Faz esta sexta-feira 33 anos na prisão. E vive no medo de ainda receber 950 chicotadas

Dois anos após receber 50 vergastadas numa praça da Arábia Saudita, o bloguer Raif Badawi, que amanhã faz 33 anos, vive no receio permanente de que as 950 chicotadas em falta a que foi condenado comecem a ser aplicadas a qualquer momento dentro da prisão. Não podemos esquece-lo…, apela ao Expresso uma amiga da família e cofundadora da Fundação Raif Badawi para a Liberdade

Raif Badawi já foi notícia em todo o mundo por diversas vezes. Foi-o a 29 de outubro de 2015 quando o Parlamento Europeu anunciou que o Prémio Sakharov daquele ano era dele. Tinha-o sido meses antes também pelas dramáticas razões que o tornaram universalmente conhecido: em frente a uma mesquita na cidade saudita de Jeddah, na presença de centenas de pessoas, Raif recebeu 50 chicotadas nas costas por “insulto ao Islão através de canais eletrónicos”, decretou a justiça saudita. Inspirado pelos “ventos da mudança” da Primavera Árabe, Raif criara o blogue “Liberais Sauditas Livres”, onde promovia debates sobre religião e sociedade uma ameaça à segurança nacional, considerou Riade.

Esta sexta-feira, o bloguer saudita faz 33 anos. Assinala-os na prisão, longe da família a mulher e três filhos menores vivem exilados no Quebec (Canadá) e das manchetes noticiosas. “Não, o caso não está esquecido”, garante ao Expresso Évelyne Abitbol, amiga da família e cofundadora da Fundação Raif Badawi para a Liberdade. “Não podemos esquece-lo. Devemos continuar a lutar pela sua libertação. Ele não é um criminoso, é um blogger, um jornalista, um escritor. E não insultou o Islão, defendeu a liberdade de expressão, de religião, de opinião…”

Após a sua prisão, em 2012, a Amnistia Internacional considerou Raif Badawi um prisioneiro de consciência, “detido unicamente por exercer pacificamente o seu direito à liberdade de expressão”. Na imagem, uma das campanhas da organização: “Blogar faz mal às costas”, lê-se. Usa-se a palavra “blogging” em vez de “flogging” (flagelação) AMNISTIA INTERNACIONAL

O caso de Raif tem constado da agenda diplomática de muitos países ocidentais nos seus contactos bilaterais com as autoridades sauditas. Os ministros dos Negócios Estrangeiros de todos os países ocidentais apelarem à sua libertação de cada vez que têm encontros na Arábia Saudita, mas não temos qualquer indicação de que ele vá ser libertado, refere Évelyne, nascida em Casablanca (Marrocos) e que é assessora especial para a diversidade de Jean-François Lisée, o líder da oposição na Assembleia Nacional do Quebec. Destaca as posições assumidas pelos Governos da Áustria, Suíça, Alemanha, França, Suécia, Noruega, Reino Unido e Canadá. Estão a trabalhar muito para o tirar de lá.

Esta semana, o potencial político do caso de Raif foi aflorado a propósito da visita à Arábia Saudita do Rei Felipe de Espanha, que se inicia no sábado. Segundo a imprensa espanhola, Letizia recusou-se a acompanhar o marido. Num artigo de opinião no diário digital El Español, o diretor adjunto Miguel Ángel Mellado enumera várias razões que podem ter contribuído para a posição da rainha. Segundo o jornalista, ela nunca visitaria um país onde as mulheres são proibidas de conduzir, as mulheres casadas não podem viajar sozinhas sem a tutela de um membro da família do marido, onde 150 pessoas foram executadas nos últimos anos, por decapitação na sua maioria, nalguns casos por se oporem à família real, um país que financia milhares de mesquitas em todo o mundo promovendo o wahabismo, uma corrente religiosa muçulmana radical, onde as divorciadas não podem entrar por serem consideradas adúlteras e onde um bloguer, Raif Badawi, recebeu 50 chicotadas em público e está na prisão à espera das restantes 950 a que foi condenado.

