O secretário-geral das Nações Unidas iniciou esta segunda-feira uma visita a Israel, de onde seguirá para o “Estado da Palestina”, conforme foi anunciado pela ONU. A visita serve para criar laços de confiança entre a organização e Telavive e Ramallah, já que de Washington ninguém sabe bem o que esperar
Desde que assumiu o mais alto cargo das Nações Unidas, António Guterres demorou mais de oito meses a visitar Israel e a Palestina, protagonistas de um conflito que se arrasta há décadas e que é tantas vezes identificado como o epicentro de tantas outras contendas na região do Médio Oriente. Até o seu avião aterrar no Aeroporto Ben Gurion, em Telavive, no domingo à noite, muitas outras latitudes em agonia tinham sido merecedoras de visitas prioritárias por parte do líder da ONU: Ucrânia, Somália, Afeganistão, Iraque, Turquia, Qatar, Uganda…
“Existe um grande número de crises regionais que requerem atenção, tempo, e meios financeiros, e o conflito israelo-palestiniano não tem sido uma prioridade dos maiores líderes mundiais”, comenta ao “Expresso” Bruno Oliveira Martins, investigador do Departamento de Estudos Políticos Globais, da Universidade de Malmö, na Suécia. “Até pelo seu perfil e pelo seu passado político, António Guterres tem levado a ONU a concentrar-se em questões relacionadas com refugiados e com outros conflitos regionais que, neste momento, grassam pelo Médio Oriente e África, e que requerem uma intervenção mais urgente.”
Guterres foi Alto Comissário da ONU para os Refugiados (ACNUR) entre 2005 e 2015, mas, nesse cargo, a questão dos refugiados palestinianos “passou-lhe ao lado”. Dada a dimensão e antiguidade do problema palestiniano, a ONU tem uma agência específica para lidar com ele, a UNRWA, criada em 1949, que apoia cerca de cinco milhões de refugiados palestinianos — mais de 800 mil residentes na Cisjordânia e 1,3 milhões na Faixa de Gaza, territórios que Guterres visitará amanhã e quarta-feira.
Guterres chega à região sem soluções milagrosas para o conflito. “É praticamente impossível a António Guterres conseguir um sucesso diplomático tangível nesta primeira visita à região”, continua o investigador português, que trabalhou como analista político da delegação da União Europeia em Israel, em 2008. “Poucas vezes na história recente, israelitas e palestinianos estiveram tão afastados entre si e as suas lideranças tão pouco comprometidas com a paz. A fasquia está tão baixa que qualquer eventual resultado positivo em relação ao ‘status quo’ será sempre altamente insuficiente.”
Rejeição inequívoca do antissemitismo
O périplo do líder da ONU começou, esta segunda-feira, em Jerusalém, com uma visita ao Yad Vashem, o Memorial do Holocausto. Guterres tem sido uma voz de denúncia do antissemitismo no mundo — fê-lo, inclusive, no seu manifesto de candidatura —, qualificando a negação do direito à existência do Estado de Israel como uma forma moderna do fenómeno.
“É interessante que Guterres aproveite a presença em Israel para sublinhar uma rejeição inequívoca e incondicional do antissemitismo, na sequência das manifestações de neonazis ocorridas nos EUA”, recorda Oliveira Martins. “Muitos israelitas, e judeus na diáspora, sentem uma grande inquietação em relação a esses desenvolvimentos nos EUA, sobretudo perante a falta de condenação por parte do Presidente Donald Trump.”
Disse Guterres: “O Yad Vashem é uma lembrança para todos nós de que nos devemos posicionar como pontas de lança no combate ao antissemitismo e contra todas as formas de racismo, quaisquer que elas sejam”.
(Conferência de imprensa de António Guterres
e do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em Jerusalém)
No seu encontro com o primeiro-ministro israelita, Guterres ouviu Benjamin Netanyahu identificar as principais ameaças que, hoje, Israel enfrenta enquanto Estado: o movimento xiita libanês Hezbollah e a Síria, instrumentalizados por um perigo maior: o Irão. “O Irão está muito ocupado a transformar a Síria numa base de fortificação militar, e quer usar a Síria e o Líbano como frentes de guerra ao serviço do seu objetivo declarado de erradicar Israel”, disse Netanyahu.
As Nações Unidas têm missões de paz junto aos dois países desde há décadas: a UNIFIL, na fronteira com o Líbano, desde 1978, e junto à Síria, nos Montes Golã, desde 1948. A 30 de agosto, o Conselho de Segurança votará a renovação do mandato da UNIFIL — atualmente com cerca de 10.500 capacetes azuis no terreno — por mais um ano.
Recentemente, a embaixadora dos Estados Unidos, Nikki Haley, acusou o comandante da missão, o general irlandês Michael Beary, de “cegueira” perante o que, disse, todos os outros conseguem ver no sul do Líbano: o tráfico de armas por parte do Hezbollah. “A guerra civil na Síria trouxe o caos para as fronteiras de Israel e as ramificações regionais são óbvias”, recorda Bruno Oliveira Martins. “Qualquer avanço nestas frentes será importante.”
