O secretário-geral das Nações Unidas visitou Israel e a Palestina. Disse o que pensa e partilhou um sonho…

António Guterres demorou mais de oito meses a dar visibilidade a um dos conflitos mais duradouros e complexos do mundo. A falta de iniciativa por parte dos principais líderes mundiais em relação à questão israelo-palestiniana e a particular sensibilidade do secretário-geral das Nações Unidas para as crises humanitárias — foi alto-comissário da ONU para os Refugiados entre 2005 e 2015 — levaram-no, prioritariamente, a paragens tão ou mais dramáticas como Somália, Iraque, Afeganistão, Uganda ou Ucrânia. Esta semana, Guterres pôs Israel e a Palestina no mapa. No término de uma visita de três dias, as partes continuam distantes. Ficam os alertas do secretário-geral.
ANTISSEMITISMO
“O horror do Holocausto deveria ser tal que o antissemitismo deveria estar morto para sempre mas, infelizmente, vemo-lo vivo e de boa saúde”
De visita ao Yad Vashem, o Memorial do Holocausto, em Jerusalém, Guterres condenou o antissemitismo “em todas as suas formas de expressão”. “Fiquei chocado há pouco tempo ao ouvir um grupo neonazi num país desenvolvido a cantar ‘sangue e solo’, um slogan dos nazis”, disse na segunda-feira, aludindo aos protestos supremacistas de Charlottesville, nos Estados Unidos. No mesmo dia, ao lado de Reuven Rivlin, Presidente israelita, considerou a negação do direito à existência do Estado de Israel “uma forma moderna de antissemitismo”.
ONU E ISRAEL
“Os Estados-membros são soberanos. Definem as suas posições com base nos seus interesses, valores e convicções. Enquanto secretário-geral da ONU, é meu dever ser simultaneamente um intermediário honesto e mensageiro da paz. Ser um intermediário honesto significa ser imparcial”
Sucessivas resoluções condenatórias de Israel — na Assembleia Geral, em agências especializadas ou órgãos subsidiários da ONU, como a UNESCO ou o Conselho de Direitos Humanos — têm levado Telavive a acusar a organização de ser “tendenciosa”. As razões de queixa não se aplicam, porém, ao Conselho de Segurança onde Israel tem beneficiado do poder de veto dos EUA. Em Jerusalém, ao lado de Benjamin Netanyahu, Guterres afirmou o seu dever de equidistância — ainda que, às vezes, grandes polémicas o obriguem a tomar parte: em março, a Comissão Económica e Social para a Ásia Ocidental, da ONU, publicou um relatório em que qualificava de apartheid a forma como Israel trata os palestinianos. Guterres mandou retirar o documento do site.
AMEAÇA DO HEZBOLLAH
“Farei tudo o que estiver ao meu alcance para assegurar que a UNIFIL cumpra o seu mandato. Compreendo as preocupações em relação à segurança de Israel”
A guerra na Síria, e o papel que nela desempenha a milícia xiita libanesa Hezbollah, em apoio do Presidente Bashar al-Assad, acentuaram os alertas de perigo nas fronteiras norte e nordeste de Israel, junto ao Líbano e à Síria, respetivamente. Atentas às movimentações do Hezbollah, e temendo que armamento sofisticado dirigido ao teatro sírio caia “em mãos erradas”, as forças de defesa de Israel já visaram, por diversas vezes, posições dentro de território sírio. Há décadas que a ONU tem na área duas missões de paz: a UNIFIL, desde 1978, na fronteira com o Líbano; e a UNDOF, junto à Síria, nos Montes Golã, desde 1948. Estas missões em nada tranquilizam Israel que acusa a ONU de “fechar os olhos” ao trânsito de armamento. Na quarta-feira, o Conselho de Segurança da ONU renovou, por mais um ano, o mandato da UNIFIL (cerca de 11 mil capacetes azuis), solicitando a Guterres que tome medidas para tornar a presença da missão mais visível, através de patrulhas e inspeções.
