Um rei do xisto que tem medo dos xiitas

Périplo do Presidente Donald Trump pelo Médio Oriente e pela Europa põe a nu os dilemas geopolíticos dos Estados Unidos

Ao longo de uma semana Donald Trump passou pelo equivalente ao que os instruendos aprendem na recruta: um percurso de obstáculos através do chamado campo de infiltração com valas, saltos, arame farpado e fogo real. Sobreviveu à provação mas sabe que vai ter de a repetir não tarda.

Ao contrário de antecessores como Obama, Carter, Nixon ou Truman, cujas primeiras viagens foram ao México, Canadá ou a países europeus (o que era relevante no tempo da Guerra Fria), Trump optou pelos sauditas, aliados estratégicos mas rivais económicos, capazes de fazer implodir as cotações do petróleo em defesa dos seus interesses como em 2014/15. Prosseguiu com um exercício de equilíbrio no arame entre judeus e palestinianos. Continuou com uma passagem-relâmpago pelo Vaticano, onde o Papa diz e faz o oposto do Presidente dos EUA em quase tudo. Passou pelos aliados da NATO, para os quais olhou menos como um aliado e mais como um cobrador de impostos, exigindo aos parceiros europeus os retroativos de anos abaixo do investimento de 2% do PIB na defesa. E concluirá hoje com uma passagem pela cimeira do G7 na Sicília.

110 mil milhões de armas

Com os sauditas a relação é ambivalente. Os EUA precisam do gigante saudita para contrabalançar o poder crescente do Irão que, beneficiando da implosão do Iraque e da Síria, estende influência de Teerão a Mossul, Damasco e Tripoli. Daí a substancial venda de armas anunciada por ocasião da visita à Arábia Saudita no valor de 110 mil milhões de dólares (98 mil milhões de euros).

Mas se o reino saudita só sobrevive com a ajuda militar norte-americana já lá vai o tempo em que os EUA dependiam do petróleo de Riade. Com o advento do gás e do petróleo de xisto, há uma quase autossuficiência americana que reduz para uns meros 18% o peso das importações da península arábica (e de 5% no caso específico da Arábia Saudita).

A diferença relativamente à política de Obama é que este aproveitava este momento favorável para tentar reconverter o modelo energético para uma menor dependência dos combustíveis fósseis. Trump faz o oposto, reativando projetos de oleodutos e campos petrolíferos congelados por razões ambientais e pondo em lugares-chave climatocéticos e gente ligada às multinacionais do petróleo. Ainda assim para chegar à autossuficiência energética ainda precisa de aumentar a produção de combustíveis fósseis em 50%, o que não será já amanhã.

Mantendo-se ou agravando-se o modelo de hiperconsumo de combustíveis fósseis lá virá o dia em que os EUA podem voltar a precisar do petróleo saudita…

No discurso pronunciado no domingo, 21, em Riade, Trump definiu um novo “eixo do mal”: já não o postulado por George W. Bush (Irão/Iraque/Coreia do Norte) mas o Irão xiita e o Daesh, afirmando que Teerão “financia, arma e treina terroristas que semeiam o caos na região”. Não se tratando do Daesh que é sunita e que o Irão combate ao lado dos americanos no norte do Iraque (nomeadamente no cerco da cidade de Mossul) só pode estar a pensar na milícia xiita libanesa Hezbollah. Na Síria esta é decisiva, não tanto no combate ao Daesh (fundamentalmente a cargo dos curdos apoiados pelos americanos, como sucede no cerco a Raqqa, “capital do califado”) mas na manutenção do regime do ditador Assad, igualmente apoiado pelos russos. O Hezbollah é, ainda, o inimigo nº 1 de Israel que se revelou um osso duro de roer na invasão israelita do sul do Líbano em 2006.

Ora, para cortar este nó górdio, isto é para afastar Moscovo de Teerão e diminuir a influência iraniana no Médio Oriente, Trump precisaria de uma manobra de génio diplomático ao nível da que Kissinger preparou para Nixon em 1973, em plena Guerra do Vietname, visitando Pequim e desanuviando relações com a China maoísta em detrimento da União Soviética. Isso implicaria uma negociação mais ampla de esferas de influência que incluísse outras latitudes como a Crimeia e o leste da Ucrânia. Ora a única coisa que Trump tem em comum com Nixon é a prática de manobras internas no limiar do processo de destituição. Quanto a um Kissinger, manifestamente não o tem na sua equipa.

Pompa e fracos resultados

Se da visita às Arábias resultou uma megavenda de armas, o saldo da visita às terras bíblicas é pobre. Trump escudou-se atrás de um discurso genérico, falando mais de paz do que de outra coisa e nada dizendo sobre o que realmente é relevante: Que estatuto para Jerusalém? A favor ou contra a solução de dois estados para Israel ou Palestina? Falou com o primeiro-ministro, Netanyahu, e com o presidente da Autoridade Palestiniana, Abbas, mas não houve, nem enumeração de pontos a discutir nem calendarização dos mesmos.

Como saldo, apenas a agregação do Estado judaico ao eixo Washington-monarquias do Golfo para combater a expansão xiita no Médio Oriente. Como a História é irónica e às vezes cruel, vai fazer 50 anos que os sauditas ao lado de egípcios, jordanos e sírios travaram a Guerra dos Seis dias contra Israel, da qual resultou a conquista de territórios como Jerusalém e os Montes Golã, ainda hoje no centro dos conflitos do Médio Oriente.

Sendo que as monarquias do Golfo e os sauditas em particular são os campeões do atraso cívico e político na região, com a instauração de um regime ditatorial e teocrático, com polícia religiosa e onde, por exemplo, as mulheres têm direitos residuais. Sem esquecer que a Al-Qaeda e mesmo o Daesh sempre encontraram generosos patronos e financiadores ao mais alto nível no Golfo e que a doutrina político-religiosa vigente no reino saudita, o wahhabismo, é afim da visão do mundo dos extremistas do Daesh. E que 15 dos 19 terroristas do 11 de Setembro eram sauditas (como o próprio Bin Laden) tal como um quinto dos 779 presos de Guantánamo.

Artigo escrito com Rui Cardoso.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de maio de 2017. Pode ser consultado aqui

O calcanhar de Aquiles do Presidente

Economia e Trump complicam ‘o passeio’ de Hassan Rohani nas eleições presidenciais da próxima semana

SOFIA MIGUEL ROSA

De quatro em quatro anos, a luta pelo poder no Irão entre fações conservadoras e reformistas ganha visibilidade internacional. Foi o que aconteceu em 2009 quando a reeleição do conservador Mahmoud Ahmadinejad foi contestada nas ruas pelo Movimento Verde, criando a ilusão de uma “primavera” iraniana. Foi assim também em 2013 quando a eleição do clérigo moderado Hassan Rohani criou expectativas quanto a uma real abertura da República Islâmica ao Ocidente.

Na próxima sexta-feira, 55 milhões de iranianos estão convocados para escolher o Presidente, pela 12ª vez desde a Revolução Islâmica de 1979. “O padrão aponta para que [o Presidente em funções] Hassan Rohani seja o provável vencedor. Mas, nos últimos meses, analistas têm previsto a sua derrota”, alerta ao Expresso Ghoncheh Tazmini, investigadora da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres.

“A presidência de Rohani foi diretamente relacionada com o sentimento de crise no Irão em 2013. A economia estava mal, esmagada por pesadas sanções e, com o dossiê nuclear por resolver, o risco de um ataque dos EUA estava sempre presente. Rohani foi escolhido para resolver o problema. O Líder Supremo apoiou os seus esforços de forma relutante, advertindo para a desconfiança da América. Rohani desempenhou a tarefa com sucesso, mas as expectativas quanto a benefícios económicos decorrentes do acordo nuclear ainda não se concretizaram.”