A parcialidade da ONU
Nos próximos dias, a passagem de António Guterres pela Cisjordânia e por Gaza deverá mudar a agulha noticiosa desta visita para o conflito israelo-palestiniano. O processo de paz está totalmente paralisado e, à revelia de sucessivas condenações nas Nações Unidas, Israel prossegue com a sua política de construção de colonatos, designadamente expandindo colonatos já existentes.
“Aos olhos das fações mais radicais dentro do Governo de Netanyahu, a ONU sofre de um problema de credibilidade, uma vez que lhe é atribuída parcialidade na questão israelo-palestiniana e, mais importante, em tudo o que diz respeito a Israel”, diz Bruno Oliveira Martins. Poucas semanas após ter assumido o cargo, Guterres não escapou a uma grande polémica surgida após uma agência da ONU, a Comissão Económica e Social para a Ásia Ocidental (ESCWA), ter publicado um relatório em que qualificava de “apartheid” a política de Israel em relação aos palestinianos. Guterres ordenou que o documento fosse retirado do “site” da agência, o que lhe valeu muitas críticas e a demissão da chefe da ESCWA, a diplomata jordana Rima Khalaf.
“Este episódio ajuda a explicar por que é que a ONU não tem sido um ator central nos avanços diplomáticos mais importantes observados ao longo das últimas décadas. Ainda que o comportamento errático da Casa Branca abra, em teoria, uma janela de oportunidade para um maior papel da ONU, tal é praticamente impossível de acontecer — até porque a representante dos EUA junto da ONU [Nikki Haley] tem demonstrado um posicionamento ainda mais próximo de Israel que os seus antecessores.”
(Anúncio da viagem de António Guterres ao Kuwait, a Israel
e ao Estado da Palestina, lê-se no sítio do secretário-geral da ONU)
Quando amanhã pisar solo palestiniano, António Guterres leva consigo um legado político importante. A 29 de novembro de 2012, a Assembleia Geral da ONU aprovou, de forma esmagadora, a atribuição do estatuto de “Estado Observador Não-Membro” à Palestina.
Quase cinco anos depois, a forma como foi divulgada a viagem de Guterres pela comunicação das Nações Unidas e nas palavras do porta-voz de Guterres, Stephane Dujarric — “ao Kuwait, a Israel e ao Estado da Palestina” — não é equívoca quanto ao assunto, ainda que na prática seja pouco consequente.
“Esta visita é importante para estabelecer laços de confiança bilaterais entre a equipa de Guterres e os corpos diplomáticos israelitas e palestinianos”, conclui o investigador da Universidade de Malmö. “Os sinais vindos de Washington são altamente contraditórios, ninguém sabe bem o que esperar, pelo que algum tipo de liderança por parte da ONU ou mesmo da UE seria extremamente importante — ainda que improvável.”
(Imagem de abertura: “Paz”, em árabe e hebraico, entre as bandeiras de Israel e da Palestina MAKARISTOS / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 28 de agosto de 2017 e no “Expresso Online” no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui
Os EUA vão enviar mais tropas para o Afeganistão. Os talibãs já prometeram fazer do país um cemitério para os norte-americanos
“Salvem-me dos meus amigos!”, lê-se neste cartoon de 1878 sobre “O Grande Jogo” no Afeganistão: O emir afegão Sher Ali Khan ladeado pelo urso russo e pelo leão britânico WIKIMEDIA COMMONS
Em finais do século XIX, Eça de Queirós era um observador atento da guerra no Afeganistão. Em 1880, numa das “Cartas de Inglaterra” publicadas no “Diário de Notícias” escrevia o seguinte sobre a campanha militar dos ingleses no país: “No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes enérgicos, messias indígenas, vão percorrendo o território, e com grandes nomes de pátria, de religião, pregam a guerra santa: as tribos reúnem-se, as famílias feudais correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais juntam-se no ódio hereditário contra o estrangeiro, o ‘homem vermelho’, e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a estrada da Índia… E quando por ali aparecer, enfim, o grosso do exército inglês, à volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente por entre as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o. Foi assim em 1847, é assim em 1880.”
Senhores da Índia e temerosos do avanço da Rússia pela Ásia Central, os ingleses tentaram, por duas vezes, ocupar o Afeganistão — sem sucesso. No século seguinte, foi a vez de os soviéticos ocuparem o país durante 10 anos (1979-1989), de onde saíram sem honra nem glória. Hoje, são os norte-americanos que ali vivem dificuldades, não conseguindo colocar um ponto final àquela que já é a guerra mais duradoura em que se envolveram e onde chegaram a ter 100 mil efetivos.
O espírito indomável dos afegãos tem levado escritores e historiadores a referirem-se ao país como um “cemitério de impérios”. Esta semana, os talibãs recuperaram o termo para reagirem à nova estratégia dos EUA para o Afeganistão, anunciada, na terça-feira, por Donald Trump. “Se a América não retirar as suas tropas, em breve o Afeganistão tornar-se-á mais um cemitério para esta superpotência do século XXI”, ameaçou Zabiullah Mujahid, porta-voz dos “estudantes”.
