O secretário-geral das Nações Unidas iniciou esta segunda-feira uma visita a Israel, de onde seguirá para o “Estado da Palestina”, conforme foi anunciado pela ONU. A visita serve para criar laços de confiança entre a organização e Telavive e Ramallah, já que de Washington ninguém sabe bem o que esperar
Desde que assumiu o mais alto cargo das Nações Unidas, António Guterres demorou mais de oito meses a visitar Israel e a Palestina, protagonistas de um conflito que se arrasta há décadas e que é tantas vezes identificado como o epicentro de tantas outras contendas na região do Médio Oriente. Até o seu avião aterrar no Aeroporto Ben Gurion, em Telavive, no domingo à noite, muitas outras latitudes em agonia tinham sido merecedoras de visitas prioritárias por parte do líder da ONU: Ucrânia, Somália, Afeganistão, Iraque, Turquia, Qatar, Uganda…
“Existe um grande número de crises regionais que requerem atenção, tempo, e meios financeiros, e o conflito israelo-palestiniano não tem sido uma prioridade dos maiores líderes mundiais”, comenta ao “Expresso” Bruno Oliveira Martins, investigador do Departamento de Estudos Políticos Globais, da Universidade de Malmö, na Suécia. “Até pelo seu perfil e pelo seu passado político, António Guterres tem levado a ONU a concentrar-se em questões relacionadas com refugiados e com outros conflitos regionais que, neste momento, grassam pelo Médio Oriente e África, e que requerem uma intervenção mais urgente.”
Guterres foi Alto Comissário da ONU para os Refugiados (ACNUR) entre 2005 e 2015, mas, nesse cargo, a questão dos refugiados palestinianos “passou-lhe ao lado”. Dada a dimensão e antiguidade do problema palestiniano, a ONU tem uma agência específica para lidar com ele, a UNRWA, criada em 1949, que apoia cerca de cinco milhões de refugiados palestinianos — mais de 800 mil residentes na Cisjordânia e 1,3 milhões na Faixa de Gaza, territórios que Guterres visitará amanhã e quarta-feira.
Guterres chega à região sem soluções milagrosas para o conflito. “É praticamente impossível a António Guterres conseguir um sucesso diplomático tangível nesta primeira visita à região”, continua o investigador português, que trabalhou como analista político da delegação da União Europeia em Israel, em 2008. “Poucas vezes na história recente, israelitas e palestinianos estiveram tão afastados entre si e as suas lideranças tão pouco comprometidas com a paz. A fasquia está tão baixa que qualquer eventual resultado positivo em relação ao ‘status quo’ será sempre altamente insuficiente.”
Rejeição inequívoca do antissemitismo
O périplo do líder da ONU começou, esta segunda-feira, em Jerusalém, com uma visita ao Yad Vashem, o Memorial do Holocausto. Guterres tem sido uma voz de denúncia do antissemitismo no mundo — fê-lo, inclusive, no seu manifesto de candidatura —, qualificando a negação do direito à existência do Estado de Israel como uma forma moderna do fenómeno.
“É interessante que Guterres aproveite a presença em Israel para sublinhar uma rejeição inequívoca e incondicional do antissemitismo, na sequência das manifestações de neonazis ocorridas nos EUA”, recorda Oliveira Martins. “Muitos israelitas, e judeus na diáspora, sentem uma grande inquietação em relação a esses desenvolvimentos nos EUA, sobretudo perante a falta de condenação por parte do Presidente Donald Trump.”
Disse Guterres: “O Yad Vashem é uma lembrança para todos nós de que nos devemos posicionar como pontas de lança no combate ao antissemitismo e contra todas as formas de racismo, quaisquer que elas sejam”.
(Conferência de imprensa de António Guterres
e do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em Jerusalém)
No seu encontro com o primeiro-ministro israelita, Guterres ouviu Benjamin Netanyahu identificar as principais ameaças que, hoje, Israel enfrenta enquanto Estado: o movimento xiita libanês Hezbollah e a Síria, instrumentalizados por um perigo maior: o Irão. “O Irão está muito ocupado a transformar a Síria numa base de fortificação militar, e quer usar a Síria e o Líbano como frentes de guerra ao serviço do seu objetivo declarado de erradicar Israel”, disse Netanyahu.
