a revolução. Na véspera, Fidel redige o testamento. A 2 de dezembro, às 4.20h da madrugada, 82 homens extenuados e angustiados, devido às violentas tempestades e à perseguição das tropas governamentais, desembarcam na Playa Colorada.

“Ganhámos! Como José Martí recuperámos a nossa terra! O tirano Batista tem os dias contados!, declara Fidel. Os seus seguidores olham-no como a um profeta. No refúgio escarpado da “sierra Maestra, ele organiza o que resta da sua força: 16 rebeldes sobrevivem à perseguição do exército e aos raides aéreos ordenados por Fulgencio Batista. Mas em Havana, o Presidente comete um erro: anuncia a morte de Fidel. A United Press difunde a notícia pelo mundo inteiro e Fidel sente que estão criadas as condições para, um dia, tal qual uma lenda, ele ressuscitar.

Fidel Castro na companhia do revolucionário argentino Che Guevara, em 1961 ALBERTO KORDA / WIKIMEDIA COMMONS

UM BARBUDO NA AMÉRICA

A causa de Castro desperta atenções nos Estados Unidos após Herbert Matthews, um famoso articulista do “The New York Times, subir à “sierra para entrevistar Fidel. No acampamento, a conversa é constantemente interrompida pelos rebeldes que comunicam as últimas a Fidel. Tudo não passa de uma encenação para convencer o jornalista que o exército é numeroso e está bem organizado. Na primeira página do maior jornal norte-americano, Fidel surge como um revolucionário romântico e encantador que personifica as maiores esperanças do povo cubano. Cai nas graças dos norte-americanos e, contrariamente ao que Batista quer fazer constar, a CIA não o considera comunista, antes vê nele um potencial parceiro na luta contra o perigo vermelho.

Em maio de 1958, o Presidente cubano lança uma ofensiva para acabar com os grupos antigovernamentais. Colocado entre a espada e a parede, Fidel transcende-se. Beneficiando de deserções em massa nas forças de Batista, o exército de Fidel vai acumulando vitórias e conquistando cidade após cidade. A 31 de dezembro, o chefe de Estado foge para a República Dominicana. A 8 de janeiro de 1959, Fidel entra vitorioso em Havana e assume o posto de Supremo Comandante das Forças Armadas. A 13 de fevereiro, toma as rédeas do governo revolucionário.

A convite do Press Club, Fidel faz uma visita de charme aos Estados Unidos. À frente de uma “comitiva de barbudos, responde com humor às perguntas incómodas, come hamburgueres e cachorros quentes e repete que não é comunista. Para atrair a atenção dos media, hospeda-se num hotel de baixa categoria, no bairro novaiorquino de Harlem. Por lá passam o Presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, o primeiro-ministro indiano Jawaharial Nehru e o activista negro Malcom X. O vice-Presidente Richard Nixon recebe-o, mas não o Presidente Dwight Eisenhower, que se desculpa com uma partida de golfe.

A 15 de abril de 1959, Fidel Castro aterra na pátria do capitalismo, à frente de uma “comitiva de barbudos”. Ainda no aeroporto de Washington D.C., fala aos microfones WARREN K. LEFFLER / WIKIMEDIA COMMONS

Regressado a Cuba, instala-se numa suíte no 23º andar do Hotel Hilton, o ponto mais alto da capital. Institui um “governo de veludo para acalmar o povo, profundamente anticomunista, e adormecer o vizinho americano, que de pronto reconhece as novas autoridades. A nova Constituição estabelece a pena de morte e o confisco dos bens de quem serviu o regime de Batista. Cuba está transformada num tribunal popular e Fidel num carrasco. Ele é o mentor deste simulacro de justiça que visa salvar a alma dos concidadãos pela “purificação, pelo pelotão de fuzilamento, “el paredón. Com base na “convicção moral dos vencedores, centenas de cubanos são executados, a maioria sem julgamento.

UM PIVÔ DA GUERRA FRIA

A 8 de maio de 1960, Cuba e a União Soviética reatam as relações diplomáticas e Fidel e Nikita Krutchev assinam pactos militares e económicos bilaterais. Os Estados Unidos não ficam indiferentes e suspendem a ajuda financeira; Cuba confisca as refinarias americanas que se recusam a refinar petróleo soviético; Washington reduz a quota de importação açucareira; Havana responde com nacionalizações. De permeio, Fidel abole a figura do Pai Natal, substituindo-o por um personagem barbudo, de uniforme verde-azeitona, chamado “D. Feliciano.

A animosidade entre Estados Unidos e Cuba atinge o pico a 3 de Janeiro de 1961 com o corte de relações diplomáticas. Na lógica da Guerra Fria, Cuba figura na área de influência da URSS. Começa então a era das conspirações e das tentativas de assassinato a Fidel Castro. Só à CIA, atribui-se 634 operações para liquidá-lo. “Se sobreviver a tentativas de assassinato fosse uma modalidade olímpica, eu teria ganho a medalha de ouro, disse ele.

A 17 de abril de 1961, cerca de 1400 exilados cubanos treinados pela CIA desembarcam na Baía dos Porcos. Há três meses na Casa Branca, John Fitzgerald Kennedy recua no prometido apoio aéreo à invasão, que resulta num rotundo fracasso. Num discurso a 2 de dezembro, Fidel Castro afirma-se marxista-leninista e anuncia que Cuba adotou o comunismo. A natureza marxista da revolução leva à rutura entre Fidel e Che Guevara, partidário das conceções maoistas. Paralelamente, dececiona muitos “comandantes barbudos que denunciam o que consideram ser o embrião de um regime ditatorial, desviado dos propósitos nacionalistas e democráticos dos tempos da “sierra Maestra.