As chicotadas foram uma parte da pena decretada em maio de 2014. Raif foi também condenado a 10 anos de prisão, a mais 10 anos sem poder sair do país e a uma multa de um milhão de rials (mais de 250 mil euros). Recebeu as primeiras 50 chicotadas a 9 de janeiro de 2015; a segunda leva foi sendo sucessivamente adiada por razões de saúde. Raif sofre de hipertensão e é convicção da família que se o castigo continuar a ser aplicado, ele não sobreviverá. Ele tem sempre esse medo. Está sempre em grande tensão, continua Évelyne. Ele não está bem. Nem a nível físico ele tem pedras no rim nem emocionalmente. Claro que já lá vão quase cinco anos de prisão. Raif foi preso a 17 de junho de 2012.

O diretor da prisão autorizou-o a receber livros, mas estes não lhe chegam. Os livros têm de passar pela censura religiosa, explica Évelyne. Na prisão, ninguém o visita, mas Raif pode telefonar à família. Eles contactam-se. A família não pode telefonar-lhe, mas ele liga de uma cabine pública no interior da prisão. Falam-se a cada dois ou três dias.

VIGIADA, COMO O IRMÃO

Raif Badawi tornou-se o rosto mais visível entre um conjunto de intelectuais, ativistas, académicos que foram severamente punidos por ousarem dizer o que pensam na Arábia Saudita criticando as autoridades, apelando a reformas ou denunciando violações aos direitos humanos. Muitos são criminalizados ao abrigo de legislação anti-terrorista e de combate ao cibercrime.

No seu sítio na Internet, a Organização Saudi-Europeia para os Direitos Humanos apresenta vários casos de repressão, tortura, detenções arbitrárias, execuções políticas, que visam quem esboça a mínima dissidência em relação à Casa de Saud. Entre eles, está o de Samar Badawi, uma ativista dos direitos humanos de 35 anos. O apelido não ilude o parentesco: é irmã de Raif.

A 12 de janeiro do ano passado, foi presa por incitamento à opinião pública contra o Estado. Durante um interrogatório, foi questionada por ter feito o upload no Twitter da foto de um ativista a cumprir pena de prisão e por ter saudado a saída da prisão de um outro. Acabou por ser libertada, mas hoje vive com rédea curta no que respeita ao exercício das liberdades. O Expresso pediu-lhe uma entrevista para este artigo. Não posso, infelizmente, responde por email. Fui proibida pelo Governo saudita. Não posso falar com jornalistas. Lamento muito.

Tirada na noite da passagem de ano para 2017, a foto mostra Ensaf Haidar (a mulher de Raif) e os três filhos do casal: Doudi, Miriyam e Najwa. Entre as duas meninas, está a amiga Évelyne ÉVELYNE ABITBOL

No sítio da Fundação Raif Badawi para a Liberdade, um contador vai assinalando os dias, horas, minutos e segundos que faltam para a libertação de Raif — uma meta que a família gostaria de encurtar. Conta, para isso, com a pressão exercida por Governos nacionais sobre as autoridades sauditas — a ministra dos Negócios Estrangeiros da Suécia, Margot Wallström, qualificou a punição a Raif como “medieval” — e também com o voluntarismo de cada cidadão individualmente — como aconteceu com a própria Évelyne.

“Envolvi-me há dois anos. Tinha sido jornalista e tinha trabalhado na área internacional sobre diversidade, direitos humanos e desenvolvimento democrático. Um dia, vi um apelo da Ensaf no Youtube e pensei que podia ajuda-la, já que ela vive em Sherbrooke (Quebec), muito perto de mim. Conhecemo-nos numa vigília e rapidamente tornei-me amiga da família. Comecei a ajudar nas conferências de imprensa, apresentações públicas, elaboração de discursos e moções a apresentar na Assembleia Nacional do Quebec.” Depois, “decidimos abrir uma fundação com o nome de Raif e assente nos seus valores”.

Aos portugueses, em particular, Évelyne faz dois apelos. Por um lado, pede que participem numa campanha de crowdfunding (recolha de fundos) lançada em novembro passado para ajudar a custear as ações desenvolvidas pela Fundação. Qualquer quantia é bem vinda, diz. Por outro, apela a que uma editora portuguesa se interesse pelo livro da Ensaf, Mon combat pour sauver Raif Badawi (O meu combate para salvar Raif Badawi), lançado no ano passado. A tradução espanhola vai ser lançada em fevereiro. Seria muito bom arranjarmos alguém que traduzisse o livro para português e o publicasse.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 12 de janeiro de 2017. Pode ser consultado aqui

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *