Curdos perdem petróleo de Kirkuk para as tropas de Bagdade

O exército iraquiano recuperou o controlo dos campos petrolíferos de Kirkuk. Estavam nas mãos dos curdos, que os tinham conquistado aos jiadistas do Daesh

As tropas iraquianas assumiram esta terça-feira o controlo de todos os campos de exploração de petróleo operados pela empresa estatal North Oil Company, na região de Kirkuk.

As infraestruturas, bem como toda a cidade, estavam nas mãos dos peshmergas (forças curdas iraquianas), que a tinham reconquistado aos jiadistas do autodenominado Estado Islâmico (Daesh).

Os curdos não ofereceram qualquer resistência ao avanço das tropas de Bagdade, apoiadas no terreno por milícias xiitas.

Esta terça-feira, as autoridades de Bagdade fizeram saber que a produção de petróleo naquela zona do norte do Iraque está a decorrer com normalidade e sem interrupções.

Esta ofensiva militar, ordenada pelo Governo central, foi iniciada no domingo à noite e justificada com a necessidade de garantir a integridade territorial iraquiana. No passado dia 25, um referendo na região do Curdistão pronunciou-se, esmagadoramente, pelo “sim” à secessão.

Nas últimas horas, a conta do primeiro-ministro iraquiano no Twitter tem enumerado vários telefonemas internacionais recebidos por Haider al-Abadi, em apoio da unidade iraquiana e contra o referendo curdo. O último foi do ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de outubro de 2017. Pode ser consultado aqui

Exército iraquiano em marcha para reconquistar Kirkuk aos curdos

Três meses após o referendo à independência do Curdistão, apoiado por uma esmagadora maioria, Bagdade lança uma operação militar para recuperar Kirkuk, cidade conquistada pelos curdos aos jiadistas do Daesh. Rica em petróleo, Kirkuk é um pilar fundamental de um eventual Curdistão independente

O exército iraquiano tem em curso uma grande ofensiva militar visando a reconquista, aos peshmergas (curdos iraquianos), da cidade de Kirkuk — região rica em petróleo e um dos pilares económicos de um futuro Curdistão independente.

A operação desenvolve-se em várias frentes e as forças federais contam com o apoio das Forças de Mobilização Popular Iraquianas (também conhecidas como Hashd al-Shaabi), maioritariamente xiitas.

“O Presidente [curdo Massoud] Barzani ordenou a todas as unidades peshmergas que não iniciem a guerra, mas se alguma milícia avançar e começar a disparar, então os peshmergas têm luz verde para usar todo o poder para resistir”, anunciou, no Twitter, Hemin Hawrami, assistente do Presidente curdo.

Segundo a Al-Jazeera, esta segunda-feira, os militares iraquianos controlavam já o aeroporto internacional da cidade, um campo petrolífero, uma base militar (K1) e a localidade de Taza Khormatu, a sudeste de Kirkuk.

O jornal digital Kudaw acrescenta que o grupo Hashd al-Shaabi cortou a eletricidade para tentar tomar o controlo das posições dos peshmergas. E, na sua conta no Twitter, divulgou um vídeo onde se vê soldados iraquianos a arriarem a bandeira do Curdistão e a içarem a iraquiana, momentos após entrarem em Kirkuk.

Em Kirkuk, vivem cerca de um milhão de pessoas, maioritariamente curdas, mas também árabes, turcomenas e cristãs. Segundo o jornal curdo Kudaw, o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, nomeou, esta segunda-feira, um árabe (Rakan al-Jbourri) como novo governador de Kirkuk.

Bloqueio ao Curdistão

Esta operação militar arranca três semanas após um referendo à independência do Curdistão, aprovado por 92,73% dos votos expressos, ao qual as autoridades de Bagdade responderam decretando um bloqueio àquela região autónoma do norte do Iraque.

“É meu dever constitucional trabalhar em benefício dos cidadãos e da proteção da nossa unidade nacional que ficou ameaçada de fragmentação em resultado do referendo organizado pela região curda”, afirmou, esta segunda-feira, o primeiro-ministro Haider al-Abadi. “O referendo realizou-se numa altura em que o país está a combater o terrorismo do Daesh. Tentamos incitar [os curdos] a não violarem a Constituição e a concentrarem-se na luta contra o Daeh, mas eles não ouviram… Sobrepõem os seus interesses pessoais aos interesses do Iraque.”