Milhares de pessoas são acusadas de delitos contrarrevolucionários e executadas. Os prisioneiros políticos, as vagas de refugiados e as expulsões forçadas aumentam vertiginosamente. A economia cubana está na penúria. Antes da revolução, 80% das importações vinham dos Estados Unidos. Ao cortar esse “cordão umbilical, Fidel vira-se para os soviéticos e fica chocado com o atraso das técnicas dos novos aliados em relação às americanas, em pelo menos 20 anos. A 12 de março de 1962, Fidel institui uma caderneta de racionamento para cada cubano, que chega a prever rações na ordem dos cinco ovos e um oitavo de libra de manteiga ao mês. O mercado negro salva o povo da fome.

Em outubro de 1962, fotografias tiradas por um avião de reconhecimento U2 confirmam a existência de mísseis nucleares soviéticos na ilha, ameaçando 80% do território norte-americano. JFK decreta um bloqueio naval a Cuba. Na mira da marinha dos EUA, a frota da URSS inverte a marcha e Krutchev retira os mísseis. Durante 13 dias, a “crise dos mísseis coloca o mundo à beira de uma guerra atómica. Nas ruas de Havana, milhares de cubanos gritam: “Nikita mariquita, lo que se da no se quita.

FÉ CEGA NO SOCIALISMO

Para Fidel, a rutura com o Kremlin não se coloca. “Não cometeremos duas vezes o mesmo erro e não romperemos com os soviéticos depois de termos rompido com os EUA, diz. Pelo contrário, “El Comandante converte-se no mais eloquente advogado da URSS no Terceiro Mundo. África torna-se a nova “sierra Maestra e só Angola, ao longo de anos, recebe milhares de civis e técnicos cubanos.

Fidel abraça o cosmonauta Yuri Gagarin, numa foto de 26 de junho de 1961, dois meses após o soviético se ter tornado o primeiro homem a viajar pelo espaço ALBERTO KORDA / WIKIMEDIA COMMONS

Mas eis que no Kremlin instala-se Mikhail Gorbatchov, o “coveiro do comunismo. Num discurso proferido a 26 de julho de 1988, Fidel refuta a “Perestroika, qualificando-a de “perigosa e “oposta aos princípios do socialismo. Após a retirada militar soviética e a queda do Muro de Berlim, a crise instala-se na ilha: 85% dos seus mercados tinham desaparecido assim como subsídios e benesses comerciais; os sistemas educativos e sanitários, quase universais, gratuitos e de alto nível técnico, e toda uma série de indicadores sociais foram seriamente afetados. Em janeiro de 1989, ao assinalar o 30º aniversário da revolução, Fidel Castro reafirmaria a sua rigidez doutrinal: “Socialismo ou morte!

Os apertos económicos obrigam-no, porém, a cedências: a formação de “joint ventures, a privatização de empresas e bancos e a despenalização da compra de dólares. Para Fidel, para quem qualquer reforma de mercado é uma espécie de rendição, tratava-se de “medidas dolorosas para aperfeiçoar o regime”. Nas cimeiras internacionais, ele troca o uniforme militar verde-azeitona pelo fato e gravata e concentra ainda mais as atenções. Mas em Cuba, os seus longos discursos — chegou a figurar no Livro Guiness dos Recordes com uma alocução de 4.29 horas, a 26 de setembro de 1960, na Assembleia Geral da ONU — soam cada vez mais anacrónicos. Os cubanos já não o ouvem, apenas lhe obedecem.

Ainda que pouco frequentadas, as igrejas são colocadas sob vigilância. Fidel teme que os cubanos se inspirem no movimento Solidariedade que agita a Polónia para o desafiar. Persegue os homossexuais, abre “sidatórios” para doentes com sida, um vírus vindo do estrangeiro, diz-se, e investe sobre o mercado negro. À repressão sobre as “porcarias” da abordagem capitalista chama “Retificação dos Erros”, uma política que remete Cuba para a idade das cavernas. Neutraliza os dissidentes políticos e queixa-se das organizações dos Direitos Humanos que consideram os cubanos escravos. “O escravo sou eu!”, diz Fidel. “Sou o escravo do meu povo. Dedico-lhes dias e noites há já quase cinquenta anos.”

A QUEDA FINAL

Em finais de 1989, Fidel Castro toma consciência de que não é eterno. O stresse provoca-lhe hipertensão, que conduz a crises frequentes. É obrigado a deixar de fumar o famoso charuto Cohiba, o “Lanzero”, e a seguir um rigoroso regime alimentar. Transgride-o pontualmente para degustar um pouco de queijo “roquefort”, que adora. No maior dos segredos, é operado a um tumor no cólon, no hospital da Universidade do Cairo.

Cansados dos delírios de Fidel, cada vez mais cubanos praticam atos de rebeldia. Jovens inoculam o vírus da sida para se tornarem indesejados e serem expulsos do país; outros tentam atingir a costa da Florida agarrados a câmaras-de-ar roubadas a camiões e entregues às incertezas do mar das Caraíbas, infestado de tubarões. A polícia cubana fecha os olhos aos “balseros”. São menos bocas que o Estado terá de alimentar.