Ao aceitar colocar o programa nuclear iraniano sob vigilância internacional — através do acordo assinado a 14 de julho de 2015 com o P5+1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha), o Irão recebeu garantias de que as sanções seriam aliviadas.

Polémicas e milhões

Meio ano depois de assinar o acordo, Hassan Rohani confirmava essa expectativa ao pisar solo europeu naquela que foi a primeira visita de um chefe de Estado iraniano em 16 anos. As deslocações a Itália e França foram ensombradas pela polémica — em Roma porque foram tapadas estátuas de nus num museu que visitou e em Paris por não se ter realizado o jantar de gala onde seria servido vinho —, mas de lá Rohani saiu com centenas de contratos assinados que prometiam dinamizar a economia nacional.

“Após tomar posse, Rohani nomeou o Governo mais tecnocrata que a República Islâmica alguma vez teve. Atacou o problema da inflação com sucesso reduzindo-a para um dígito. No tempo do seu antecessor, tinha chegado aos 40%”, diz a analista iraniana. Já a taxa de desemprego, que mais diretamente afeta a população (80 milhões), foi de 12,5% em 2016.

“As sanções dos EUA ainda em vigor e a incerteza à volta da política da Administração Trump em relação ao Irão levaram muitas empresas europeias a não arriscar fazer negócio com Teerão”, comenta a investigadora. “Igualmente, grandes instituições financeiras continuam a recusar fazer pagamentos no âmbito de contratos que envolvam iranianos.”

Desconfiar do estrangeiro

A 21 de março, na tradicional mensagem de Ano Novo (Nowruz) — que no Irão coincide com a entrada da primavera —, o Líder Supremo recordou que as promessas económicas do Governo estavam por cumprir. Por essa altura, já Donald Trump tinha conotado os iranianos com suspeitos de terrorismo ao incluir o Irão na lista de sete países visados pelo decreto de 27 de janeiro que proibia os nacionais desses países de entrarem nos EUA (depois suspenso pela justiça). Teerão sentiu-o como uma afronta e a retórica radical que olha para o estrangeiro com desconfiança ganhou força.

Nestas eleições, registaram-se como pré-candidatos… 1636 iranianos. Além de Rohani, só mais cinco passaram no Conselho dos Guardiães, que verifica o perfil dos candidatos e a sua conformidade com os preceitos da República Islâmica. Ebrahim Raisi, da confiança do aparelho revolucionário e próximo do Líder Supremo, ayatollah Ali Khamenei, 77 anos, é o adversário mais forte do Presidente.

Um dos nomes chumbados foi o do ex-Presidente conservador Mahmoud Ahmadinejad (2005/13). “Essa exclusão demonstra que o Líder Supremo não quer problemas e deseja que os iranianos vão às urnas” e escolham. “O Líder Supremo quer evitar uma campanha que
exacerbe as divisões políticas”, diz a investigadora da SOAS.

Pilares consensuais

Com 38 anos, a República Islâmica continua num sistema híbrido, combinando elementos democráticos e teocráticos. Em épocas eleitorais, fações políticas rivais confrontam-se mas sem pôr em causa os pilares da revolução. “Enquanto a presidência pode cair para o campo tradicionalista/conservador, ou para o campo moderado/pragmático, ou ainda para o campo reformista, as prioridades estratégicas da República Islâmica permanecem as mesmas”.

Ou seja, presidências moderadas e reformistas concentram-se na sociedade civil e defendem o degelo em relação ao estrangeiro; já as conservadoras centram-se na economia doméstica, nos benefícios sociais e são mais cautelosas em relação a uma aproximação ao
Ocidente. Mas nenhuma põe em causa a soberania do líder.