Os curdos, o maior povo sem Estado do mundo, sonham com a independência há séculos. As suas forças armadas — profissionais, disciplinadas, bem equipadas e com mulheres destemidas na linha da frente — foram fundamentais para a derrota do autodenominado Estado Islâmico (Daesh) no Iraque.

Em língua curda, “peshmerga” significa “aquele que enfrenta a morte”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de outubro de 2017. Pode ser consultado aqui

Dormir, comer e patinar

A patinagem artística portuguesa está de boa saúde e Ricardo Pinto é um dos seus maiores expoentes. Regressado do Mundial com uma medalha de ouro ao pescoço, o atleta de Leça do Balio desvenda a intensidade do seu treino. E partilha a sua paixão por uma modalidade que é muito mais do que um (simples) desporto

Ricardo Pinto, campeão do mundo 2017 em patinagem artística, na vertente de Solo Dance LUCÍLIA MONTEIRO

Há dez anos apenas, Ricardo Pinto era um jovem praticante de patinagem artística entusiasmado com a sua primeira chamada a um estágio da modalidade. Tinha 14 anos e já levava nove de aulas sobre patins — sem grandes objetivos ou ambições. Há pouco mais de um mês, este patinador de 24 anos saboreou, pela segunda vez, a conquista de um título mundial em séniores.

“Foi tudo muito rápido”, admite. “Quando comecei na patinagem, não sonhava que ia ganhar títulos mundiais. Fui praticando e os resultados foram aparecendo. A partir do meu primeiro estágio, ganhei um pouco mais de consciência acerca do que poderia acontecer. Pensei: ‘Quero ir a um Distrital’. Ganhei o meu primeiro Distrital e disse: ‘Fogo, quero ganhar o Nacional’. Ganhei o Nacional e… ‘Quero ir lá fora’. Concretizava um objetivo e logo surgia outro.”

Aos poucos, atinge um nível de excelência com que muitos sonham e poucos conseguem alcançar. Ironia das ironias, a patinagem entrara na sua vida — tinha ele cinco anos — um pouco por arrasto… “A minha irmã mais velha tinha um problema nos joelhos e o médico aconselhou-a a praticar patinagem para fazer correção. A minha mãe tinha vontade que eu praticasse um desporto e, por uma questão prática, colocou-me na patinagem também.”

Tudo se passa em Leça do Balio, no concelho de Matosinhos, onde Ricardo ainda vive e treina, na associação desportiva Rolar Matosinhos, uma espécie de segunda casa. É lá que o Expresso o encontra, num período de pausa dos seus treinos, três semanas após ter conquistado o título de campeão em Solo Dance, nos Mundiais de Nanjing (China), a 6 de setembro passado.

No início, cai-se muito

As férias de Ricardo são só aparentes, já que o atleta reserva alguns fins de tarde por semana para treinar os mais jovens. Na pista do pavilhão, acompanha-os com o olhar, persegue-os de patins, corrige movimentos, acode a quem cai desamparado na pista. “No início, cai-se muitas vezes”, diz. Talvez por isso, a patinagem não o tenha conquistado de imediato. Mas a mãe foi insistindo e ele foi ficando.

A primeira internacionalização — dedicava-se ele ainda à vertente de Pares de Dança (mais tarde optaria pela de Solo Dance) — surge em 2009. No ano seguinte, participa pela primeira vez num Campeonato do Mundo. E em 2011, conquista as primeiras medalhas de ouro: uma na Taça da Europa (que hoje corresponde ao Campeonato da Europa), outra no Campeonato do Mundo de júniores. O primeiro ouro num Mundial de séniores não tarda: conquista-o em 2015, em Cali (Colômbia).

Este ano, à partida para Nanjing, confessa, levava na mala o objetivo do primeiro lugar. “O título de 2015 foi um pouco inesperado. Mas, este ano, foi um objetivo definido entre mim e o meu treinador. Eu disse-lhe que queria lutar pelo primeiro lugar e ele disse-me que esse era um objetivo que ele tinha para mim. E conseguimos concretiza-lo.”

https://www.facebook.com/watch/?v=1437397496296788&t=0

VÍDEO FIRS (FÉDÉRATION INTERNATIONALE ROLLER SPORTS)

Após ser campeão do mundo, pela primeira vez, o atleta diz que repetir o feito não foi, por isso, mais fácil. “Muito pelo contrário! A cada ano que passa, a patinagem fica mais exigente, como é normal. E depois de se ganhar uma vez, as pessoas ficam à espera de mais. Sente-se uma pressão muito grande. E quando não se corresponde, não é fácil de digerir… Por incrível que pareça, manter é mais difícil do que chegar lá.”