Fidel Castro junto ao monumento dedicado a José Martí, na capital de Cuba, a 27 de setembro de 2003 RICARDO STUCKERT / ABR.A / WIKIMEDIA COMMONS

Fidel reconhece que Cuba está diferente e dá mostras de realismo em relação ao que se passa no mundo. Excomungado pelo Vaticano desde 1962, ele abre as portas de Cuba a um dos responsáveis pela desagregação do bloco socialista, na Europa de Leste, o Papa João Paulo II, em janeiro de 1998. Durante os cinco dias da visita, Fidel acompanha-o em várias aparições públicas, designadamente durante a missa na Praça da Revolução, em Havana.

“Fidel foi o Presidente que mais atenção deu ao Papa João Paulo II”, escreveria o cardeal Tarcisio Bertone, no seu livro “Un cuore grande, Omaggio a Giovanni Paolo II”. “Fidel mostrou afeto pelo Papa, que já estava doente, e João Paulo II confidenciou-me que, possivelmente, nenhum chefe de Estado tinha preparado tão profundamente a visita de um Pontífice.” Fidel tinha lido as encíclicas, os principais discursos de João Paulo II e até alguns de seus poemas. Em dezembro desse ano, Fidel aboliu a proibição da celebração do Natal, que durava há quase 30 anos.

A 20 de outubro de 2004, a aparatosa queda desamparada de Fidel Castro, após uma cerimónia de formatura estudantil, em Santa Clara, parece ser o início do capítulo final de “El Comandante”. Fidel recupera das fraturas no braço e no joelho, mas não mais a doença deixa de o importunar. A 31 de julho de 2006, na sequência de uma intervenção cirúrgica ao intestino, Fidel Castro transfere os seus poderes para o seu irmão mais novo, Raúl, seu Vice-Presidente. Fidel conserva o título de Presidente de Cuba até 24 de fevereiro de 2008, quando a Assembleia Nacional elege Raúl Castro para a presidência do país. “Trairia a minha consciência assumir uma responsabilidade que requer mobilidade e entrega total, que eu não estou em condições físicas de oferecer”, escreveu Fidel numa carta aos cubanos.

Fidel resguarda-se em casa, sendo, a espaços, fotografado em fato de treino na companhia de governantes e personalidades estrangeiras, dos quais o Presidente da Venezuela Hugo Chávez foi a visita mais frequente. Fidel escreve uma coluna no Granma (“Reflexões”) e dá entrevistas ocasionais, onde aproveita para fazer “mea culpa”. Em setembro de 2010, afirmou: “O modelo cubano já não funciona nem para nós.” “Sou o responsável pela perseguição aos homossexuais que houve em Cuba.”

O sigilo à volta da sua doença — diverticulite (provocada pela falta de fibras na dieta alimentar) — dispara a especulação à volta do seu estado de saúde. A morte de Fidel é antecipada várias vezes. Hoje, confirmou-se. “O tempo passa e os homens da maratona cansam-se”, disse um dia “El Comandante”. “A corrida foi longa, muito longa!”

Artigo publicado no Expresso Online, a 26 de novembro de 2016. Pode ser consultado aqui

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As sete vidas de Fidel, o homem que terá sobrevivido a 634 tentativas de assassínio

O ex-líder cubano coincidiu no poder com dez Presidentes dos Estados Unidos. Uma investigação de Fabián Escalante, ex-chefe dos serviços secretos cubanos, concluiu que, entre 1959 e 2000, Fidel terá sobrevivido a 634 tentativas de assassínio. Algumas planeadas de forma criativa

AMANTE TRAIÇOEIRA

1960, janeiro — Chegada a Cuba com o pai após a revolução de 1959, a alemã Marita Lorenz perdeu-se de amores por Fidel Castro e tornou-se numa das suas muitas amantes. Ficou grávida e acusou o regime de a ter obrigado a abortar. Abandonou a ilha e juntou-se à comunidade cubana da Florida, onde foi recrutada pela CIA para assassinar Castro. Recebeu ampolas com veneno que deveria colocar na comida do cubano. De volta a Cuba, Fidel terá desconfiado do que se passava e entregou a Marita a sua arma para que ela o matasse. A alemã não foi capaz e pôs Fidel ao corrente dos planos da CIA.

CHARUTO CONTAMINADO

1960, setembro — Quando Fidel foi a Nova Iorque para discursar na Assembleia Geral da ONU, a CIA viu nessa visita uma ocasião única para atentar contra ele. Juntamente com a máfia, planeou várias operações. Uma delas consistia em colocar no seu quarto de hotel uma caixa de charutos contaminados com um poderoso veneno à base de butolina sintética. A polícia recusou colaborar e o plano abortou. Outra passava por colocar sais de tálio nos seus sapatos ou nos seus charutos. O químico provocaria a queda da barba. Esta operação não visaria matar Fidel, mas antes enfraquece-lo e desacredita-lo perante o seu povo. Uma terceira tentativa passava por pulverizar um estúdio de rádio onde Fidel iria participar numa emissão em direto com um aerossol contendo uma substância que provocaria um riso incontrolável, afetando o seu carisma e prestígio.

BÚZIO ARMADILHADO

1963, primeiro trimestre — Sabendo que Fidel Castro gostava de fazer mergulho, a CIA planeou mata-lo através de um fato de mergulhador forrado com esporos e bactérias que infetavam a pele e inoculavam o bacilo da tuberculose. O fato deveria ser entregue ao advogado americano James B. Donovan, envolvido nas negociações com Cuba visando a libertação de prisioneiros da invasão da Baía dos Porcos (1961), e que tinha acesso a Fidel. O jurista recusou a missão e, por iniciativa própria, ofereceu a Castro um outro fato. A CIA insistiu e planeou colocar um búzio armadilhado com explosivos na zona onde Fidel costumava praticar pesca submarina. O búzio seria colorido e fora do comum, para atrair a atenção de Fidel e aproxima-lo o suficiente para que fosse atingido pela explosão.

