O atacante é um palestiniano de 37 anos com autorização de trabalho válida em comunidades israelitas. Em resposta, Israel ordenou a demolição da casa do homem, a anulação das autorizações de trabalho dos seus familiares e um bloqueio à aldeia onde vivia, e de onde agora só se sai “por razões humanitárias”
Três israelitas foram alvejados mortalmente, esta terça-feira de manhã, junto à entrada do colonato de Har Adar, no território palestiniano ocupado da Cisjordânia. As vítimas são um agente da polícia e dois seguranças. Um quarto homem, o coordenador da segurança daquele colonato, ficou gravemente ferido.
O atacante, abatido no local pelas forças de segurança, é um palestiniano de 37 anos, com quatro filhos, residente na aldeia vizinha de Bayt Surik, e com autorização de trabalho válida em comunidades israelitas. Segundo “The Times of Israel”, o homem já tinha trabalhado naquele colonato, situado próximo de Jerusalém.
Segundo o diário “Haaretz”, o ataque aconteceu durante os habituais procedimentos de segurança que antecedem a entrada matinal dos trabalhadores palestinianos nos colonatos. Interpelado pela polícia, junto ao portão das traseiras, o homem puxou de uma pistola que trazia escondida debaixo da camisa e abriu fogo.
O ataque não foi reivindicado, mas Hamas e Jihad Islâmica, organizações islamitas implantadas na Faixa de Gaza, o outro território palestiniano, saudaram-no. Para o Hamas, que controla Gaza desde meados de 2006, “o ataque terrorista na área de Jerusalém é um novo capítulo na ‘intifada Al-Quds’ [revolta de Jerusalém] que prova que todas as tentativas de judaização da cidade não alterará o facto de Jerusalém ser uma cidade árabe e islâmica”, disse o porta-voz Hazzam Qassam.
Após o ataque, o exército israelita impôs um bloqueio a Bayt Surik, a aldeia do atacante: os moradores podem entrar livremente na localidade mas apenas poderão sair “por razões humanitárias”. O primeiro-ministro israelita anunciou que a casa do atacante será demolida e que as autorizações de trabalho de familiares serão anuladas.
A questão dos colonatos é um dos principais contenciosos entre israelitas e palestinianos. Atualmente, mais de 600 mil judeus vivem em comunidades construídas na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, ambos ocupados por Israel na Guerra dos Seis Dias (1967). Os colonatos da Faixa de Gaza foram desmantelados em 2005. Ao abrigo do direito internacional, os colonatos são ilegais.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de setembro de 2017. Pode ser consultado aqui
O sonho tem séculos e os curdos não o esquecem. Esta segunda-feira realiza-se um referendo simbólico à independência daquele que é o maior povo sem Estado
Mapa do Curdistão iraquiano pintado com a bandeira curda WIKIMEDIA COMMONS
A independência do Curdistão é um tema recorrente na política internacional. Os curdos são o maior povo sem Estado em todo o mundo — 45 milhões, estima a Fundação-Instituto Curdo de Paris —, mas nunca viram concretizado o sonho de se governarem a si próprios. Recentemente, essa ambição voltou a ganhar palco após o protagonismo dos peshmergas (forças curdas iraquianas) no combate ao autodenominado Estado Islâmico (Daesh). Profissionais, disciplinados, bem equipados e com mulheres destemidas na linha da frente — na língua curda, “peshmergas” significa “aqueles que enfrentam a morte” —, destoaram das desorganizadas e, por vezes, medrosas tropas iraquianas contribuindo para o prestígio da nação curda.
Na próxima segunda-feira, o Governo Regional do Curdistão — que administra quatro províncias do norte do Iraque (Dohuk, Erbil, Sulaimaniyah e Halabja) — organiza um referendo visando “alcançar um objetivo sagrado, que é a independência”, prometeu o presidente curdo, Massoud Barzani, na quarta-feira, num comício em Sulaimaniyah, diante de 20 mil pessoas. A consulta decorrerá também nas zonas disputadas pelos curdos e por Bagdade, que chegaram a estar nas mãos do Daesh e agora são controladas pelos peshmergas (como Sinjar ou Kirkuk, esta rica em petróleo). O referendo não é vinculativo, mas conferirá legitimidade às autoridades curdas para exigirem a separação do resto do país.