Sem adiantar números nem se comprometer com prazos, o Presidente anunciou apenas que o contingente norte-americano vai ser reforçado. “Em termos gerais, é positivo que os EUA renovem o seu compromisso no Afeganistão”, comenta ao Expresso Mirco Günther, diretor para o Afeganistão da Fundação Friedrich Ebert (FES). Retirar as tropas, como Trump defendeu na campanha eleitoral, “teria sido uma decisão irresponsável”.
Fatura do 11 de Setembro
Quase 16 anos após o início da guerra no Afeganistão — país que pagou a fatura do 11 de Setembro —, seguem ali destacados 8400 norte-americanos. “The Wall Street Journal” diz que outros 3500 estão em missão temporária. E estima-se que o Pentágono tenha recomendado um reforço em 4000.
“A estratégia anunciada, que nada tem de novo, parece um pouco míope”, diz o analista da FES. “Este conflito não pode ser resolvido apenas através de meios militares. Dizer ‘nós não vamos construir o Estado, vamos matar terroristas’” — palavras de Trump — “falha no reconhecimento de uma situação que é complexa e das realidades no terreno. Para evitar um novo aumento do extremismo violento e para combater efetivamente o terrorismo, o Afeganistão necessita de instituições fortes, de um governo nacional que demonstre ter os mesmos objetivos, órgãos de segurança menos corruptos e tribunais independentes.”
Quase 16 anos após o início da guerra no Afeganistão, que pagou a fatura do 11 de Setembro, seguem ali 8400 americanos
No discurso sobre o Afeganistão, Trump identificou o Paquistão e o seu jogo duplo — ora assumindo-se como parceiro do Ocidente no combate ao terrorismo ora fechando os olhos às movimentações dos talibãs e da rede Haqqani no seu território — como uma razão para a instabilidade no Afeganistão. “O Paquistão dá refúgio a agentes do caos, da violência e do terror”, disse Trump. “Ele é o primeiro Presidente dos EUA a criticar o Paquistão e a convidar a Índia a aumentar o seu envolvimento do Afeganistão”, diz Mirco Günther. “Dada a relação tensa entre esses dois países e as dinâmicas regionais, preocupam-me as repercussões do que pode ser uma mudança da política dos EUA para a Ásia do Sul. Pôr os países uns contra os outros não ajuda.”
Artigo publicado no “Expresso”, a 26 de agosto de 2017, e republicado no “Expresso Online”, no mesmo dia. Pode ser consultado aqui
A reunificação da península coreana está refém do desinteresse dos jovens e do abismo entre um Norte fechado e obcecado com o nuclear e um Sul moderno e desenvolvido. Reportagem na Coreia do Sul
É noite escura na praia de Gyeongpo e há fogo de artifício no ar. Nada de especial se celebra nesta cidade sul-coreana, Gangneung, mas é hábito entre os seus habitantes lançarem-se foguetes durante os passeios noturnos no areal. Um jovem casal faz um piquenique frugal próximo da linha de mar. Mais adiante, uma família delicia-se com as corridas de uma criança pequena com um palito de fogo de artifício na mão.
Não muito longe dali, no paredão de frente para a ponte iluminada, cinco rapazes estão em silêncio junto a tantas outras canas de pesca. No chão, um smartphone vai debitando uma suave música ambiente. Há também garrafas de refrigerante abertas e uma frigideira sobre um fogareiro para uma patuscada mais dali a pouco. São amigos e todos eles estudantes de língua e cultura alemã na Universidade de Gangwon. Aquela pescaria é a melhor forma de iniciarem as férias de verão.
Portugal fica longe, mas estes jovens não ficam indiferentes à nacionalidade de quem os interpela. “Oooh, Cristiano Ronaldooooo”, dizem vários descompassadamente. Começam a disparar conhecimentos sobre o futebol português, mas não se ficam pela bola. “Há tempos vi um filme sobre Portugal. Gostei muito”, diz um deles. Não se lembra do nome, mas é ágil a procurar a resposta no telemóvel. No ecrã surge o trailer de “Comboio Noturno Para Lisboa”.
Os jovens revelam mais interesse em falar de Portugal do que do futuro do seu país. E não se mostram especialmente entusiasmados perante a ideia da reunificação com o norte da península. “Não gosto dos norte-coreanos”, atira um de pronto, logo interrompido por outro: “São a nossa cultura! Mas são um bocado malucos, não confio neles”. Um terceiro faz a síntese: “Nós queremos a união, mas há uma grande diferença entre um país e o outro. Não funciona.”
Bibliografia sobre a Coreia do Norte, numa livraria de Seul MARGARIDA MOTA
Norte e sul-coreanos vivem separados há praticamente 70 anos. Hoje quase só os mais velhos sentem essa distância como uma ferida no coração. Para as gerações mais novas, a reunificação é um assunto longínquo, histórias de família que ouviram contar, mas que pouco ou nada mexem com as suas emoções. “É verdade que os mais jovens não se importam com a reunificação. Esse assunto interessa sobretudo aos mais velhos”, diz Kwan-Sei Lee, vice-diretor do Instituto de Estudos do Extremo Oriente, da Universidade de Kyungnam. “A educação e sensibilização dos mais jovens para a questão da reunificação tem sido uma preocupação. Para os mais jovens, o mais importante é irem para a universidade, formarem-se e arranjarem empregos bem remunerados.”
O ‘divórcio’ entre Norte e Sul iniciou-se em 1948 quando a península coreana, ocupada pelo Japão desde 1910, pagou a fatura da derrota nipónica na II Guerra Mundial e foi dividida em dois — a República Popular Democrática da Coreia (Norte) e a República da Coreia (Sul). Esse afastamento acentuou-se dois anos depois, com a Guerra da Coreia (1950-1953), que mergulhou a península no caos e condenou muitas famílias à separação total — nalguns casos, marido e mulher, proibidos de trocarem cartas, de se falarem ao telefone, mais ainda de se encontrarem cara a cara.
Corrida contra o tempo
Outrora 130 mil, hoje são pouco mais de 60 mil os sul-coreanos que, segundo o Ministério da Unificação, fazem parte de famílias divididas. Aguardam por um contacto com alguém que está no Norte ou, tão-somente, pela possibilidade de lá irem visitar a campa de um familiar que já partiu. Desses 60 mil, 63% têm mais de 80 anos. Anualmente, morrem à volta de 3000, o que torna esta questão uma corrida contra o tempo.
No passado, Norte e Sul já organizaram vários encontros de famílias divididas. São sempre momentos fortemente emotivos que indiciam um bom momento na relação entre os dois países. Talvez por isso, desde que Kim Jong-un foi entronizado Líder Supremo da Coreia do Norte, em finais de 2011, nenhum encontro se realizou. Desde 1948 que os Kim governam a Coreia do Norte ao estilo de uma república dinástica. O poder vai passando de pai para filho e o mandato só termina com a morte do titular: primeiro Kim Il-sung (de 1948 a 1994), depois Kim Jong-il (até 2011) e agora Kim Jong-un.
No país do qual pouco se sabe, mas que no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU de 2016 surge com uma esperança média de vida à nascença de 70,5 anos (contrastando com os 82,1 da Coreia do Sul), o poderio militar é cada vez mais sofisticado e ameaçador. “Kim Jong-un tem uma postura bastante diferente da do pai e do avô. Enquanto estes tinham alguma margem para negociar, ele acabou com a ambiguidade do programa nuclear norte-coreano reafirmando-o como um fim em si e não como uma moeda de troca”, explica Ko Yunju, vice-diretor-geral do Gabinete dos Assuntos do Nuclear Norte-Coreano, do Ministério dos Negócios Estrangeiros sul-coreano.
“Na revisão constitucional de 2012, Kim Jong-un introduziu a frase de que a Coreia do Norte é um ‘Estado com armamento nuclear’. Na carta do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte, também estipulou a Linha Política Byung-Jin que busca, simultaneamente, o desenvolvimento económico e a defesa nuclear. Ele está a acelerar o programa nuclear e a aproximar-se da fase final do desenvolvimento de armas nucleares.”
Quem anda pelas ruas de Seul à procura de um ambiente de tensão ou de indícios de um conflito iminente corre o risco de achar que se enganou no país. Não há outdoors com mensagens bélicas a demonizar o Norte nem avisos com instruções de “como agir” na eventualidade de Pyongyang disparar um míssil na direção do Sul. Mais depressa se encontram propostas de viagem até à fronteira com a Coreia do Norte.
Nos escaparates de uma pequena agência turística perto da Praça de Seul, não faltam brochuras de tours até à zona desmilitarizada (DMZ), a “terra de ninguém” com quase 250 quilómetros de comprimento (de costa a costa) e quatro quilómetros de largura e que é o símbolo do único país dividido e tecnicamente em guerra à face da Terra — entre Norte e Sul apenas foi assinado o armistício de Panmunjom, nunca um tratado de paz.
A partir de 38 dólares (32 euros), os programas proporcionam visitas, por exemplo, ao 3º Túnel, escavado pelos norte-coreanos após o armistício a pensar num ataque surpresa contra o Sul. Nalguns pontos, recorrendo a binóculos, é possível avistar o misterioso país com algum pormenor. Aquela que é a fronteira mais militarizada do mundo é um verdadeiro museu a céu aberto para turistas, com observatórios, túneis, memoriais, checkpoints e povoações com importância histórica. Desembolsando um pouco mais, há a possibilidade de alguns tours serem feitos na companhia de um desertor norte-coreano.