OS SEIS CANDIDATOS PRESIDENCIAIS E O ACORDO NUCLEAR

“Na história do Islão, há um tratado de paz entre [o xiita] imã Hassan e [o califa omíada] Muawiyah. Apesar do imã Hassan saber que Muawiyah não iria ser leal ao tratado, assinou-o para deixar claro quem iria falhar o compromisso.” A afirmação é do candidato Mostafa Hashemitaba, fazendo um paralelismo entre este episódio histórico e o acordo sobre o nuclear iraniano assinado com seis potências internacionais.

“Porque cumprimos o que acordámos e o outro lado não?”, juntou-se-lhe Mohamed Bagher Qalibaf. “É tempo de o outro lado ser responsabilizado”, acrescentou Mostafa Mir-Salim. Num debate na televisão, o Presidente Rohani defendeu o acordo dizendo que, sem este, em vez de dois milhões de barris de petróleo por dia, o Irão produziria apenas 200 mil.

Os seus cinco adversários realçaram que o acordo não trouxe prosperidade ao país, mas nenhum prometeu rasgá-lo. Várias vezes, Donald Trump falou de “um acordo muito mau”, deixando no ar a hipótese de o renegociar. A “ameaça” de Trump e a falta de benefícios diretos para “o cidadão da rua” levam muitos iranianos a olhar para estas eleições como um referendo ao acordo nuclear.

CANDIDATOS

HASSAN ROHANI
Eleito Presidente em 2013, com 51%, tenta a reeleição aos 68 anos. Foi um dos artífices do acordo sobre o nuclear iraniano. Defensor do diálogo com o Ocidente, é apoiado por moderados e reformistas

EBRAHIM RAISI
Aos 56 anos, é o principal candidato conservador e, diz-se, o favorito do Líder Supremo. Natural de Mashhad, a segunda cidade, lidera a Astan Quds Razavi, instituição de beneficiência tida como um império financeiro

MOHAMMED B. QALIBAF
Preside à Câmara Municipal de Teerão desde 2005. Conservador, liderou a Força Aérea dos Guardas da Revolução entre 1997 e 2000. Adversário de Rohani nas presidenciais de 2013, nasceu em Mashhad há 55 anos

MOSTAFA MIR-SALIM
Ex-ministro da Cultura e da Orientação Islâmica, é um crítico do acordo nuclear e defensor da repressão de dissidentes. Tem 69 anos

ESHAQ JAHANGIRI
É primeiro vice-presidente de Hassan Rohani. Foi ministro das Indústrias e das Minas sob a presidência do reformista Mohammad Khatami e, antes, governador da província de Isfahan. Tem 59 anos

MOSTAFA HASHEMITABA
Aos 70 anos, apresenta-se como um reformista moderado. Nas presidenciais de 2001, foi o menos votado dos dez candidatos

PROCESSO ELEITORAL

1636
cidadãos pré-candidataram-se às eleições presidenciais, 137 dos quais eram mulheres. Nunca a candidatura de uma mulher foi aprovada pelo Conselho dos Guardiães

26
de maio é a data prevista para a segunda volta, na eventualidade de nenhum dos seis candidatos alcançar 50% dos votos mais um. No dia seguinte, está previsto o início do mês sagrado do Ramadão

Artigo publicado no “Expresso”, a 13 de maio de 2017. Pode ser consultado aqui

Quarto norte-americano detido na Coreia do Norte

A agência norte-coreana anunciou a detenção de um homem com cidadania norte-americana por “atos hostis”. Washington acusa Pyongyang de prender os seus cidadãos com objetivos políticos

Serão já quatro os cidadãos norte-americanos detidos na Coreia do Norte acusados de “atos hostis”. Este domingo, a agência estatal norte-coreana KCNA noticiou a detenção de Kim Hak-song, funcionário da Universidade de Ciência e Tecnologia de Pyongyang, instituição inaugurada em 2010 e financiada por grupos cristãos evangélicos estrangeiros.