BATIDO TÓXICO

1963, março — À noite, Fidel tinha por hábito passar pelo hotel Habana Libre, onde se deliciava com batidos de chocolate. Um empregado do bar chamado Santos de la Caridad Perez Nunez recebeu, de um guarda-costas da máfia, duas cápsulas de cianeto, a mando da CIA. Deveria mistura-las no batido de Fidel para envenená-lo. O empregado deixou uma em casa e escondeu a outra no frigorífico do hotel, à espera da melhor oportunidade. Certo dia, Fidel apareceu e fez o pedido de sempre. Perez Nunez foi buscar a ampola e reparou que estava presa ao gelo do frigorífico. Ao tentar descolá-la, a cápsula partiu-se e o seu conteúdo perdeu-se. Terá sido esta a ocasião em que a CIA esteve mais próxima de matar Fidel.

CANETA ENVENENADA

1963, novembro — No dia 22, exatamente o mesmo em que John Fitzgerald Kennedy foi assassinado em Dallas, Rolando Cubela, embaixador de Cuba na UNESCO, e Desmond Fitzgerald, chefe da secção de assuntos cubanos da CIA, encontraram-se em Paris para coordenar o projeto de um golpe de Estado em Cuba e o assassinato de Fidel. Cubela recebeu uma caneta luxuosa com uma agulha hipodérmica destinada a inocular, lentamente, um veneno em Fidel. O complô foi descoberto e Cubela foi condenado a 25 anos de prisão. Após ser libertado, exilou-se em Espanha.

APAGÃO OPORTUNO

1967, novembro — Fidel tinha presença prevista na inauguração do Campeonato Nacional de Basebol no Estádio de El Cerro, em Havana. Um grupo de conspiradores planeou um atentado contra Fidel que passava pela colocação de um cúmplice junto ao quadro elétrico com a missão de provocar um curto-circuito e gerar um apagão no recinto. Simultaneamente, seriam lançadas granadas de fragmentação contra a tribuna onde Fidel se encontrava.

ACIDENTE COMBINADO

1971, outubro — Élio Hernández Alfonso era um operário numa siderurgia que odiava Fidel e o regime cubano. Em nome de uma contrarrevolução, tentou recrutar vários trabalhadores dessa unidade fabril para assassinar El Comandante quando ele visitasse o local. O plano consistia em derrubar sobre Fidel um enorme contentor de ferro fundido, à sua passagem. Descoberto o plano, o autor foi preso.

Artigo publicado no Expresso Online, a 26 de novembro de 2016. Pode ser consultado aqui

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Um grito em nome de Alepo

Esteve quase quatro anos em missão na Síria e foi testemunha de uma “convivência única” entre populações muçulmanas e cristãs. Hoje, a irmã argentina Maria de Guadalupe sente que é seu dever partilhar a sua experiência para alertar, sobretudo, para a situação em Alepo. Falámos com ela, aprendemos com ela, sofremos com ela

Na era da comunicação global e das grandes conquistas tecnológicas, nem sempre a verdade está à distância de um clique. E o conflito na Síria é um exemplo disso. “Estamos na era da comunicação, mas é lamentável que não se saiba a verdade sobre o que se passa em Alepo.

O que se vende no Ocidente é uma mentira, baseada em muita desinformação e ignorância”, acusa a irmã Maria de Guadalupe, de 43 anos, em entrevista ao Expresso. E concretiza: “A perseguição aos cristãos é desconhecida do resto do mundo”.

Missionária da Família Religiosa do Verbo Encarnado, congregação sediada em Buenos Aires — cidade onde nasceu o Papa Francisco —, Guadalupe esteve quase quatro anos em missão em Alepo, a segunda maior cidade síria e que hoje se encontra praticamente dizimada pela guerra. “Em termos humanos, Alepo foi a pior situação que alguma vez presenciei. Mas foi também, sem dúvida alguma, a minha melhor missão. Se voltasse atrás no tempo, pediria para ir para a Síria.”

Em Alepo, antes da guerra rebentar, a irmã testemunhou uma convivência entre muçulmanos e cristãos como nunca antes vira na região. “Nunca vi nada igual em 15 anos de missões no Médio Oriente.” A Síria era um país excecional, tinha um Estado laico e “Alepo era uma cidade desenvolvida, muito próspera, com um excelente nível académico — era uma cidade empresarial”, que rivalizava com Damasco, a capital. Pessoas de diferentes religiões eram colegas de trabalho e amigos.

Dirigindo um coro infantil na Catedral do Menino Jesus, no bairro de Shahba, onde vivem e trabalham os missionários da congregação da irmã Guadalupe FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO

Maria de Guadalupe chegou a Alepo em inícios de 2011, quando as manifestações populares da Primavera Árabe ainda não tinham saído às ruas da Síria e ninguém antevia a guerra sangrenta que se seguiria. Antes, tinha estado dois anos na cidade palestiniana de Belém (Cisjordânia) e 12 em Alexandria, no Egito.

Durante esse período, deslocou-se a vários países na região (Jordânia, Síria, Iraque e Tunísia) para trabalhar junto das comunidades cristãs locais. Quando lhe foi proposto que escolhesse o seu próximo destino, a missionária escolheu Alepo, pensando que iria poder desfrutar de um período mais calmo do que aquele que vivera no Egito.

“Nunca pensei estar preparada para permanecer num país em guerra, mas eu já lá estava quando a guerra começou. Apercebi-me que tinha de ficar, pois Deus mo pedia. O meu superior sempre disse que temos de ir para onde ninguém queira ir. Esse lugar é Alepo”, cidade que está, desde há anos, a ser disputada pelo exército nacional, forças rebeldes laicas e jihadistas.

Guadalupe vivia na parte ocidental da cidade, controlada pelas tropas do Presidente Bashar al-Assad. “É um erro dizer que a Síria está a sofrer uma guerra civil. O país foi invadido por grupos armados estrangeiros, terroristas, que desde o início perseguem abertamente os cristãos e qualquer outro grupo que não corresponda ao seu fundamentalismo.”

Acusa o Ocidente de defender a liberdade, a democracia e os direitos humanos e, ao mesmo tempo, de financiar o terrorismo em nome de interesses económicos.

Além do trabalho pastoral na catedral, a congregação tem uma residência para estudantes universitárias oriundas de fora de Alepo FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO

Quando o Daesh se fez anunciar na Síria — estabelecendo em Raqqa a sua capital —, a missionária ainda estava no país. Mas nunca o enfrentou diretamente. “Se tivesse tido algum contacto com o Daesh não estaria cá hoje para contar”, diz, fazendo o gesto de quem corta a garganta. “Não há maneira de conversar com esta gente. O Daesh pratica uma intolerância total para com os cristãos. O sequestro ou a morte são inevitáveis.”

A irmã garante que apesar da devastação e das atrocidades cometidas em Alepo e noutras cidades da Síria, as populações resistem o mais possível a deixar as suas casas ou o país. Fugir é sempre a última opção, “o êxodo é forçado”. É resultado do desespero. Estima-se que, desde março de 2011, cerca de 11 milhões de sírios tenham fugido de casa. Muitos saíram mesmo do país.

Guadalupe saiu da Síria em finais de 2014. Hoje, sente que, de certa forma, a sua missão em Alepo ainda não terminou. Viaja por vários países, dando o seu testemunho para que os cristãos perseguidos, com quem se preocupa em especial, tenham uma voz que os defenda. Uma gota no oceano, mas uma gota necessária.

Chegou a Portugal no passado dia 18, a convite da fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre. Esteve no Porto, no Estoril, em Lisboa e esta quinta-feira à noite dará o seu testemunho em Almada, na Igreja Paroquial de São Tiago, pelas 21h15.

Na quarta-feira, a irmã Guadalupe deu o seu testemunho no Colégio de São Tomás, em Lisboa FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO

Para quem não a irá ouvir, ela apela: “Não podemos ser indiferentes ao que se passa em Alepo. Temos de rezar por eles e pela paz. E temos de cooperar, contribuindo para a paz com o nosso próprio comportamento. Somos seres humanos e vivemos em comunidade. Se eu faço o bem, isso repercute-se na sociedade e contribui para a paz. Se eu vivo em pecado, vício, egoísmo, isso repercute-se na sociedade e contribui para a guerra. O nosso comportamento não é indiferente. Através dele, cooperamos com a guerra ou com a paz.”

(Foto principal: A irmã Maria de Guadalupe esteve em missões no Médio Oriente durante 15 anos FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO)

Artigo escrito em conjunto com Flor Lança de Morais e publicado no “Expresso Diário”, a 24 de novembro de 2016 e republicado no Expresso Online, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui

“Não serei uma estrela do rock, serei uma lenda”: o Freddie vive

Fernando Conceição é um fã abnegado de Freddie Mercury, daqueles que gastam os CD de tanto os ouvir. Coleciona tudo o que tenha que ver com o artista e viaja pelo mundo no encalce dos seus sítios emblemáticos. Quando um grave problema de saúde debilitou Fernando Conceição, a quem chamam “o Freddie português”, foi alvo de uma homenagem da melhor banda de tributo aos Queen. Na semana do 25º aniversário da morte de Freddie Mercury, que se assinala esta quinta-feira, abriu ao Expresso a porta de casa e do seu raro museu privado para desvendar encontros e episódios singulares

Freddie Mercury, o carismático vocalista dos Queen, morreu faz esta quinta-feira 25 anos. Mas a lenda continua viva graças a fãs como Fernando Conceição. “Era um génio, a compor, a cantar e em palco. Para nós, os fãs, ele não morreu, apenas deixou de escrever. Ouvimos as músicas dos Beatles ou do Elvis com nostalgia, mas não as do Freddie. Parece que ele está ali, a cantá-las.”

Fernando, de 52 anos, recebe o “Expresso” no seu apartamento em Queluz vestido com uma t-shirt preta que tem estampada uma frase emblemática do seu ídolo: “Não serei uma estrela do rock, serei uma lenda”, uma espécie de declaração prévia a uma conversa onde o fã se dispõe a partilhar como nasceu a admiração pelo artista e como, 25 anos após o seu desaparecimento, Freddie continua a ser importante para tanta gente. “Tinha uns 15 anos quando ouvi os Queen pela primeira vez. Gostava muito de música, mas não os conhecia. Um dia, o meu irmão mais velho trouxe um single do ‘Crazy little thing called love’ e pôs a tocar. Eu não queria dar parte fraca — coisa de irmãos — e não dei muito valor. Mas a música nunca mais me saiu da cabeça. Fui comprar o mesmo single para mim. Ainda o tenho.”