“Os curdos são a quarta maior nacionalidade no Médio Oriente e uma das nações mais antigas do mundo. Distinguem-se de outras nacionalidades da região em todos os aspetos [desde logo, não são árabes, apesar de Saladino, o grande herói dos árabes, ser curdo, e têm língua própria]. Durante muito tempo, os curdos foram ofuscados pela sombra dos nacionalismos turco, persa e árabe. As potências internacionais devem aos curdos o fim dessas injustiças históricas que os marginalizaram”, diz ao Expresso Bashdar Ismaeel, analista político curdo a viver em Londres.
Em causa está um território onde vivem mais de cinco milhões de pessoas, maioritariamente curdos, mas também assírios, árabes, arménios, turcomentos, caldeus, iazidis… O Curdistão tem um Parlamento próprio, em Erbil (capital), e forças militares (peshmergas). O orçamento do Governo Regional é alocado pelo Governo federal iraquiano.
A autonomia foi conquistada em condições dramáticas após a Guerra do Golfo (1991), quando os Estados Unidos decretaram uma zona de exclusão aérea sobre o Curdistão para proteger os curdos dos bombardeamentos de Saddam Hussein. Hoje, o contexto é muito diferente. “Os curdos têm uma forte posição estratégica, são atores-chave em muitos conflitos no Médio Oriente e têm reservas de petróleo consideráveis que podem suportar um Estado.”
Efeito dominó nos países vizinhos
Um Curdistão independente amputaria o Iraque de parte importante do seu território e faria disparar os alarmes de um efeito dominó nos países vizinhos que têm minorias curdas, designadamente na Turquia, na Síria e no Irão. Os maiores receios sentem-se na Turquia, onde mais de 20% da população é curda e onde o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, separatista) é considerado uma “organização terrorista”.
“A Turquia pode tomar medidas contra o Governo Regional do Curdistão mas é pouco provável que use a força militar. A Turquia tem fortes laços geopolíticos e económicos com os curdos, especialmente devido ao oleoduto [Kirkuk-Ceyhan]. Quaisquer medidas destinadas a punir os curdos teriam um efeito de ricochete”, defende Bashdar Ismaeel, também colunista de publicações como Kurdistan 24 e Ekurd Daily.
MAPA WIKIMEDIA COMMONS (2008)
“O Curdistão tem ligações fortes a muitos países. Acabou de assinar um grande acordo [de exploração] de gás com a Rosneft, da Rússia. A Turquia devia saber que [a construção de] um oleoduto lucrativo seria um aval efetivo a uma eventual independência curda.”
Esta semana, num comício, o presidente curdo afastou o cenário de uma cisão violenta. “Estamos preparados para iniciar conversações sérias, muito amigáveis e honestas com Bagdade, com a comunidade internacional ou com o apoio da comunidade internacional. Se for necessário tempo, um ano ou dois, no máximo, resolveremos todos os problemas nesse tempo. E depois diremos ‘adeus’ de forma amigável”, disse. Esta sexta-feira, em entrevista ao britânico “The Guardian”, Massoud Barzani foi mais azedo, acusando o Iraque de ser “um Estado teocrático e sectário” e dizendo que o Parlamento iraquiano — que no dia 12 rejeitou o referendo curdo — “não é federal. É chauvinista e sectário. A confiança em Bagdade está abaixo de zero”.
“Os curdos têm repetido que querem um entendimento com Bagdade com base na diplomacia e no diálogo”, comenta Bashdar Ismaeel. “Eles já controlam o seu território. Se for usada a força, isso será orquestrado contra os curdos e não iniciado pelos curdos.”
Esta semana, em Nova Iorque, após discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas, o Presidente francês, Emmanuel Macron, disse que a França não se opõe ao referendo, mas… em vez de exigirem a independência, os curdos deveriam “pedir respeito e representatividade no Governo e na Constituição do Iraque para todas as minorias, em particular os curdos”.
Escaldados com a História, os curdos não estarão muito recetivos a conselhos ocidentais. Após a I Guerra Mundial, o Tratado de Sèvres (1920), entre Aliados e o derrotado Império Otomano, contemplou a criação de um Curdistão em território turco, deixando de fora os curdos do Irão, do Iraque (controlado pelos britânicos) e da Síria (tutelada pela França). Depois, o assunto foi silenciado.
“O Iraque ou os países ocidentais podem fazer pouco para impedir o Estado [curdo]”, conclui Bashdar Ismaeel. “Além do mais, é-lhes difícil justificar por que razão muitas nacionalidades puderam exercer o seu direito histórico [à autodeterminação] há mais de um século, mas não os curdos. Argumentam com o momento ou então com a possível desestabilização do Médio Oriente. Mas, como a liderança curda tem questionado de forma repetida, haverá alguma vez um bom momento para os curdos? E quando é que o Médio Oriente foi verdadeiramente estável?”, questiona. “Em todo o caso, a liderança curda não está a pedir apoio aos países ocidentais, apenas que não interfiram.”
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 22 de setembro de 2017. Pode ser consultado aqui
O secretário-geral das Nações Unidas visitou Israel e a Palestina. Disse o que pensa e partilhou um sonho…
“Perdão”, entre um árabe e um judeu CARLOS LATUFF
António Guterres demorou mais de oito meses a dar visibilidade a um dos conflitos mais duradouros e complexos do mundo. A falta de iniciativa por parte dos principais líderes mundiais em relação à questão israelo-palestiniana e a particular sensibilidade do secretário-geral das Nações Unidas para as crises humanitárias — foi alto-comissário da ONU para os Refugiados entre 2005 e 2015 — levaram-no, prioritariamente, a paragens tão ou mais dramáticas como Somália, Iraque, Afeganistão, Uganda ou Ucrânia. Esta semana, Guterres pôs Israel e a Palestina no mapa. No término de uma visita de três dias, as partes continuam distantes. Ficam os alertas do secretário-geral.
ANTISSEMITISMO
“O horror do Holocausto deveria ser tal que o antissemitismo deveria estar morto para sempre mas, infelizmente, vemo-lo vivo e de boa saúde”
De visita ao Yad Vashem, o Memorial do Holocausto, em Jerusalém, Guterres condenou o antissemitismo “em todas as suas formas de expressão”. “Fiquei chocado há pouco tempo ao ouvir um grupo neonazi num país desenvolvido a cantar ‘sangue e solo’, um slogan dos nazis”, disse na segunda-feira, aludindo aos protestos supremacistas de Charlottesville, nos Estados Unidos. No mesmo dia, ao lado de Reuven Rivlin, Presidente israelita, considerou a negação do direito à existência do Estado de Israel “uma forma moderna de antissemitismo”.
ONU E ISRAEL
“Os Estados-membros são soberanos. Definem as suas posições com base nos seus interesses, valores e convicções. Enquanto secretário-geral da ONU, é meu dever ser simultaneamente um intermediário honesto e mensageiro da paz. Ser um intermediário honesto significa ser imparcial”
Sucessivas resoluções condenatórias de Israel — na Assembleia Geral, em agências especializadas ou órgãos subsidiários da ONU, como a UNESCO ou o Conselho de Direitos Humanos — têm levado Telavive a acusar a organização de ser “tendenciosa”. As razões de queixa não se aplicam, porém, ao Conselho de Segurança onde Israel tem beneficiado do poder de veto dos EUA. Em Jerusalém, ao lado de Benjamin Netanyahu, Guterres afirmou o seu dever de equidistância — ainda que, às vezes, grandes polémicas o obriguem a tomar parte: em março, a Comissão Económica e Social para a Ásia Ocidental, da ONU, publicou um relatório em que qualificava de apartheid a forma como Israel trata os palestinianos. Guterres mandou retirar o documento do site.
AMEAÇA DO HEZBOLLAH
“Farei tudo o que estiver ao meu alcance para assegurar que a UNIFIL cumpra o seu mandato. Compreendo as preocupações em relação à segurança de Israel”
A guerra na Síria, e o papel que nela desempenha a milícia xiita libanesa Hezbollah, em apoio do Presidente Bashar al-Assad, acentuaram os alertas de perigo nas fronteiras norte e nordeste de Israel, junto ao Líbano e à Síria, respetivamente. Atentas às movimentações do Hezbollah, e temendo que armamento sofisticado dirigido ao teatro sírio caia “em mãos erradas”, as forças de defesa de Israel já visaram, por diversas vezes, posições dentro de território sírio. Há décadas que a ONU tem na área duas missões de paz: a UNIFIL, desde 1978, na fronteira com o Líbano; e a UNDOF, junto à Síria, nos Montes Golã, desde 1948. Estas missões em nada tranquilizam Israel que acusa a ONU de “fechar os olhos” ao trânsito de armamento. Na quarta-feira, o Conselho de Segurança da ONU renovou, por mais um ano, o mandato da UNIFIL (cerca de 11 mil capacetes azuis), solicitando a Guterres que tome medidas para tornar a presença da missão mais visível, através de patrulhas e inspeções.