A confirmar-se — o Departamento de Estado norte-americano ainda não se pronunciou sobre o caso —, trata-se do quarto caso de cidadãos dos EUA detidos pelas autoridades de Pyongyang por suspeitas de atos contra o Estado.

A 22 de abril, foi detido no aeroporto de Pyongyang Kim Sang-duk (Tony Kim, no seu nome americano), professor na mesma universidade, a quem foram atribuídos “atos criminosos hostis destinados a derrubar a República Democrática da Coreia”.

Os outros dois norte-americanos detidos são Otto Warmbier, um estudante da Universidade da Virginia de 22 anos, condenado, no ano passado, por tentativa de roubo de material de propaganda do hotel onde estava hospedado e condenado a 15 anos de trabalhos forçados. E ainda Kim Dong-chul a cumprir uma pena de prisão de 10 anos por espionagem.

Washington acusa Pyongyang de deter nacionais seus para usá-los como arma política. Dada a inexistência de uma embaixada dos EUA em Pyongyang — os dois países não têm relações formais —, o assunto é tratado através da representação diplomática da Suécia.

“Todas as opções estão sobre a mesa”

As mais recentes detenções aconteceram num período de grande tensão entre EUA e Coreia do Norte, com ameaças mútuas no sentido de um conflito bélico. A Coreia do Norte tem realizado sucessivos testes com armas nucleares que têm lançado o nervosismo sobretudo na região Ásia-Pacífico. Em resposta, os Estados Unidos mandaram recentemente para a região um porta-aviões e um submarino, com o recado de que “todas as opções estão sobre a mesa”.

Na sexta-feira, Pyongyang acusou a CIA e os serviços secretos da Coreia do Sul de tentativa de assassínio do líder norte-coreano Kim Jong-un com recurso a armas bioquímicas.

Ao estilo imprevisível que o caracteriza, o Presidente norte-americano, Donald Trump, afirmou recentemente que sentir-se-ia “honrado” em encontrar-se com o homólogo norte-coreano “nas circunstâncias certas”.

A Península da Coreia está tecnicamente em guerra há mais de 60 anos. Norte e Sul travaram uma guerra entre 1950 e 1953, um dos mais acesos “conflitos por procuração” dos tempos da Guerra Fria – os Estados Unidos apoiaram Seul e a União Soviética Pyongyang.

O conflito terminou com a assinatura de um armistício, mas nunca foi assinado um tratado de paz. A tensão é permanente e, de tempos a tempos, ameaça arrastar toda a região para um conflito no Pacífico.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de maio de 2017 Pode ser consultado aqui

Quatro zonas de segurança ensaiam a paz

Rússia, Turquia e Irão continuam a ditar as regras das tentativas de paz na Síria. Um novo acordo visando o fim dos combates em quatro áreas controladas pelos rebeldes entrou em vigor este sábado

A paz na Síria vai ser ensaiada em quatro zonas maioritariamente controladas por forças rebeldes. Desde a meia-noite deste sábado, está em vigor um acordo assinado há dois dias por Rússia, Turquia e Irão, em Astana, a capital do Cazaquistão que, nos últimos meses, tem acolhido sucessivas cimeiras entre regime e oposição sírios, visando o fim do conflito que dura há mais de seis anos.

O Governo de Damasco comprometeu-se a parar com os voos da sua força aérea nessas quatro cincunscrições. Esta obrigação não compromete Moscovo já que, segundo a Al-Jazeera, “a Rússia continuará a sobrevoar as áreas mas abster-se-á de efetuar bombardeamentos aéreos. O governo sírio deve permitir a entrada, sem entraves, de ajuda humanitária em áreas controladas pelos rebeldes, e serviços públicos como eletricidade e água serão repostos em áreas onde foram cortados”.

Na prática, este acordo não impede, porém, que as posições do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh) e de grupos ligados à Al-Qaeda continuem a ser alvejados.