Dada as características da patinagem artística que, para além da competição desportiva, tem inerente uma componente de espetáculo, — “a mistura do desporto com a arte”, como se lê no sítio da Federação Portuguesa de Patinagem —, os treinos são complexos. “Há uma parte física em que fazemos trabalho de cardio, no ginásio. Mais ou menos hora e meia todos os dias. Depois, há o trabalho técnico, com os patins”, com os treinadores que, para além das correções técnicas, escolhem as músicas e vão montando as coreografias. “Este ano, só de patins, trabalhamos cerca de três horas por dia: uma para a dança obrigatória, outra para a ‘style dance’ e outra para a dança livre”, os três estilos obrigatórios no programa individual.

Tudo somado, o título mundial “custou” a Ricardo Pinto mais de quatro horas por dia de dedicação à patinagem. “Fora o tempo que ficamos a praticar sozinhos”, acrescenta. “Se não me sentir cansado, prolongo um pouco o treino para interiorizar melhor o que estive a fazer com o meu treinador e mecanizar as correções.”

Em casa, também se treina. Descansa-se, física e psicologicamente, uma componente fundamental do treino, visiona-se vídeos, a pensar nas coreografias, e experimenta-se movimentos de sapatilhas calçadas, para depois ver como sai em patins. “Tentamos sempre inovar, de umas coreografias para as outras, e também transpor alguma coisa que já seja segura. Normalmente, há um elemento que consideramos a nossa imagem de marca e que tentamos sempre reproduzir.” A de Ricardo é um pião vertical no calcanhar. “O primeiro patinador a apresentar esse pião foi o meu treinador, depois passou-o a mim.”

https://www.facebook.com/watch/?v=1439165269453344&t=0

VÍDEO FIRS (FÉDÉRATION INTERNATIONALE ROLLER SPORTS)

Os triunfos na patinagem não dão azo a compensações financeiras, mas a recompensas emocionais que ficam para a vida. “Estar no pódio e ouvir o hino do nosso país a ser tocado por nossa causa faz-nos ver que todo o trabalho que desenvolvemos — todo o sofrimento, dores e chatices — valeu a pena.”

A omissão de Marcelo

Do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que não costuma falhar nestas ocasiões, Ricardo não recebeu qualquer felicitação. Não valoriza a omissão. Congratula-se com a presença de alguns órgãos de informação à chegada dos patinadores nortenhos ao Aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto. “Há uns anos, não havia nada daquilo, quase nem havia pessoas a esperar-nos. Não temos a projeção de outros desportos e temos resultados muito melhores. Se os grandes clubes de futebol tivessem secções de patinagem, se calhar teríamos uma projeção diferente, mas penso que não é uma condição necessária para que a modalidade continue a crescer.”

Ricardo não consegue falar do seu percurso sem constantemente mencionar e dividir os louros com os treinadores que o têm acompanhado: no início Pedro Craveiro, atualmente Hugo Chapouto, de 32 anos, também ele bicampeão (europeu e mundial) em Solo Dance, em 2009 e 2010.

Ao treinador cabe o enorme desafio de continuar motivar o atleta, dois títulos mundiais depois. “Eu arranjo muita motivação nas coreografias que faço”, diz Ricardo. “Como são diferentes todos os anos e, ainda por cima, este ano, mudou o sistema de ajuizamento, arranjo muito incentivo nas coisas novas. Motiva-me aprendê-las e, depois, surpreender quem as vê.”

“O Ricardo é o exemplo de como se deve encarar o desporto e que não é necessariamente a busca da medalha ou de um reconhecimento”, explica o treinador. “É a entrega e a conquista — no dia a dia, passo a passo — de pequeninas vitórias sobre si mesmo. Ele é a prova de que quando nós nos focamos naquilo que são as nossas conquistas, e trabalhamos as nossas debilidades, atingimos o nosso potencial máximo. Os campeões são aqueles que conseguem demonstrar o seu potencial máximo e não, necessariamente, aqueles que estão melhor.”