As Nações Unidas têm missões de paz junto aos dois países desde há décadas: a UNIFIL, na fronteira com o Líbano, desde 1978, e junto à Síria, nos Montes Golã, desde 1948. A 30 de agosto, o Conselho de Segurança votará a renovação do mandato da UNIFIL — atualmente com cerca de 10.500 capacetes azuis no terreno — por mais um ano.
Recentemente, a embaixadora dos Estados Unidos, Nikki Haley, acusou o comandante da missão, o general irlandês Michael Beary, de “cegueira” perante o que, disse, todos os outros conseguem ver no sul do Líbano: o tráfico de armas por parte do Hezbollah. “A guerra civil na Síria trouxe o caos para as fronteiras de Israel e as ramificações regionais são óbvias”, recorda Bruno Oliveira Martins. “Qualquer avanço nestas frentes será importante.”
A parcialidade da ONU
Nos próximos dias, a passagem de António Guterres pela Cisjordânia e por Gaza deverá mudar a agulha noticiosa desta visita para o conflito israelo-palestiniano. O processo de paz está totalmente paralisado e, à revelia de sucessivas condenações nas Nações Unidas, Israel prossegue com a sua política de construção de colonatos, designadamente expandindo colonatos já existentes.
“Aos olhos das fações mais radicais dentro do Governo de Netanyahu, a ONU sofre de um problema de credibilidade, uma vez que lhe é atribuída parcialidade na questão israelo-palestiniana e, mais importante, em tudo o que diz respeito a Israel”, diz Bruno Oliveira Martins. Poucas semanas após ter assumido o cargo, Guterres não escapou a uma grande polémica surgida após uma agência da ONU, a Comissão Económica e Social para a Ásia Ocidental (ESCWA), ter publicado um relatório em que qualificava de “apartheid” a política de Israel em relação aos palestinianos. Guterres ordenou que o documento fosse retirado do “site” da agência, o que lhe valeu muitas críticas e a demissão da chefe da ESCWA, a diplomata jordana Rima Khalaf.
“Este episódio ajuda a explicar por que é que a ONU não tem sido um ator central nos avanços diplomáticos mais importantes observados ao longo das últimas décadas. Ainda que o comportamento errático da Casa Branca abra, em teoria, uma janela de oportunidade para um maior papel da ONU, tal é praticamente impossível de acontecer — até porque a representante dos EUA junto da ONU [Nikki Haley] tem demonstrado um posicionamento ainda mais próximo de Israel que os seus antecessores.”
(Anúncio da viagem de António Guterres ao Kuwait, a Israel
e ao Estado da Palestina, lê-se no sítio do secretário-geral da ONU)
Quando amanhã pisar solo palestiniano, António Guterres leva consigo um legado político importante. A 29 de novembro de 2012, a Assembleia Geral da ONU aprovou, de forma esmagadora, a atribuição do estatuto de “Estado Observador Não-Membro” à Palestina.
Quase cinco anos depois, a forma como foi divulgada a viagem de Guterres pela comunicação das Nações Unidas e nas palavras do porta-voz de Guterres, Stephane Dujarric — “ao Kuwait, a Israel e ao Estado da Palestina” — não é equívoca quanto ao assunto, ainda que na prática seja pouco consequente.
“Esta visita é importante para estabelecer laços de confiança bilaterais entre a equipa de Guterres e os corpos diplomáticos israelitas e palestinianos”, conclui o investigador da Universidade de Malmö. “Os sinais vindos de Washington são altamente contraditórios, ninguém sabe bem o que esperar, pelo que algum tipo de liderança por parte da ONU ou mesmo da UE seria extremamente importante — ainda que improvável.”
(Imagem de abertura: “Paz”, em árabe e hebraico, entre as bandeiras de Israel e da Palestina MAKARISTOS / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 28 de agosto de 2017 e no “Expresso Online” no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui

