Protestos, a válvula de escape de um monarca pragmático

Manifestações de rua após a morte de um peixeiro recordam o início da Primavera Árabe

ILUSTRAÇÃO LE BLOG DE SYLVAIN RAKOTOARISON

A morte, há oito dias, de um peixeiro marroquino no interior de um camião do lixo, levou milhares de pessoas às ruas de várias cidades do reino em protesto contra as autoridades. Mouhcine Fikri, de 31 anos, foi engolido por uma trituradora quando — numa atitude desesperada, defendem os manifestantes — tentou salvar 500 kg de espadarte confiscados pela polícia. Uma investigação está em curso para apurar se, de facto, foi um ato de desespero ou um acidente. Se a trituradora estava ligada quando Fikri caiu ou foi acionada depois e quem deve ser penalizado pelo negócio do espadarte, já que a sua pesca está proibida no Mediterrâneo entre 1 de outubro e 30 de novembro.

O facto é que logo se estabeleceram paralelismos entre este caso e o do tunisino Mohamed Bouazizi, o vendedor ambulante que, a 17 de dezembro de 2010, se imolou pelo fogo após a polícia municipal lhe ter apreendido a banca de fruta, e que foi considerado o tiro de partida da Primavera Árabe. Iria agora a morte trágica de Mouhcine Fikri desencadear uma segunda ronda de protestos visando a monarquia, direta ou indiretamente?

Regime vai cedendo

Há cinco anos, Marrocos também não foi poupado aos ventos da Primavera Árabe, mas Mohammed VI foi hábil na contenção das manifestações dinamizadas pelo Movimento 20 de Fevereiro (M20). Promoveu um referendo constitucional e abdicou de prerrogativas, transferindo para o primeiro-ministro o poder de dissolver o Parlamento e para o Parlamento a concessão de amnistias, por exemplo. Com os marroquinos de volta às ruas, estará agora pressionado a fazer novas cedências?

“Este tipo de casos são balões de oxigénio que alimentam o M20, o qual continua a fazer sentido na pressão pelos direitos cívicos, sobretudo no que toca à mulher”, explica ao Expresso Raúl Braga Pires, investigador no Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação da Academia Militar (CINAMIL). “O regime tem cedido e ajustado as leis aos tempos modernos, como foi o caso da anulação da alínea do código penal que permitia a um violador safar-se caso acordasse casar com a sua vítima.”

O investigador compara este caso a outro, em agosto de 2013, que levou a população às ruas para contestar uma amnistia concedida ao espanhol Daniel Galvan Viña, o “Monstro de Kenitra”, condenado a 30 anos de prisão por crimes de pedofilia, “um assunto sujo e tabu e sempre escondido”. O caso surgira numa altura em que o confronto provocado pela Primavera Árabe tinha dividido profundamente a sociedade marroquina entre “esquerda” e “direita”, mas perante esse caso lealistas e membros do M20 surgiram lado a lado, independentemente de, na véspera, nas ruas, se terem agredido.

“Tensão com as autoridades existe sempre, mas os marroquinos têm noções muito claras sobre os limites e nunca acontecerá o mesmo que na Tunísia”, prossegue Braga Pires, professor na Universidade Mohammed V, em Rabat, entre 2011 e 2014. “Uma das formas inteligentes de conter os ânimos coletivos marroquinos mais impulsivos, durante o inverno de 2011, foi o facto de os cafés do reino estarem permanentemente sintonizados em canais de informação contínua, sobretudo a Al-Jazeera Árabe, que passavam em direto os acontecimentos no Egito, Iémen e, mais tarde, Síria. Os marroquinos viam e diziam: ‘Não queremos isto aqui!’”

O poder dos súbditos

Após a Primavera Árabe, qualquer governante — de Rabat a Muscate (Omã) — sabe que pode ter os dias contados e o mesmo destino do egípcio Hosni Mubarak (preso e condenado) ou do líbio Muammar Kadhafi (linchado na rua). O poder em Marrocos está atento a isso. “Estes casos que mobilizam a opinião pública de forma transversal reforçam ainda mais o poder e a autoridade do monarca”, diz o investigador. “Tudo isto provoca nos súbditos a certeza de que hoje são mais livres e informados do que nunca e que vivem num país/regime que lhes permite manifestarem-se à vontade e provocar justiça em casos de gritante injustiça.”

Outra questão levantada por este caso prende-se com a sua localização. Fikri morreu a 28 de outubro, em Al Hoceima, cidade costeira do Mediterrâneo, na região rebelde e esquecida do Rif (norte). “O Rif já fez as pazes com o Palácio”, diz Raúl Braga Pires. “Foi Hassan II que lhes chamou insetos e nunca se deslocou ao Rif, oficial ou oficiosamente, durante a sua vida/reinado. O filho, Mohammed VI, construiu estradas, deu um novo impulso económico a toda a região com investimento interno e estrangeiro e até já celebrou a Festa do Trono em Tetuão, o que muito bem caiu no goto dos rifenhos. O sentimento independentista característico desta região tem tido razões para se ir esboroando.”

Artigo publicado no Expresso, a 5 de novembro de 2016

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