Aquele disco seria a primeira peça de um “museu” que foi ganhando forma ao longo dos anos e que hoje ocupa uma parede na sala de estar de Fernando, onde uma grande estante está totalmente preenchida com todo o tipo de objetos alusivos aos Queen: discos em vinil, cassetes e CD, vídeos, livros, postais e álbuns fotográficos, pins, medalhas e porta-chaves, bandeiras e peças de roupa, brinquedos, bonecos e puzzles, garrafas de vinho, cerveja e vodka, frascos de ketchup e preservativos, entre muitas outras coisas que Fernando vai comprando e recebendo de presente. Umas mais valiosas do que outras em termos monetários, todas elas emocionalmente preciosas.

Fernando Conceição na sua sala-museu, onde guarda todo o tipo de objetos alusivos a Freddie e aos Queen, de discos em vinil a preservativos ANA BAIÃO

Na sua sala-museu, como Fernando lhe chama, já esteve Jacky Smith, que preside há décadas ao Clube de Fãs Internacional Oficial, de que Fernando é o sócio 60.360. Muitos outros admiradores conhecem o espaço através do Facebook de Fernando. De Vila Nova de Gaia à Polónia, vários já lhe expressaram o desejo de visitar o museu. Fernando tem cotação alta junto de fãs de todo o mundo. “Dizem que sou o Freddie português.” Perguntam-lhe se tem o número de telemóvel dos músicos da banda, pedem-lhe que esclareça rumores e que confirme informações, como aconteceu recentemente quando foi conhecida a morte da mãe de Freddie Mercury.

Aparentemente, aquela parede homenageia todos os membros dos Queen por igual, mas a figura de Freddie Mercury sobressai. “Sou fã dos Queen, mas mais do Freddie Mercury. Marcou-me principalmente a voz dele, que é muito poderosa, e as suas atuações ao vivo, a personagem que ele assumia em cima do palco e a interação com o público”, diz. “Até hoje, não houve mais ninguém como ele.”

Após vencer um concurso organizado pela editora dos Queen, em 2011, o fã português teve entrada numa festa só para convidados, na véspera da inauguração de uma exposição sobre a banda. Roger Taylor e Brian May não faltaram. Fernando e a sua jaqueta amarela não passaram despercebidos FOTO CEDIDA POR FERNANDO CONCEIÇÃO

Uma foto da parede da sala-museu está também na origem de um dos momentos mais especiais da vida de Fernando Conceição. Em 2011, a Universal, editora dos Queen, organizou um concurso em vários países: quem provasse ser o maior fã da banda ganharia uma viagem a Londres para duas pessoas com direito a estadia e entrada numa festa privada que teria lugar na véspera da inauguração da exposição “Stormtroopers in Stilettos”, sobre os primeiros anos da banda e que abriu ao público a 25 de fevereiro.

Fernando participou com a imagem do seu “museu” e foi o vencedor português. Embarcou para Londres trajado à Freddie da cabeça aos pés, com jaqueta amarela, calças desportivas e ténis Adidas, a indumentária com que o vocalista subiu ao palco no mítico concerto em Wembley, a 12 de julho de 1986.

Sem saber se os membros dos Queen que continuaram com o projeto após a morte de Freddie iam à festa, Fernando desfilou pela “passadeira vermelha” — que naquele caso era rosa-choque — e entrou num espaço exclusivo onde conviviam familiares do cantor — como a mãe, Jer Bulsara, e a irmã Kashmira —, pessoas próximas da banda, como o manager Jim Beach, e outras estrelas do espetáculo, como a cantora Jessie J e Dave Grohl, vocalista dos Foo Fighters.

O desejo de Fernando concretizou-se e quer o guitarrista Brian May quer o baterista Roger Taylor compareceram ao evento. O momento para tirar fotos com ambos, pedir autógrafos e trocar umas palavras surgiu com naturalidade. “Foi um sonho realizado, já que com o Freddie não consigo estar”, recorda. “O Brian May disse-me que se não soubesse onde está a jaqueta amarela original, usada pelo Freddie, dizia que era a minha.”

O casaco foi um presente de aniversário da esposa de Fernando, que o encomendou às escondidas a uma amiga aderecista, após visionar muitos vídeos e fotografias de Freddie com ele vestido. “Se a costureira quiser fazer outro, já não sai igual”, garante Fernando. “Este casaco tem qualquer coisa de especial. O próprio Brian May mo disse.” Diana Moseley, a costureira de Freddie Mercury, também já lhe pôs a vista em cima. Confirmou que o tecido usado era o mesmo, observou Fernando de cima a baixo e… procurou defeitos. Disse que as calças tinham o bolso na perna errada. Fernando ficou aflito, mas depois confirmou não ser verdade. “Não vendia este casaco por dinheiro algum! Uns italianos já mo quiseram comprar, mas não aceitei.” Tem o casaco desde 2009. Nunca o lavou. “Tenho medo que aconteça alguma coisa.”

Após a morte de Freddie Mercury, a banda britânica prosseguiu a carreira com apenas dois dos restantes três membros. Para John Deacon, o baixista, não fazia sentido continuar sem Freddie, a alma do projeto ANA BAIÃO

Depois de privar com os músicos dos Queen, Fernando já voltou a Londres várias vezes, por altura de outras festas, apenas para se colocar à porta a tirar fotos e ver entrar os convidados. Para ele, cada ida à capital britânica torna-se um “tour” pelos sítios emblemáticos frequentados por Freddie: o colégio onde estudou, o Heaven (uma discoteca gay), a casa onde viveu (Garden Lodge), na zona de Kensington, fechada ao público por vontade do artista, e onde vive Mary Austin, namorada de Freddie durante oito anos, a quem o cantor deixou a fortuna e a quem dedicou o tema “Love of my life”. Esta é também a música preferida de Fernando — “preferidas são elas todas, mas aquela é especial” — e a que tem como toque de telemóvel para identificar as chamadas da mulher. Para os outros, o toque é o “Bohemian Rhapsody”.

Junto a Freddie, em Montreux

Fernando não é um fã que se limita a “romper” os discos dos Queen, ouvindo-os até à exaustão. Além do museu, viaja sempre que pode, no rasto do ídolo, até Londres e desde 2008 até à cidade suíça de Montreux, para onde Freddie Mercury se retirou numa fase tardia da vida e onde anualmente fãs de todo o mundo acorrem para celebrar o aniversário do artista, a 5 de setembro.

À casa que Freddie ali comprou, voltada para o lago Léman, só se chega de barco. “É um paraíso”, confirma Fernando. “O lago transmite uma grande tranquilidade. É muito fácil perceber por que motivo o Freddie quis lá morar.” Ali, tinha sossego, isolamento e anonimato.

Em Montreux, a festa oficial decorre no casino, onde se entra mediante a compra de bilhete, mas o grande convívio entre fãs acontece junto a uma estátua em bronze de Freddie, oferecida pela soprano espanhola Montserrat Caballé (com quem Freddie gravou “Barcelona”) e inaugurada a 25 de novembro de 1996.

A estátua está virada para o lago. “A dada altura, os suíços quiseram virá-la para a cidade, mas os fãs não deixaram. Fizeram uma petição”, que Fernando também assinou. “O Freddie comprou ali a casa para estar a olhar para o lago…”

Estátua de Freddie Mercury virada para o lago Léman, na cidade suíça de Montreux, onde o músico viveu nos últimos anos. Todos os anos, a 5 de setembro, os fãs ali acorrem para celebrar o aniversário de Freddie S_WERNER / WIKIMEDIA COMMONS

Entre os admiradores, junto à estátua, nunca falta assunto. Convivem, cantam (músicas dos Queen e também os parabéns), tiram fotos, partilham entre si informações novas. “Só falamos do Freddie, há sempre uma novidade qualquer.” Junto de Peter Freestone, o assistente pessoal de Freddie que também é presença assídua, tentam saber pormenores inéditos da vida do músico. “Às vezes, o Peter, que também cozinhava, faz-nos o bolo que costumava fazer para o Freddie.”

Em Montreux, Fernando dá nas vistas mal sai do comboio “por causa do casaco amarelo”, que o acompanha desde que lá vai e por causa do bigode à Freddie que deixa crescer propositadamente. Junto à estátua, torna-se, ele próprio, uma atração para os fãs, a quem não diz que não quando lhe pedem para tirar uma foto. É uma grande festa a vários níveis. “Só não vou se não puder”, diz.

Foi o que aconteceu este ano. Há cerca de dois anos e meio, a vida de Fernando — da mulher, do pequeno Afonso de 9 anos e de Fábio de 24 (filho apenas de Fernando) — deu uma reviravolta, quando lhe foi diagnosticado um cancro. Deixou de poder fazer planos e deixou de comparecer com a frequência habitual nos locais de sempre. Mas “os fãs do Freddie português” não o esqueceram.

Foi o caso da banda argentina Dios Salve a la Reina, reconhecida por muitos — incluindo Fernando — como “a melhor banda de tributo aos Queen” em todo o mundo e que recentemente se apresentaram em versão sinfónica em Lisboa e Gondomar, acompanhados da Orquestra Filarmonia das Beiras, dirigida pelo maestro Cristiano Silva, e pelo Coro do Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro. Conhecedores do problema de saúde de Fernando, que conheciam dos seus concertos em Portugal, dedicaram-lhe um vídeo de motivação.

HOMENAGEM A 27 de junho de 2014, os Dios Salve a la Reina deram um concerto no Campo Pequeno, em Lisboa. Nos bastidores, não esqueceram o fã português e dedicaram-lhe um vídeo especial… VÍDEO CEDIDO POR FERNANDO CONCEIÇÃO

No ano passado, conseguiu ir a Londres e marcou presença na festa no Hard Rock Cafe que, a cada 5 de setembro, doa uma percentagem de cada refeição servida em todos os seus restaurantes por todo o mundo à Fundação Mercury Phoenix Trust. Criada em 1992, apoia o combate à Sida, que vitimou Freddie. “O gerente era português. Na festa atribuíram prémios aos mais bem vestidos. Lá trouxe mais uns… É o casaco.”

The show must go on… com outros vocalistas

Talvez a “fúria” com que Fernando viaja no encalce de Freddie Mercury se explique pelo facto de nunca ter visto o artista ao vivo. “É um desgosto que tenho. Ele nunca veio a Portugal e, naquela altura, eu não tinha hipótese de viajar. Eram outros tempos. Se fosse hoje, desgraçava-me a vida porque eu andaria atrás dele para todo o lado.”