Hugo Chapouto, o treinador de Ricardo Pinto, foi o primeiro campeão do mundo da história da patinagem portuguesa LUCÍLIA MONTEIRO

“O truque do nosso trabalho”, continua Chapouto, “é o espírito de partilha por parte de um atleta que consegue dividir a pista com milhentos atletas sem problema, que recebe de braços abertos jovens que chegam à categoria máxima, e que passam a competir com ele, sempre numa perspetiva solidária. E que consegue perceber que todos os dias tem de se superar, tem de sacrificar alguma coisa, e que está nesse crescimento constante.”

O elixir do Rolar

Hugo é treinador no Rolar Matosinhos desde 2010. Nos Mundiais de Nanjing, marcaram presença sete atletas desta associação, todos em Solo Dance. O pior resultado que obtiveram foi… o quarto lugar. No total, a participação portuguesa saldou-se por três ouros, três pratas e dois bronzes.

“No Rolar, não há nenhum elixir que brota das águas e que faz com que estes atletas sejam todos talentosíssimos e campeoníssimos”, comenta o treinador. “A metodologia de trabalho baseia-se na partilha, no espírito de sacrifício e no trabalho que depois é recheado com o talento de cada um.” Chapouto diz que na fórmula “99% de trabalho e 1% de talento” prioriza o trabalho. “Só quando ambas as potencialidades estão no máximo é que aquele 1% de talento vai fazer a diferença.”

No ranking das nações que melhor patinam, a Itália é a superpotência. Na China, Ricardo Pinto bateu o pé à armada italiana: Daniel Morandin foi segundo e Alessandro Spigai quarto. Fechou o pódio, com a medalha de bronze, o português Pedro Walgode, também ele atleta do Rolar.

“Treinamos ao mesmo tempo”, diz Ricardo. “É uma competição saudável. Com ele desenvolvi um laço de amizade. Muitas vezes as coisas estão a correr mal e é ele que me dá força para continuar a treinar. Não é bem uma competição direta. Sofro muito quando ele está a competir. Muita gente não compreende como é que eu não torço para que ele falhe… Eu, para ganhar, não gosto que os outros falhem ou que as coisas não lhes corram bem. Gosto de ganhar com mérito e não pensar que só ganhei porque a outra pessoa falhou.”

Depois do ouro nos Mundiais de Cali (2015) e de Nanjing (China), Ricardo Pinto está já de olho no próximo campeonato, marcado para Nantes (2018) LUCÍLIA MONTEIRO

Ricardo Pinto divide tempo e energia entre a patinagem e os estudos na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. “Tento ser bom aluno, mas reconheço que não sou tão bom como poderia ser. Dedico muito tempo à patinagem e, quando me sinto cansado, os estudos ficam um pouco de parte.”

Enquanto estudante universitário, beneficia do estatuto de atleta de alto rendimento. “Tenho a possibilidade de escolher as minhas aulas práticas, o que me possibilita montar o meu próprio horário, de acordo com os treinos da patinagem. E tenho a facilidade de, quando falto às aulas por causa das competições, as justificações da Federação serem aceites” pelos serviços académicos.

Sente falta, porém, de um acompanhamento diferente por parte dos docentes. “Falta um pouco de compreensão e de proximidade. Se eu me dirigir a um professor, sou tratado como um aluno regular. Compreendo que não pode haver uma valorização entre alunos, mas pelo menos alguma tolerância em relação a prazos, por exemplo. É útil termos as faltas justificadas, mas quando falhamos aulas, a lacuna em termos da matéria que se perdeu fica sempre lá.”

Ricardo estuda Biologia. Os animais são uma paixão que o acompanha desde criança, dos micróbios às girafas. “A minha profissão de sonho é trabalhar num zoo, como se vê na televisão, a cuidar dos tigres.” Quando se imagina na idade adulta, a Biologia é a área que quer exercer. “Gostava de fazer investigação”, diz. “Passamos pelo menos um quarto da nossa vida a estudar. Espero conseguir retirar alguma coisa da minha vida académica.”

Quanto à patinagem, nunca a vai querer largar — como atleta de um grupo, como treinador, como juíz, as opções são múltiplas.