ESTADO DA PALESTINA
“Não há plano B à solução de dois Estados’’
Na internet, o site do secretário-geral da ONU não deixa margem para equívocos: esta semana, António Guterres visitou o Kuwait, Israel e “o Estado da Palestina”. Aos olhos da organização universal, a Palestina é um “Estado Observador Não-Membro” desde 29 de novembro de 2012, dia em que a Assembleia Geral aprovou aquele estatuto de forma esmagadora. Em todo o mundo, são mais os países que reconhecem a independência da Palestina do que aqueles que ainda não o fizeram, mas estes são politicamente mais relevantes. Na terça-feira, em Ramallah, após visitar o túmulo de Yasser Arafat e inspirado em Martin Luther King, Guterres fez uma confissão: “Eu tenho um sonho, um sonho de ver na Terra Santa dois Estados.” Oficialmente, a fórmula de “dois Estados para dois povos” continua a ser defendida em Telavive e em Ramallah, ainda que a contínua construção de colonatos judaicos na Cisjordânia ocupada a inviabilize por completo.
COLONATOS
“A construção de colonatos, que é ilegal face ao direito internacional, é um obstáculo que necessita de ser removido”
No dia seguinte a terem-se reunido em Jerusalém, António Guterres e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, rumaram à Cisjordânia, separadamente. Em Ramallah, o secretário-geral da ONU condenou a política israelita de construção de colonatos. “Claro que há mais dificuldades e obstáculos. É importante criar as condições para que os líderes de ambos os lados apelem à calma, evitem o incitamento, para que a violência acabe”, disse, na terça-feira, ao lado de Rami Hamdallah, primeiro-ministro palestiniano. “Mas a construção de colonatos representa um grande obstáculo à solução de dois Estados.” Horas depois, Netanyahu discursava diante dos colonos de Barkan, no âmbito de uma cerimónia comemorativa do 50º aniversário da colonização da Judeia e Samaria (como em Israel se chama à Cisjordânia): “Estamos aqui para sempre. Não haverá mais evacuação de colonatos na terra de Israel.”
BLOQUEIO A GAZA
“Estou profundamente emocionado por estar em Gaza, infelizmente para testemunhar uma das crises humanitárias mais dramáticas que já vi em muitos anos de trabalho na área humanitária na ONU”
Guterres escolheu uma escola de Gaza, administrada pela UNRWA (a agência da ONU criada em 1949 para lidar com o problema dos refugiados palestinianos), para apelar à “abertura de fronteiras”. O território vive, desde 2007, um bloqueio por terra, mar e ar, imposto por Israel e pelo Egito, que condena a maioria da população a viver da ajuda da ONU. Em Gaza, Guterres ordenou o desbloqueio imediato de quatro milhões de dólares (€3,4 milhões) para as atividades da ONU e pediu à comunidade internacional para que participe na assistência humanitária ao território.
UNIDADE PALESTINIANA
“A divisão apenas mina a causa do povo palestiniano”
Ainda em Gaza, Guterres abordou o grande problema político que fragiliza os palestinianos: a divisão entre a Fatah e o Hamas. A primeira controla a Autoridade Palestiniana, que governa as áreas A e B da Cisjordânia (a área C está ocupada por Israel); o segundo, um movimento islamita, controla a Faixa de Gaza desde 2007, quando tomou o poder pela força, após ter ganho as legislativas e a vitória não ter sido reconhecida nem pela Fatah, nem por Israel, nem pela comunidade internacional. “Ontem estive em Ramallah [na Cisjordânia], hoje estou em Gaza. Ambas fazem parte da mesma Palestina”, disse Guterres.
“NO MEU PRÓPRIO PAÍS…”
Durante a visita, Guterres recordou momentos em que, em Portugal, se cruzou com o conflito israelo-palestiniano. Enquanto primeiro-ministro (1995-2002) e presidente da Internacional Socialista (1999-2005), “segui o processo de paz de muito perto, nas suas esperanças e frustrações”, disse no Museu Yasser Arafat. “Lembro-me de um encontro secreto, durante o Governo de Ariel Sharon, entre o vice-primeiro-ministro Shimon Peres e Yasser Arafat no meu gabinete de primeiroministro”, confidenciou junto a Netanyahu. Durante quatro horas, “testemunhei o compromisso deles com a paz e, ao mesmo tempo, as dificuldades desse compromisso”. Após condenar o antissemitismo, no Memorial do Holocausto, disse: “O meu próprio país também o viveu. Recordo o momento mais trágico de todos: a expulsão dos judeus no início do século XVI”.
Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de setembro de 2017