O primeiro concerto dos Queen a que assistiu foi em Barcelona, a 2 de abril de 2005. Freddie tinha morrido há 14 anos e a banda regressava aos palcos com um novo vocalista, Paul Rodgers, mas sem o baixista John Deacon, para quem os Queen acabaram quando Freddie morreu. Nesse ano, a 2 de julho, os “Queen + Paul Rodgers” passaram também pelo Estádio do Restelo e Fernando não faltou. O terceiro e último concerto a que assistiu foi a 20 de maio passado, no Rock in Rio Lisboa, com Adam Lambert como vocalista.

“Como fã dos Queen/Freddie Mercury, para mim nenhum deles se aproxima do Freddie. O Brian May e o Roger Taylor gostam de música, querem continuar com os Queen, mas deviam fazer músicas novas. Podiam tocar repertório dos Queen, mas não apenas isso, como acontece. Em Barcelona, ouvir as músicas interpretadas por outro cantor que não o Freddie mexeu muito com o público. O concerto estava completamente morno e só ‘explodiu’ quando surgiu no video wall a imagem do Freddie.”

Para fãs como Fernando, Freddie é insubstituível, pelo que as músicas compostas por ele não deveriam ser interpretadas por outros cantores enquanto Queen. A banda está ciente desta sensibilidade. Durante os concertos, é Brian May quem interpreta “Love of my life”. A ele junta-se inevitavelmente o público e… Freddie Mercury, projetado no ecrã.

Desta forma, homenageiam a alma da banda e acalmam as hostes. “Eles passam muitas imagens do Freddie, que é o que realmente une o público. Eles têm a noção de até onde podem ir com o Adam Lambert ou qualquer outro.”

Como se depreende da forma como aprecia os argentinos Dios Salve la Reina, Fernando não se opõe à existência de bandas tributo, que copiam os Queen em repertório e atitude. “Eu faço o meu tributo, eles fazem o tributo deles.” Igualmente, não se incomodou quando, a dada altura, Freddie Mercury optou por seguir com a carreira a solo. “Para mim era igual, era o Freddie”, um artista de exceção e um homem extravagante, de excessos, que não queria envelhecer em palco e que protegeu a sua privacidade até ao fim da vida.

A 23 de novembro de 1991, a imprensa noticiou que Freddie Mercury tinha sida. No dia seguinte, morreu, aos 46 anos. “Não estou a ouvir o Freddie”, reclama Fernando durante a sessão fotográfica para o “Expresso”. A mulher, a assistente do fã quando está “em modo Freddie” e companheira de aventuras, dirige-se ao leitor de CD e carrega no “on”. Freddie volta a ouvir-se por toda a casa.

(Foto principalChamam-lhe “o Freddie português” e aquele casaco amarelo é valioso e invejado ao ponto de Fernando Conceição ter medo de lavá-lo (mas não de levá-lo). Nas idas a Londres e a Montreux, veste-se a rigor com a indumentária com que Freddie subiu ao palco no mítico concerto em Wembley, em 1986. E em casa tem um precioso museu privado dedicado aos Queen ANA BAIÃO)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 23 de novembro de 2016, e republicado no “Expresso Online”, a 24 de novembro de 2016. Pode ser consultado aqui e aqui

Trump e Putin já falaram ao telefone

O líder russo e o Presidente eleito dos Estados Unidos conversaram na segunda-feira. Estão “insatisfeitos” com a relação bilateral atual e querem retomar uma “cooperação pragmática”

Donald Trump e Vladimir Putin tiveram, na segunda-feira, a sua primeira conversa telefónica, confirmaram o Kremlin e a equipa de transição do Presidente eleito dos Estados Unidos da América. Segundo um comunicado do gabinete do Presidente russo, Putin e Trump concordaram que a presente relação bilateral entre os dois países é “absolutamente insatisfatória” e expressaram o desejo de trabalharem em conjunto no sentido da sua “normalização”.

Segundo Moscovo, a chamada telefónica foi realizada “por acordo mútuo”. Vladimir Putin expressou a sua disponibilidade para desenvolver um diálogo entre parceiros com a nova Administração “numa base de igualdade, respeito mútuo e não interferência nos assuntos internos de cada um”.

Já o curto comunicado da equipa de transição de Donald Trump refere que Putin telefonou “para felicitar [Trump] pela vitória numa eleição histórica” e que foram discutidas “uma série de questões, incluindo as ameaças e desafios que os EUA e a Rússia enfrentam, questões económicas estratégicas e o relacionamento histórico” entre os dois países.

Regresso ao passado

Em 2017, passam 210 anos sobre o estabelecimento de relações diplomáticas entre russos e americanos, “o que, em si, deverá encorajar o regresso a uma cooperação pragmática, mutuamente benéfica, no interesse de ambos, assim como da estabilidade e segurança globais”, lê-se no comunicado russo.

Os dois líderes referiram ainda a necessidade de esforços conjuntos “na luta contra o inimigo comum n.º 1 — o terrorismo internacional e o extremismo. Neste contexto, discutiram assuntos relacionados com a solução da crise na Síria”, onde estão em lados opostos da barricada: Moscovo é o mais forte aliado do Presidente Bashar al-Assad e Washington apoia grupos rebeldes.

A relação EUA-Rússia degradou-se acentuadamente na sequência da crise na Ucrânia e da guerra na Síria. Durante a campanha para as presidenciais norte-americanas, Washington acusou Moscovo de pirataria informática com o objetivo de “interferir no processo eleitoral dos EUA”, debilitando a candidatura da democrata Hillary Clinton.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de novembro de 2016. Pode ser consultado aqui