Se o leitor ficou curioso, o YouTube disponibiliza um vídeo da visita do comediante norte-americano Conan O’Brien à DMZ. Pesquise por “Conan Stars In North Korea’s First Late Night Talk Show”. Especialmente hilariante é a visita à sala de conferências na Zona de Segurança Conjunta, onde norte e sul-coreanos se encontram sempre que necessário e possível, e onde a linha de fronteira — o paralelo 38 — passa pelo centro da mesa colocada no meio da sala.
No exterior, separados por escassos metros, militares dos dois lados, falantes da mesma língua, não trocam palavra nem olhar. Numa cultura onde, como diz o professor Kim Seong-Kon, ex-reitor da Universidade Nacional de Seul, “se chora por tudo e por nada” — de felicidade, de tristeza, de raiva, de gratidão —, os sul-coreanos usam óculos escuros para esconder as emoções. E intimidar os do Norte.
Pensar numa Coreia unificada implica arranjar fórmula para ultrapassar o abismo Norte-Sul em matéria de dinâmica política e desenvolvimento social. Se, em Pyongyang, criticar as autoridades ou clamar por liberdades pode condenar quem o faz a trabalhos forçados, em Seul protesta-se “por tudo e por nada”.
No centro da capital sul-coreana, a Avenida Sejong é uma passarela para manifestações sobre os mais diversos assuntos, umas individuais outras coletivas, umas mediáticas outras mais discretas. Junto à estátua do rei Sejong — o monarca que reinou entre 1418 e 1450 e criou o hangeul, o alfabeto coreano —, um homem está só no seu protesto. Sentado no chão, não fala uma palavra que não seja coreano. “Não a Trump. Não ao THAAD”, lê-se num cartaz em inglês ao seu lado.
Para que a mensagem passe com clareza, puxa de um caderno e abre numa folha onde um texto manuscrito em inglês diz: “Os Estados Unidos deslocaram o THAAD para a Coreia do Sul ilegalmente. Dizem que é necessário para defender dos mísseis da Coreia do Norte. Mas, na verdade, visa atacar a Coreia do Norte. O THAAD provoca a guerra na Coreia. Nós queremos uma Coreia pacífica. Não queremos a instalação do THAAD”.
“Não a Trump. Não ao THAAD”, lê-se num dos cartazes deste manifestante solitário, no passeio da Avenida Sejong, em Seul MARGARIDA MOTA
THAAD é a sigla inglesa de Terminal de Defesa de Área de Alta Altitude e refere-se a um escudo antimíssil formado por radares de longo alcance e baterias de interceção de mísseis a grande altitude. Fabricado pela norte-americana Lockheed Martin, começou a ser instalado pelos EUA na Coreia do Sul no tempo da antiga Presidente Park Geun-hye (2013-2017) para defender o país de um eventual ataque do Norte.
Os sul-coreanos prezam a aliança com os norte-americanos, mas não a desejam a qualquer preço. Uma das primeiras medidas que Moon Jae-in ordenou após tomar posse como Presidente do país, a 10 de maio passado, foi suspender o processo de instalação do THAAD até à conclusão de um estudo de impacto ambiental. Porém, a recente batalha verbal entre Kim Jong-un e o homólogo norte-americano, Donald Trump, com ameaças de guerra de parte a parte, obrigou os sul-coreanos a fazerem cedências: o estudo ambiental continua, mas, dada a ameaça iminente de uma ação armada norte-coreana, o THAAD vai ser instalado na sua totalidade.
Continuando a descer a Avenida Sejong, a Praça Gwanghwamun — onde se ergue a estátua do mítico almirante Yi Sun-Sin — está ocupada por um conjunto de pequenas tendas pontiagudas que abrigam outro protesto ao estilo de uma exposição permanente. Aberta dia e noite, sete dias por semana, não deixa que uma grande tragédia recente caia no esquecimento: o naufrágio do ferry “Sewol”, a 16 de abril de 2014, onde morreram 304 pessoas, 250 das quais eram alunos e outros 11 professores na Escola Secundária Danwon, da cidade de Ansan. Iam numa viagem de férias para a ilha de Jeju.
Mais de três anos depois, há perguntas que continuam sem resposta relativas às razões do naufrágio e, sobretudo, do falhanço da operação de resgate. Jeong-yeon Lee, uma enfermeira de 50 anos, é voluntária, três dias por semana, numa das tendas da exposição. Tenta captar a atenção de quem passa e apela a que assine uma petição onde se pede uma investigação ao caso e a punição dos responsáveis. “Continuamos sem saber porque é que o ferry se afundou”, diz. “A guarda costeira resgatou a tripulação, não os passageiros. E a Presidente [Park Geun-hye] não deu qualquer ordem durante sete horas. Desapareceu!” Muitos cidadãos acusam a então chefe de Estado de obstrução às tentativas de investigação da tragédia.
Revolução das velas
Jeong-yeon Lee tem dois filhos adolescentes. “A maioria das vítimas é da idade deles. Ainda não apareceram cinco corpos. Encontrem-nos!”, exige com uma expressão de revolta. A enfermeira acredita que o novo Presidente, Moon Jae-in, um antigo advogado na área dos Direitos Humanos, vai levar o caso até às últimas consequências. “Ele prometeu!” Numa tenda ao lado, voluntários fazem pins em forma de laços amarelos, o símbolo da campanha. Noutra, forrada com as fotografias das vítimas, convida-se o visitante a entrar, a orar e a colocar uma flor sobre uma espécie de altar.
