Os EUA vão enviar mais tropas para o Afeganistão. Os talibãs já prometeram fazer do país um cemitério para os norte-americanos

Em finais do século XIX, Eça de Queirós era um observador atento da guerra no Afeganistão. Em 1880, numa das “Cartas de Inglaterra” publicadas no “Diário de Notícias” escrevia o seguinte sobre a campanha militar dos ingleses no país: “No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes enérgicos, messias indígenas, vão percorrendo o território, e com grandes nomes de pátria, de religião, pregam a guerra santa: as tribos reúnem-se, as famílias feudais correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais juntam-se no ódio hereditário contra o estrangeiro, o ‘homem vermelho’, e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a estrada da Índia… E quando por ali aparecer, enfim, o grosso do exército inglês, à volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente por entre as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o. Foi assim em 1847, é assim em 1880.”
Senhores da Índia e temerosos do avanço da Rússia pela Ásia Central, os ingleses tentaram, por duas vezes, ocupar o Afeganistão — sem sucesso. No século seguinte, foi a vez de os soviéticos ocuparem o país durante 10 anos (1979-1989), de onde saíram sem honra nem glória. Hoje, são os norte-americanos que ali vivem dificuldades, não conseguindo colocar um ponto final àquela que já é a guerra mais duradoura em que se envolveram e onde chegaram a ter 100 mil efetivos.
O espírito indomável dos afegãos tem levado escritores e historiadores a referirem-se ao país como um “cemitério de impérios”. Esta semana, os talibãs recuperaram o termo para reagirem à nova estratégia dos EUA para o Afeganistão, anunciada, na terça-feira, por Donald Trump. “Se a América não retirar as suas tropas, em breve o Afeganistão tornar-se-á mais um cemitério para esta superpotência do século XXI”, ameaçou Zabiullah Mujahid, porta-voz dos “estudantes”.
Sem adiantar números nem se comprometer com prazos, o Presidente anunciou apenas que o contingente norte-americano vai ser reforçado. “Em termos gerais, é positivo que os EUA renovem o seu compromisso no Afeganistão”, comenta ao Expresso Mirco Günther, diretor para o Afeganistão da Fundação Friedrich Ebert (FES). Retirar as tropas, como Trump defendeu na campanha eleitoral, “teria sido uma decisão irresponsável”.
Fatura do 11 de Setembro
Quase 16 anos após o início da guerra no Afeganistão — país que pagou a fatura do 11 de Setembro —, seguem ali destacados 8400 norte-americanos. “The Wall Street Journal” diz que outros 3500 estão em missão temporária. E estima-se que o Pentágono tenha recomendado um reforço em 4000.
“A estratégia anunciada, que nada tem de novo, parece um pouco míope”, diz o analista da FES. “Este conflito não pode ser resolvido apenas através de meios militares. Dizer ‘nós não vamos construir o Estado, vamos matar terroristas’” — palavras de Trump — “falha no reconhecimento de uma situação que é complexa e das realidades no terreno. Para evitar um novo aumento do extremismo violento e para combater efetivamente o terrorismo, o Afeganistão necessita de instituições fortes, de um governo nacional que demonstre ter os mesmos objetivos, órgãos de segurança menos corruptos e tribunais independentes.”
Quase 16 anos após o início da guerra no Afeganistão, que pagou a fatura do 11 de Setembro, seguem ali 8400 americanos
No discurso sobre o Afeganistão, Trump identificou o Paquistão e o seu jogo duplo — ora assumindo-se como parceiro do Ocidente no combate ao terrorismo ora fechando os olhos às movimentações dos talibãs e da rede Haqqani no seu território — como uma razão para a instabilidade no Afeganistão. “O Paquistão dá refúgio a agentes do caos, da violência e do terror”, disse Trump. “Ele é o primeiro Presidente dos EUA a criticar o Paquistão e a convidar a Índia a aumentar o seu envolvimento do Afeganistão”, diz Mirco Günther. “Dada a relação tensa entre esses dois países e as dinâmicas regionais, preocupam-me as repercussões do que pode ser uma mudança da política dos EUA para a Ásia do Sul. Pôr os países uns contra os outros não ajuda.”
Artigo publicado no “Expresso”, a 26 de agosto de 2017, e republicado no “Expresso Online”, no mesmo dia. Pode ser consultado aqui