Os Estados Unidos, que não participam nas conversações de Astana, já fizeram saber, através do Pentágono, que este acordo não prejudicará a campanha militar que têm em curso na Síria contra o Daesh.

https://twitter.com/TheArabSource/status/860775585194270720?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E860775585194270720%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fexpresso.pt%2Finternacional%2F2017-05-06-Quatro-zonas-de-seguranca-ensaiam-a-paz-na-Siria

No mapa, acima, as quatro zonas-laboratório estão assinaladas a cinzento. São elas, de norte para sul:

— Província de Idlib, nordeste de Latakia, oeste de Alepo e norte de Hama, onde vivem mais de um milhão de civis e onde fações ligadas à Al-Qaeda têm uma forte presença.

— Enclaves de Rastan e de Talbiseh, a norte de Homs, onde vivem cerca de 180 mil civis.

— Leste de Ghouta, a norte de Damasco, zona controlada pelos rebeldes do Jaysh al-Islam (Exército do Islão), que está representado em Astana. Foi nesta área, onde vivem cerca de 690 mil civis que, a 21 de agosto de 2013, um ataque com armas químicas atribuído ao regime colocou a Administração Obama à beira de intervir na Síria.

— Dara’a e Quneitra, junto à fronteira com a Jordânia, onde vivem mais de 800 mil pessoas.

O mecanismo, que demorará um mês a ser estabelecido, será supervisionado no terreno por russos, iranianos e turcos, que no teatro de guerra sírio estão em lados opostos da barricada — enquanto Rússia e Irão são sólidos aliados de Bashar al-Assad, já a Turquia apoia fações rebeldes.

Para a oposição ao regime de Damasco, o que mais custa a aceitar é a presença do Irão entre os guardiões da paz na Síria. “Não conseguimos imaginar o Irão a desempenhar um papel na paz”, afirmou Osama Abo Zayd, um porta-voz rebelde presente em Astana. Para ele, o gigante xiita do Médio Oriente tem uma agenda sectária no conflito sírio, apoiando milícias que deslocam populações à força para as substituir por outras leais.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de maio de 2017. Pode ser consultado aqui

Angela Merkel, os sauditas e a obsessão pelo véu

Sempre que uma governante ocidental visita a Arábia Saudita e se recusa a cobrir a cabeça com um lenço é notícia. Logo se atribui ao gesto — repetido por Angela Merkel no domingo — uma intenção política e solidária para com as sauditas privadas de se vestirem como querem. Mas o véu está longe de ser o principal obstáculo à liberdade das mulheres naquele reino

Há um mês foi a primeira-ministra britânica, Theresa May. Este fim de semana, foi a chanceler alemã, Angela Merkel. As duas governantes europeias visitaram a Arábia Saudita a guardiã das duas mesquitas sagradas do Islão (Meca e Medina) — e recusaram cobrir-se com o chamado véu islâmico (“hijab”). Foram notícia por isso.

“Angela Merkel chega à Arábia Saudita sem véu para conversações com o rei Salman”, escreveu em título, no domingo, o jornal britânico “The Independent”. “Alguém que diga ao Independent que Merkel nunca usou um lenço na Arábia Saudita. Nem nesta visita, nem nas três anteriores”, reagiu no Twitter Joyce Karam, correspondente em Washington do jornal árabe “Al-Hayat”.

A ironia da jornalista alude a uma certa obsessão atribuída a alguns órgãos de informação ocidentais em relação à questão do véu, que quase ofusca os programas e motivos de certas visitas. Desta vez, o gesto de Angela Merkel teve particular impacto uma vez que ocorreu três dias após o Parlamento alemão aprovar uma lei proibindo o uso da “burqa” (vestimenta que cobre todo o corpo) e do “niqab” (lenço que cobre toda a cabeça, deixando apenas os olhos à mostra) em determinadas profissões. Angela Merkel sempre se pronunciou pela proibição deste tipo de indumentária, defendendo que deve “ser banida onde for legalmente possível”.

