É um conflito esquecido que não poupa pessoas, bens e património. Um iemenita fala da vida sob bombas
Há um conflito em curso no mundo de que quase já não se fala e que transformou o quotidiano de pessoas como Mohammed al-Hindi num permanente desafio à sobrevivência. “O que se passa no Iémen não é um conflito”, corrige, “é uma agressão da Arábia Saudita”, diz ao “Expresso” este iemenita de 43 anos, residente em Sana’a, a capital. “Desde o primeiro dia de bombardeamentos [26 de março de 2015] que tudo é alvejado de forma indiscriminada: hospitais, escolas, fábricas, estádios, quintas, estradas, pontes, aeroportos, portos, armazéns, cidadelas, museus… Nada é poupado, nem mesmo casamentos, funerais, mercados e comunidades piscatórias.”
Junto ao Mar Vermelho, Al-Hudaydah é uma das localidades fustigadas pelos ataques de uma coligação de países da região, liderada pelos sauditas e que atua em socorro do ex-Presidente Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, internacionalmente reconhecido, mas deposto pelos rebeldes huthis (xiitas) em setembro de 2014. Suspeitando que os huthis usavam os pescadores de Al-Hudaydah para infiltrar armas fornecidas pelo Irão (xiita), a coligação atacou de forma cega, destruindo armazéns de peixe, mercados e barcos, ou seja, a principal fonte de rendimento local.
Crianças em pele e osso
Em outubro passado, uma reportagem do fotógrafo Abduljabbar Zeyad (agência Reuters) expôs o drama que se vive em Al-Hudaydah: num hospital local, crianças em pele e osso jaziam em macas, algumas sem força para se erguerem. A ONU estima que, nessa região, 100 mil crianças com menos de cinco anos corram riscos de subnutrição. Em todo o país, 10 mil já morreram de doenças há muito erradicadas noutras latitudes, como a cólera e o sarampo.
Casado e pai de quatro rapazes, Mohammed al-Hindi não se sente a salvo. “A vida tornou-se difícil e esgotante. Não há trabalho nem rendimentos, só medo e preocupações.” Quem trabalhava no sector privado perdeu o emprego. Os funcionários públicos, como ele, recebem de forma irregular e, às vezes, pela metade. “Atualmente, trabalho 10 dias por mês e recebo, no máximo, 30% do salário”, diz. “Os bombardeamentos são uma preocupação diária, tenho medo que atinjam a minha casa. Há mais de 670 noites que as crianças vão para a cama assustadas pelo som dos aviões.”
Paralelamente aos ataques aéreos — que já mataram mais de 10 mil pessoas, 4000 delas mulheres e crianças —, foi decretado um bloqueio por terra, mar e ar que reforça o isolamento do mais pobre dos países árabes, onde 90% do que se consome é importado. Os preços dos alimentos dispararam, falta eletricidade, combustível e água — o Iémen produz pouco petróleo e sofre dos maiores stresses hídricos do mundo. A ONU estima que 18,8 milhões dos seus 27,4 milhões de habitantes necessitem de ajuda humanitária.
O Iémen foi um dos países bafejados pela Primavera Árabe de 2011. Então, o Presidente Ali Abdullah Saleh abdicou do cargo no âmbito de um processo negocial que catapultou para o poder o seu vice, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, depois deposto pelos huthis. “Al-Hadi é 100% ilegítimo”, diz Mohammed. “Ele foi eleito [em 2012] para um mandato de apenas dois anos”, que expirou antes de os huthis tomarem Sana. Além disso, “ele abdicou antes de fugir para a Arábia Saudita. Um Presidente legítimo nunca apela à destruição do seu país nem à morte de compatriotas, como ele fez”.
Ganância geoestratégica
Para este iemenita, a coligação não atua em nome do regresso ao poder do ex-Presidente, nem da derrota dos huthis, nem mesmo da contenção do Irão. “São desculpas. Este é um plano da Arábia Saudita para pôr as mãos no nosso país com apoio internacional, mas isso nunca acontecerá enquanto houver um iemenita vivo.” Em agosto de 2015, os sauditas invadiram o arquipélago iemenita de Socotra, no Oceano Índico, património da UNESCO e famoso pelos seus dragoeiros, e iniciou a construção de uma grande base naval.

Estrategicamente localizado, o Iémen controla o Estreito de Bab al-Mandab, o que lhe confere “grande importância regional e internacional e o torna alvo de vizinhos gananciosos”, diz Mohammed. A seu ver, a presença da Al-Qaida no país é uma prova da interferência da Arábia Saudita — ambas fervorosamente sunitas —, já que nas áreas controladas pelos jiadistas apoia-se Al-Hadi e a ofensiva militar. “A Arábia Saudita e a Al-Qaida são faces da mesma moeda”, acusa.
Mohammed recusa olhar para os huthis como os maus da fita. “Independentemente do que aconteceu, eles são iemenitas. E uma disputa entre iemenitas resolve-se localmente, através de negociações. Não há necessidade de uma interferência saudita nos nossos assuntos internos ao estilo de um herói que vem salvar os iemenitas dos huthis.”
Património sob fogo
Enquanto funcionário do Ministério do Turismo, ele sofre duplamente: pelo impacto que os bombardeamentos têm no povo e no vasto património histórico, arqueológico e religioso, único no mundo. Entre os 75 sítios de grande importância que já foram atingidos — alguns totalmente destruídos —, está a emblemática Cidade Velha de Sana’a, património da UNESCO.
“O mundo sabe o que se passa no Iémen, mas o dinheiro saudita é o preço pelo seu silêncio. É uma pena”, lamenta. “Mas quando a fonte de tanto dinheiro secar, tudo mudará. E isso está prestes a acontecer.”
(Foto principal: Al-Hajjarah, no topo das montanhas de Haraz YEOWATZUP, DE KATLENBURG-LINDAU, ALEMANHA / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de janeiro de 2017. Pode ser consultado aqui
