O primeiro-ministro do Iraque anunciou, no domingo, a reconquista da cidade de Mossul aos jiadistas do Daesh. Acabado de regressar daquela cidade, um médico do Porto, experiente em zonas de conflito, explica por que considera esta uma das suas missões “mais difíceis”. E revela como os iraquianos reagiram às mensagens de esperança que levou consigo desde Portugal
Sempre que parte para uma missão humanitária, o médico Gustavo Carona leva preso à mochila um cachecol do Futebol Clube do Porto. “É uma peça simbólica. Nele vai o meu mundo, os meus amigos, a minha família. É a minha forma de matar saudades”, confessa.
Em finais de maio, para a sua sétima missão — na cidade iraquiana de Mossul, ocupada pelos jiadistas desde junho de 2014 —, levou na mala algo tão ou mais especial ainda: exemplares de um livro da sua autoria que começou a ganhar forma apenas um mês antes de partir. A pensar em todos aqueles que se dizem inquietos com as guerras no mundo e não saber o que fazer para as contrariar, Gustavo escreveu no Facebook um “post” provocador…
“Dentro de um mês irei para o Iraque, Mossul, trabalhar com os Médicos Sem Fronteiras”, escreveu a 25 de abril. “Tentarei fazer o que sei, salvar vidas num dos locais mais necessitados dos dias de hoje. Mas para além disso gostava de levar comigo mensagens de quem acreditar que não podemos ficar indiferentes a alguns acontecimentos trágicos da atualidade, como tem sido esta guerra por Mossul.”
Criou um endereço de e-mail e esperou que a dinâmica das partilhas na internet fizesse o resto. “Não mencionem o meu nome. Isto não é sobre mim. É de cada um de vocês para todas as pessoas que sejam dignas do vosso grito de esperança.” Sem saber que eco as suas palavras iriam ter, tinha para si uma única certeza: seria o mensageiro de quem se desse a esse trabalho. Custasse o que custasse, as mensagens enviadas de Portugal chegariam a mãos iraquianas.

De partilha em partilha, os posts de Gustavo “mexeram” com centenas de amigos, conhecidos e pessoas de quem ele nunca ouvira falar, e puseram famílias e turmas de estudantes a escrever.
Escreveu Paula Assunção:
“Povo de Mossul,
O mundo das pessoas bem formadas não está indiferente ao vosso sofrimento. Podem retirar-vos muita coisa mas nada, nem ninguém, vos pode retirar a dignidade, a inocência, a esperança, os vossos sonhos. Que nunca deixem de acreditar no dia de amanhã… e nas pessoas. Acreditem que somos muitos mais do que os monstros covardes que vos atormentam e acreditem na vossa/nossa força. Eu acredito.”

Ao email, foram chegando mensagens, ilustrações e a disponibilidade de falantes de língua árabe para traduzir as mensagens. No livro “1001 Cartas para Mossul”, estão publicadas 246 mensagens, umas em português, outras inglês, todas em árabe.
“O máximo que consegui levar foi 28 exemplares. Mas já enviei muitos mais por email, em formato digital. Entreguei a muitos dos meus companheiros de trabalho iraquianos que são de Mossul e que, por sua vez, fizeram chegar a várias associações, ativistas e até órgãos de informação iraquianos, que receberam o projeto com entusiasmo e grande emoção. Fui convidado a apresentar o livro em Mossul, mas infelizmente não pude ir. É maravilhoso, aquele povo sentiu um apoio simbólico, mas muito forte e genuíno, em nome de Portugal. Passaram reportagens na televisão iraquiana que me comoveram…”
A dedicação à causa humanitária já levou Gustavo Carona a trabalhar em hospitais da República Democrática do Congo (RDC), do Afeganistão, Paquistão e Síria. Um mês passado em Mossul foi suficiente para considerar a experiência iraquiana como “uma das mais difíceis” que já teve em oito anos de Medicina Humanitária. “Já vi muita guerra e testemunhei muitas histórias tristes. Ainda assim, no Iraque, tive de segurar as lágrimas em vários momentos do meu trabalho. A tristeza das histórias sufocavam emocionalmente e deixavam, mesmo pessoas muito experientes, absolutamente desarmadas.”
Contrariamente à RDC ou ao Afeganistão, por exemplo, que vivem uma conflitualidade crónica e duradoura, à qual, de certa forma, as populações já moldaram o seu quotidiano, o Iraque era, até à intervenção norte-americana de 2003, um país estável e desenvolvido — ainda que sem liberdade, governado pelo “pulso de ferro” de Saddam Hussein. No contexto da guerra, Mossul — a maior cidade do norte do Iraque, a 400 quilómetros de Bagdade — sofreu duplamente: devido à guerra civil e ao facto de se ter tornado, a par da síria Raqqa, uma das capitais do Daesh. Foi do púlpito de uma mesquita de Mossul, a Grande Mesquita Al-Nuri, que, a 29 de junho de 2014, Abu Bakr al-Baghdadi anunciou ao mundo o “Estado Islâmico”.
Em Mossul, o Daesh teve a maior concentração de população — dois milhões de pessoas — à sua mercê. E exerceu esse controlo com grande brutalidade durante três anos. “A cidade está completamente destruída. Quase toda a gente viu familiares morrer”, diz o médico. “De uma forma ou de outra, todas as famílias foram desmembradas.”

Em Mossul, Gustavo trabalhou num hospital “feito de raiz, essencialmente com tendas”, numa zona controlada pelo exército iraquiano. Especialista em Anestesia e Cuidados Intensivos, assistiu feridos de guerra e gente esfomeada, desnutrida, desidratada — as temperaturas nesta época do ano chegam a rondar os 50ºC — e com ferimentos variados.
“Quando o conflito se intensificava, os doentes chegavam-nos ‘em massa’, na sua maioria civis. Ver as portas do hospital abrirem-se com dezenas de feridos, ensanguentados e aos gritos dá um nó na garganta”, recorda. “Queimados, vítimas de explosões e da queda de edifícios, que colapsam em cima de famílias inteiras, pessoas cravadas por estilhaços dos pés à cabeça… E nós só víamos ‘os que tinham sorte’…” Os que tinham a sorte de sobreviver…

No domingo, o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, deslocou-se a Mossul para saudar a “cidade libertada” e “os heroicos combatentes e o povo iraquiano pela grande vitória”. A operação de reconquista da cidade ao Daesh foi lançada a 17 de outubro de 2016 e nela participaram uma variedade de forças ilustrativas da grande complexidade étnico-religiosa que é o Iraque: exército iraquiano, combatentes curdos (peshmergas), tribos árabes sunitas, milícias xiitas, todos apoiados pela coligação militar liderada pelos Estados Unidos.
Para a população de Mossul, sobretudo para quem não fugiu, os meses pareceram anos, em que viveram encurralados na sua própria cidade, reféns dos jiadistas e, muitos deles, também vítimas das rivalidades internas iraquianas. “As pessoas de Mossul têm uma grande perceção de maldade”, conclui Gustavo Carona. “Por parte do Daesh, mas também de forças iraquianas e de outros grupos armados. Aquelas pessoas testemunharam atrocidades indescritíveis.”
(Foto principal: Numa mão, estes iraquianos seguram o livro com mensagens de esperança enviadas de Portugal. Na outra, cartazes de agradecimento MOSUL EYE)
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 10 de julho de 2017. Pode ser consultado aqui