Ricardo Pinto concilia a prática da patinagem com os estudos de Biologia, na Faculdade de Ciências do Porto LUCÍLIA MONTEIRO

Exclusivamente dedicado à patinagem, o treinador Hugo Chapouto viaja pelos quatro cantos do mundo, como membro de instituições internacionais e consultor de várias federações. Diz que, em Portugal, “a patinagem está de muito boa saúde”. Nos últimos dez anos, o número de praticantes aumentou bastante, em 2015 a patinagem foi reconhecida como modalidade no Desporto Escolar e, cada vez mais, a prática desportiva no país é encarada com maior seriedade.

Por avaliar está a influência da telenovela argentina “Soy Luna” (Disney Channel) na popularidade da patinagem entre os adolescentes portugueses… Na série, a jovem Luna Valente adora cantar e sonha em ser patinadora profissional. Ricardo garante que foi importante para levar alguns jovens a experimentar os patins.

“Quando comecei a praticar, aos sete anos de idade, os nossos sonhos eram muito limitados à partida”, diz Hugo Chapouto. “Não se sonhava em conquistar uma medalha num campeonato internacional. Hoje, qualquer atleta que nos aparece já ouviu falar num campeão do mundo ou da Europa. E são tantos aqui no Rolar.”

Apesar da falta de reconhecimento público dentro de portas, Portugal tem-se afirmado como uma potência internacional da patinagem artística. “A Itália não compete com ninguém, está claramente na liderança. Depois há três países mais ou menos em igualdade de circunstâncias: Portugal, Espanha e a Argentina”, diz Chapouto.

“Portugal não tem um problema em relação à patinagem, mas antes um problema de cultura desportiva. Ainda valorizamos unicamente o resultado e não o percurso. Infelizmente, os nossos jovens têm uma aproximação ao desporto que é: ‘Eu quero ser como a estrela que vejo na televisão’. E deveria ser: ‘Eu gostava de executar aquilo, gostava de jogar como aquelas pessoas’. Esse é o nosso défice.” De resto, tudo sobre rodas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de outubro de 2017. Pode ser consultado aqui

Diálogo Fatah-Hamas começa a dar frutos

O processo de reconciliação nacional entre as principais fações políticas palestinianas, em curso no Egito, começa a produzir resultados. Esta quinta-feira, foi anunciada a obtenção de um primeiro acordo

Fatah e Hamas, as principais fações políticas palestinianas, desavindas há dez anos, alcançaram um primeiro acordo, no âmbito do diálogo de reconciliação a decorrer no Cairo, anunciou, esta quinta-feira, o líder dos islamitas, em comunicado. “Fatah e Hamas alcançaram um acordo ao amanhecer, sob o generoso patrocínio do Egito”, disse Ismail Haniyeh.

Uma fonte que pediu anonimato adiantou à agência noticiosa Associated Press que, ao abrigo desse acordo, forças da Autoridade Palestiniana (AP) — dominada pela Fatah e liderada pelo Presidente Mahmud Abbas — irão assumir o controlo do posto fronteiriço de Rafah, entre Gaza e o Egito. Do lado egípcio, a Península do Sinai tornou-se um porto de abrigo de grupos terroristas, pelo que, para as autoridades do Cairo, é urgente mais segurança e colaboração do lado de Gaza.

Detalhes sobre o acordo — que abordou questões civis, administrativas e de segurança interna — foram remetidos para uma conferência de imprensa, a ser realizada por representantes das duas fações, ainda esta quinta-feira.

Dossiês importantes como a formação de um governo de unidade nacional e o futuro das forças armadas afetas ao Hamas foram remetidos para uma nova ronda de conversações. “A próxima fase da reconciliação será um encontro entre representantes de todas as fações palestinianas no Cairo para discutir os grandes assuntos nacionais, tais como o braço armado do Hamas, a questão das armas e dos cargos políticos”, confirmou Hazem Qassem, porta-voz do Hamas.

Este entendimento entre a Fatah e o Hamas é o culminar de um processo de aproximação iniciado no mês passado, quando o Hamas (que governa a Faixa de Gaza) aceitou ceder poderes à AP (que controla a Cisjordânia). Na semana passada, foi dado um passo de gigante no sentido da criação de confiança entre as partes quando a AP realizou a sua reunião semanal não em Ramallah, como habitualmente, mas na cidade de Gaza.