Véu não é obrigação protocolar

De Riade não saiu qualquer protesto em relação ao “atrevimento” da chanceler alemã, já que o uso do véu não é uma obrigação protocolar, ao contrário do que acontece no Irão, por exemplo. Mas sempre que uma personalidade política feminina estrangeira opta por não aderir ao código de vestuário tradicional para as visitantes – o “hijab” e uma “abaya” (túnica ou casaco comprido) , é atribuído a esse gesto uma conotação política. E um objetivo: inspirar as locais (e as mulheres do Médio Oriente em geral) a rebelarem-se contra restrições às suas liberdades justificadas com preceitos culturais.

“Espero que as pessoas me vejam como uma mulher que é líder”, afirmou Theresa May, em inícios de abril, em vésperas de partir para a Arábia Saudita. “Espero que vejam o que as mulheres podem alcançar e como podem chegar a postos significativos.”

A Arábia Saudita é um reino ultraconservador onde vigora, a tírulo oficial, a interpretação waabita do Islão sunita, que pugna por uma prática purista da religião e onde se inspiram grupos terroristas fundamentalistas como a Al-Qaeda (fundada pelo saudita Osama bin Laden) ou o autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh).

É também um dos maiores aliados do Ocidente na conturbada região do Médio Oriente, e tanto a Alemanha como o Reino Unido estão entre os países que vendem armas à Arábia Saudita. Quer Angela Merkel quer Theresa May expressaram reservas em relação ao uso que Riade faz das armas que os dois países lhe vendem, nomeadamente no Iémen, onde a guerra em curso — e a intervenção militar saudita iniciada a 26 de março de 2015 — originou uma catástrofe humanitária que colocou em penúria alimentar 18 milhões de pessoas.

“Nós aceitamos as reticências alemãs em relação às exportações para a Arábia Saudita”, afirmou o vice-ministro saudita da Economia, Mohammed al-Tuwaijri, em entrevista à revista “Der Spiegel”, publicada no domingo. “Não vamos causar mais problemas ao Governo alemão com novos pedidos de armas.” Segundo o governante, Riade quer tornar a Alemanha um dos seus “parceiros económicos mais importantes”.

Hipocrisia ocidental

Também Theresa May foi a Riade motivada por questões económicas. Com o Brexit (processo de saída do Reino Unido da União Europeia) em contagem decrescente, Londres tem necessidade de procurar novos parceiros comerciais preferenciais. A Arábia Saudita surge como um alvo óbvio, uma vez que já é um grande cliente dos britânicos em matéria de… armamento. Em 2015, o Reino Unido foi quem mais armas vendeu ao reino saudita: 83% das armas exportadas pelos britânicos seguiram para Riade.

Entre interesses económicos e chorudos negócios de armas, o discurso humanitário e as iniciativas antivéu que emanam de muitas capitais ocidentais soam a hipocrisia. E constituem oportunidades perdidas para se lançar o foco sobre os reais obstáculos, neste caso, à liberdade das mulheres sauditas.

“Nem as estrangeiras (melhor dito, ocidentais) estão sujeitas ao mesmo tratamento discriminatório que as mulheres autóctones, nem a indumentária, nem a proibição de conduzir são o principal problema das sauditas”, escreve Ángeles Espinosa, correspondente do diário espanhol “El País” no Médio Oriente e autora do livro “El Reino del Desierto” (2012). “O mais grave é o sistema de tutela que, no reino e, de forma distinta, também nos outros países da Península Arábica, converte as mulheres em eternas menores, dependentes para sempre da vontade de um homem, o pai, o marido, o irmão e, às vezes, até um filho pequeno.”

(Foto: Banca de uma loja em Ramallah, no território palestiniano da Cisjordânia MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 2 de maio de 2017. Pode ser consultado aqui