ESTADO DA PALESTINA
“Não há plano B à solução de dois Estados’’
Na internet, o site do secretário-geral da ONU não deixa margem para equívocos: esta semana, António Guterres visitou o Kuwait, Israel e “o Estado da Palestina”. Aos olhos da organização universal, a Palestina é um “Estado Observador Não-Membro” desde 29 de novembro de 2012, dia em que a Assembleia Geral aprovou aquele estatuto de forma esmagadora. Em todo o mundo, são mais os países que reconhecem a independência da Palestina do que aqueles que ainda não o fizeram, mas estes são politicamente mais relevantes. Na terça-feira, em Ramallah, após visitar o túmulo de Yasser Arafat e inspirado em Martin Luther King, Guterres fez uma confissão: “Eu tenho um sonho, um sonho de ver na Terra Santa dois Estados.” Oficialmente, a fórmula de “dois Estados para dois povos” continua a ser defendida em Telavive e em Ramallah, ainda que a contínua construção de colonatos judaicos na Cisjordânia ocupada a inviabilize por completo.
COLONATOS
“A construção de colonatos, que é ilegal face ao direito internacional, é um obstáculo que necessita de ser removido”
No dia seguinte a terem-se reunido em Jerusalém, António Guterres e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, rumaram à Cisjordânia, separadamente. Em Ramallah, o secretário-geral da ONU condenou a política israelita de construção de colonatos. “Claro que há mais dificuldades e obstáculos. É importante criar as condições para que os líderes de ambos os lados apelem à calma, evitem o incitamento, para que a violência acabe”, disse, na terça-feira, ao lado de Rami Hamdallah, primeiro-ministro palestiniano. “Mas a construção de colonatos representa um grande obstáculo à solução de dois Estados.” Horas depois, Netanyahu discursava diante dos colonos de Barkan, no âmbito de uma cerimónia comemorativa do 50º aniversário da colonização da Judeia e Samaria (como em Israel se chama à Cisjordânia): “Estamos aqui para sempre. Não haverá mais evacuação de colonatos na terra de Israel.”
BLOQUEIO A GAZA
“Estou profundamente emocionado por estar em Gaza, infelizmente para testemunhar uma das crises humanitárias mais dramáticas que já vi em muitos anos de trabalho na área humanitária na ONU”
Guterres escolheu uma escola de Gaza, administrada pela UNRWA (a agência da ONU criada em 1949 para lidar com o problema dos refugiados palestinianos), para apelar à “abertura de fronteiras”. O território vive, desde 2007, um bloqueio por terra, mar e ar, imposto por Israel e pelo Egito, que condena a maioria da população a viver da ajuda da ONU. Em Gaza, Guterres ordenou o desbloqueio imediato de quatro milhões de dólares (€3,4 milhões) para as atividades da ONU e pediu à comunidade internacional para que participe na assistência humanitária ao território.
UNIDADE PALESTINIANA
“A divisão apenas mina a causa do povo palestiniano”
Ainda em Gaza, Guterres abordou o grande problema político que fragiliza os palestinianos: a divisão entre a Fatah e o Hamas. A primeira controla a Autoridade Palestiniana, que governa as áreas A e B da Cisjordânia (a área C está ocupada por Israel); o segundo, um movimento islamita, controla a Faixa de Gaza desde 2007, quando tomou o poder pela força, após ter ganho as legislativas e a vitória não ter sido reconhecida nem pela Fatah, nem por Israel, nem pela comunidade internacional. “Ontem estive em Ramallah [na Cisjordânia], hoje estou em Gaza. Ambas fazem parte da mesma Palestina”, disse Guterres.
“NO MEU PRÓPRIO PAÍS…”
Durante a visita, Guterres recordou momentos em que, em Portugal, se cruzou com o conflito israelo-palestiniano. Enquanto primeiro-ministro (1995-2002) e presidente da Internacional Socialista (1999-2005), “segui o processo de paz de muito perto, nas suas esperanças e frustrações”, disse no Museu Yasser Arafat. “Lembro-me de um encontro secreto, durante o Governo de Ariel Sharon, entre o vice-primeiro-ministro Shimon Peres e Yasser Arafat no meu gabinete de primeiroministro”, confidenciou junto a Netanyahu. Durante quatro horas, “testemunhei o compromisso deles com a paz e, ao mesmo tempo, as dificuldades desse compromisso”. Após condenar o antissemitismo, no Memorial do Holocausto, disse: “O meu próprio país também o viveu. Recordo o momento mais trágico de todos: a expulsão dos judeus no início do século XVI”.
Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de setembro de 2017
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.