Memorial às vítimas do naufrágio do ferry “Sewol”, a 16 de abril de 2014, a esmagadora maioria delas estudantes MARGARIDA MOTA
Desde 14 de julho de 2014 que a Praça Gwanghwamun está ocupada por voluntários e familiares das vítimas do “Sewol”. Já fizeram greves de fome, marcharam até à Casa Azul (a sede da presidência sul-coreana), foram recebidos pela Papa Francisco quando da sua visita à Coreia do sul, em agosto de 2014, e alimentaram a Revolução das Velas, o maior movimento de contestação social da era democrática, que começou a “iluminar” a Coreia do Sul em finais de 2016.
Acusada de governar sob influência de uma guru e suspeita de receber dinheiro de grandes grupos industriais, a Presidente Park Geun-hye viu sair às ruas de todo o país, todos os sábados e durante semanas a fio, milhões de sul-coreanos com uma vela na mão. Acusavam a Presidente de estar a arruinar a democracia, permitindo que a sua amiga e confidente Choi Soon-sil interferisse em assuntos de Estado, e exigiam a sua demissão. Ela era também a odiada governante que falhara na gestão do naufrágio do “Sewol” e abrira as portas do país à instalação do polémico THAAD.
A contestação acabaria por levar à impugnação da Presidente no Parlamento, a 9 de dezembro de 2016, a um ano de terminar o mandato. Hoje está presa e a aguardar julgamento por abuso de poder, suborno e coerção. Se as gigantescas manifestações populares de junho de 1987 — sensivelmente a um ano dos Jogos Olímpicos de Seul — puseram fim à ditadura militar, forçando à realização de eleições democráticas, quase 30 anos depois milhões de sul-coreanos festejaram o impeachment de Park Geun-hye como um sinal de maturidade democrática.
Hoje, junto ao memorial às vítimas do “Sewol”, uma vela gigante feita de arame enfeitada com laços amarelos alude a esse movimento histórico. E inspira outras lutas sectoriais. É terça-feira e cerca de 8000 operários da construção civil seguem, avenida acima, na direção da Praça Gwanghwamun. Exigem que as empresas do sector contratem mais coreanos e não mão de obra ilegal. Vêm de todo o país. No final do dia, terminada a jornada de luta, espalham-se pelos espaços verdes e pelos passeios em cimento das imediações do Cheonggyecheon, o riacho urbanizado que atravessa o centro de Seul, e ali ficam a dormir ao relento. O regresso a casa fica para o dia seguinte.
Na Avenida Sejong, em Seul, uma vela gigante feita de arame e enfeitada com laços amarelos não deixa que a revolução das velas caia no esquecimento MARGARIDA MOTA
Quando reflete sobre a evolução democrática do seu país, o cientista político Yeonho Lee, diretor do Centro Jean Monnet, da Universidade de Yonsei, diz que lhe vem à mente a odisseia de Bartolomeu Dias por terras africanas, em busca do Preste João e do reino cristão. “O mesmo tipo de experiência se passa hoje na Ásia: os europeus estão a encontrar aqui os seus valores, o capitalismo de mercado e a democracia política”, diz.
“A Coreia do Sul conquistou a democracia e o crescimento económico num período de tempo muito curto. Só iniciámos o processo de modernização ao estilo ocidental em 1945, após libertarmo-nos da ocupação japonesa. Os valores europeus floresceram na Ásia Oriental.” No Índice de Democracia de 2015 da revista “The Economist”, a Coreia do Sul surgia em 22º lugar (Portugal era 33º). A nível económico, em 2016, tinha o 29º PIB per capita mais alto do mundo.
Arranha-céus na capital sul-coreana MARGARIDA MOTA
Em 30 anos de democracia, os primeiros 10 foram de transição. A partir de 1997, a Coreia do Sul começou a produzir bens de primeira classe e a esculpir marcas globais, como a Samsung (líder mundial no segmento dos smartphones), a KIA e a Hyundai, na área automóvel, e a LG Electronics, no sector dos equipamentos eletrónicos e eletrodomésticos. Estas marcas são a espinha dorsal de uma economia exportadora, que é membro do G20.
Internet, prós e contras
Mais do que um país que vive assustado pela iminência de um conflito com o Norte, a Coreia do Sul é um país que procura destacar-se fora de portas pela excelência. O aeroporto de Incheon foi considerado o melhor do mundo por 12 anos consecutivos. O país tem a internet mais rápida de todo o planeta e WiFi sem interrupções nas carruagens de metro. Em Seul, a existência de um Centro de Prevenção de Dependência da Internet revela, porém, que aceder à net com tanta facilidade e rapidez pode também ser fonte de problemas…
Se o leitor tem ativadas, no seu “smartphone, as notificações da CNN é possível que, em julho, tenha recebido uma sugestão de leitura intitulada “50 razões pelas quais Seul é a melhor cidade do mundo”. Da lista não constam, mas poderia, o cuidado na recolha de lixo e a disciplina dos cidadãos nas filas dos transportes públicos desta cidade onde vivem aproximadamente tantas pessoas como em Portugal.
Seis jovens viajam no metro de Seul, cada qual agarrado ao seu “smartphone” MARGARIDA MOTA
A mais de 10 mil quilómetros de distância, faltam pontes entre Portugal e a Coreia do Sul que ajudem a aproximar os povos e a esclarecer alguns equívocos, designadamente a perceção de muitos portugueses de que todos os sul-coreanos se chamam Kim… O exagero não é descabido. Segundo o professor Kim Seong-Kon, presidente do Instituto de Tradução de Literatura da Coreia e ex-reitor da Universidade Nacional de Seul, um quarto dos 50 milhões de habitantes do país chama-se, efetivamente, Kim. Há ainda muitos Lee e Park, sendo este último o nome mais comum, como é o caso do atual embaixador em Portugal, Park Chul-min.
Kim, Lee e Park são apelidos e não nomes próprios. De acordo com a tradição coreana, o nome de família vem em primeiro lugar. Colocado no fim, significa uma cedência à convenção ocidental, como é o caso de Ban Ki-moon, o ex-secretário-geral das Nações Unidas. Com o mesmo apelido, o Presidente Moon Jae-in segue a regra coreana.
Mas ainda que a questão dos nomes fique esclarecida, afinal, o que distingue verdadeiramente um coreano de um chinês ou de um japonês? “É verdade que aos olhos dos ocidentais todos os asiáticos parecem iguais”, explica o professor Kim Seong-Kon. “Para um ocidental é difícil distinguir o kung fu chinês do karate japonês ou do taekwondo coreano.
Mesmo os templos budistas dos três países parecem iguais. Nós partilhamos muitas coisas e temos muitas coisas em comum, no entanto há diferenças culturais. Diz-se, por exemplo, que a literatura chinesa é masculina, a japonesa feminina e a coreana fica no meio, metade masculina, metade feminina. Outra diferença: aquando dos protestos das velas, no centro de Seul para depor a Presidente, no ano passado, um milhão de manifestantes concentrou-se na Praça de Seul. No Japão, isso seria impensável. A sociedade coreana é muito orientada para os grupos, enquanto o Japão é um país individualista. Exemplo disso é a diferença entre os jogos solitários da japonesa Nintendo e os jogos de internet para vários jogadores em que os coreanos são muito bons.”
No início do século XX, após estalar a guerra russo-japonesa (1904-1905), o escritor e jornalista norte-americano Jack London aceitou cobrir o conflito para o jornal “San Francisco Examiner”. A passagem pela Ásia levou-o também à Coreia, onde não foi indiferente à tendência dos coreanos para os ajuntamentos: “Os coreanos parecem gostar de se reunir e assistir a espetáculos juntos. Quando há uma batalha entre as tropas japonesas e as tropas russas no seu solo, os coreanos fogem para a montanha, levando consigo magotes de refugiados. Em menos de meia hora, porém, eles voltam para assistir à batalha. Não iriam perder as cenas emocionantes.”
O Expresso viajou a convite da Korea Foundation
Artigo publicado na “E”, a 26 de agosto de 2017, e republicado no “Expresso Online”, a 3 de setembro de 2017. Pode ser consultado aqui
Trump disse que não afasta uma intervenção militar no país. Maduro pediu planos aos militares para quatro cenários
Investida a nova Assembleia Constituinte e acalmadas as ruas, o Presidente da Venezuela vira-se agora contra o homólogo norte-americano, Donald Trump, que recentemente não descartou uma intervenção militar dos EUA na Venezuela. “Pela primeira vez em 200 anos de República, um Presidente imperialista atreveu-se a ameaçar com um ataque militar”, disse, na quinta-feira, Nicolás Maduro durante uma reunião com generais do Exército, a quem pediu planos para quatro cenários possíveis de invasão norte-americana.
Maduro ordenou também um reforço da segurança junto à fronteira com a Colômbia. “Não podemos permitir uma única provocação, nem criar condições para que eles montem um falso positivo [do inglês “false flag”]”, isto é, um incidente forjado com o intuito, neste caso, de incriminar Caracas. No mesmo dia, pescadores do estado de Sucre (norte) participavam em exercícios militares, simulando um bloqueio ao canal de Guanta num cenário de “invasão imperialista”.
O cerrar fileiras de Caracas intensifica-se dentro de portas. Os sinais das estações colombianas Caracol Televisión e RCN foram eliminados esta semana da maioria dos canais por assinatura na Venezuela. “Enquanto jornalista, lamento muitíssimo o que se passou”, reagiu o Presidente colombiano, Juan Manuel Santos. “É mais uma demonstração por parte de um regime que não gosta de liberdades e que está a restringir as liberdades dos cidadãos.” Para o Nobel da Paz, Caracas “afastou-se do sistema democrático e atua, cada vez mais, como uma ditadura”.
Na Colômbia está refugiada a ex-procuradora Luisa Ortega, afastada por Maduro no início do mês e que diz ter em sua posse documentos que implicam o Presidente e dezenas de aliados em crimes de corrupção relacionados com a construtora brasileira Odebrecht. Esta semana, num encontro com procuradores brasileiros, em Brasília, Ortega entregou parte dos documentos, prometendo fazer o mesmo em Espanha, na Colômbia e nos EUA.
Os números da repressão
Ontem, a organização Foro Penal Venezolano divulgou um relatório sobre a repressão das manifestações. “De 1 de abril a 31 de julho, morreram 133 pessoas no contexto das manifestações. Destas, 101 foram assassinadas nos protestos. Houve pelo menos 4000 feridos e 5051 prisões arbitrárias.”
Um dos detidos, entretanto libertado, é Wuilly Arteaga, o violinista famoso por nunca parar de tocar durante os protestos. Em entrevista ao espanhol “El País”, disse que vai continuar a lutar nas ruas. “A Venezuela já não é uma democracia. Começaram a tirá-la de nós há 18 anos, quando Chávez chegou ao poder”.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de agosto de 2017. Pode ser consultado aqui
Uma semana após escreverem uma “carta aberta” a Donald Trump pedindo-lhe que retirasse as tropas do Afeganistão, os talibãs ouviram o Presidente dos EUA decidir exatamente o oposto — um reforço do contingente. “Enquanto houver um soldado norte-americano no nosso país, continuaremos a nossa jihad”, reagiu um porta-voz talibã
Donald Trump foi contido em pormenores no seu discurso sobre a nova estratégia dos Estados Unidos para o Afeganistão. Mas para os talibãs bastaram as linhas gerais. “Se a América não retirar as suas tropas do Afeganistão, em breve o Afeganistão tornar-se-á mais um cemitério para esta superpotência do século XXI”, ameaçou esta terça-feira Zabiullah Mujahid, porta-voz dos talibãs.
Os Estados Unidos estão militarmente envolvidos no Afeganistão desde outubro de 2001. Esta é, para os norte-americanos, a guerra mais duradoura de sempre. Presentemente, estão ali destacados cerca de 8400 militares norte-americanos. Sem adiantar números, Donald Trump anunciou que esse contingente irá ser reforçado — a imprensa fala em 3900 novos efetivos. “Um desperdício de vidas”, disse Zabiullah Mujahid. “Enquanto houver um soldado norte-americano no nosso país, continuaremos com a nossa jihad.”
Na semana passada, os talibãs tinham endereçado uma “carta aberta” ao Presidente dos Estados Unidos, denunciando que, ao fim de 16 anos de guerra — onde os EUA chegaram a ter destacados 100 mil militares —, “o Afeganistão tornou-se mais instável, mais corrupto e economicamente mais pobre”.
“A razão por detrás de tudo isto prende-se com a invasão estrangeira que está a ser usada para subjugar a vontade da nossa orgulhosa nação afegã. A nossa integridade nacional está a ser despojada e as chaves do poder estão a ser entregues a indivíduos cujos rostos estão entre aqueles que causam mais repulsa, os mais miseráveis e odiados na sociedade afegã dada a sua subserviência aos estrangeiros.”
Por tudo isto, na carta, os talibãs aconselhavam Trump a “adotar a estratégia de uma retirada completa do Afeganistão em vez de um aumento de tropas”.
Antes de ser eleito Presidente, Donald Trump sempre defendeu a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão. Chegado à Casa Branca, mudou de ideias, justificando que tal criaria um vácuo que seria imediatamente ocupado por grupos como a Al-Qaeda e o autodenominado Estado Islâmico (Daesh).
Quase 16 anos após o 11 de Setembro, a guerra desencadeada pelos EUA no Afeganistão — em legítima defesa contra o regime talibã que dava guarida à Al-Qaeda de Osama bin Laden — está, pois, longe do fim. A 13 de junho passado, o secretário norte-americano da Defesa, James N. Mattis, afirmava no Senado: Os EUA “não estão a ganhar no Afeganistão”. E acrescentava: “Vamos corrigir esta situação assim que possível”.
Segundo o último relatório trimestral do Inspetor Geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão (SIGAR), divulgado em inícios de agosto, dos 407 distritos afegãos, o Governo de Cabul controla apenas 59.7%. O restante território é controlado ou disputado por forças rebeldes, sobretudo pelos talibãs.
À AFP, um comandante talibã não identificado acusou Donald Trump de perpetuar o “comportamento arrogante” de alguns antecessores, como George W. Bush. “Ele está apenas a desperdiçar soldados americanos. Nós sabemos como defender o nosso país. Nada vai mudar. Temos travado esta guerra ao longo de gerações, não temos medo, estamos frescos e vamos continuar com esta guerra até ao nosso último suspiro.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de agosto de 2017. Pode ser consultado aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.