Independentemente do seu desfecho, estas conversações poderão, a curto prazo, contribuir para aliviar a situação de penúria que afeta a população de Gaza. Nos últimos meses, muita da pressão exercida pela AP sobre o Hamas — para que ceda o poder no território — tem passado por medidas punitivas do quotidiano dos locais. Uma delas passou por pedir a Israel a redução do fornecimento de energia elétrica ao território — que, neste momento, não excede as quatro horas diárias. Outra foi o corte salarial dos funcionários da AP a residir em Gaza.

A disputa entre Fatah e Hamas remonta a 2007 quando os islamitas tomaram o poder pela força em Gaza. No ano anterior, tinham vencido as legislativas palestinianas, resultado que não foi reconhecido internacionalmente. Desde então, sucessivas tentativas de reconciliação nacional não produziram resultados, contribuindo para manter a Palestina dividida em dois territórios (Cisjordânia e Faixa de Gaza) e dois poderes (AP/Fatah e Hamas).

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de outubro de 2017. Pode ser consultado aqui

Um Nobel da Paz que embaraça os senhores do mundo

Atribuído à Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares, o Nobel da Paz deste ano não desencadeou polémicas. Um analista português do Instituto de Investigação para a Paz de Oslo leu o prémio nas entrelinhas e explica por que o considera “altamente político” e uma derrota para a política externa portuguesa

Encontro de voluntários da ICAN, realizado em Londres, a 6 e 7 de julho de 2015 ICAN

A atribuição de um Nobel da Paz a causas — e não tanto a personalidades — isenta a escolha, normalmente, de grandes críticas e polémicas. Foi o que aconteceu este ano com a distinção da Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (ICAN), uma organização não governamental com sede em Genebra e parceiros em mais de 100 países. Limpar o mundo de um poder tal, mortífero e destruidor, não pode, humanamente, merecer objeções. Mas…

“Apesar de ser tentador pensar que este é um daqueles Nobel que nos provoca boas sensações, em que se premeia uma ONG sem entrar em polémicas com os Estados mais poderosos, interpreto este Nobel como sendo altamente político”, comenta ao “Expresso” Bruno Oliveira Martins, investigador no Instituto de Investigação para a Paz de Oslo (PRIO). “Envia uma mensagem forte a todos aqueles que foram e são responsáveis pelo contexto internacional em que estamos. Pela primeira vez em muitos anos, um conflito nuclear internacional não parece totalmente impossível.”

https://twitter.com/nuclearban/status/883362944456810497

Nos últimos meses, dois assuntos competem perigosamente para pôr o mundo à beira de um ataque de nervos. Por um lado, a crescente tensão no Pacífico, com a Coreia do Norte a testar, com regularidade, armas nucleares cada vez mais potentes e ameaçadoras, e a retórica entre Pyongyang e Washington a ganhar contornos cada vez mais belicistas.

Este sábado, recorrendo ao Twitter, Donald Trump deitou mais lenha para a fogueira: “Os Presidentes e os seus governos andam há 25 anos a falar com a Coreia do Norte, foram feitos acordos e pagas grandes quantidades de dinheiro… e não funcionou, os acordos foram violados antes da tinta secar, fazendo de tolos os negociadores dos Estados Unidos. Desculpem, mas só uma coisa vai resultar!”

Um segundo tema quente é a incerteza quanto ao futuro do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, alcançado em Viena, a 14 de julho de 2015 e assinado pelo P5+1 (EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha) e pelo Irão. Esta semana, durante uma sessão fotográfica, na Casa Branca, com responsáveis militares, com quem se reuniu, Donald Trump afirmou, de forma enigmática, diante dos repórteres: “Vocês sabem o que é que isto representa? Talvez a calma antes da tempestade…”

Apesar da insistência dos jornalistas, o Presidente dos EUA não concretizou a que se referia, mas não faltou quem recordasse que a 15 de outubro a Administração norte-americana tem de certificar o cumprimento do acordo por parte de Teerão — um procedimento que se repete a cada 90 dias. Se a Casa Branca concluir pelo incumprimento, poderá haver lugar à reintrodução de sanções económicas ao Irão por parte do Congresso.

Boicote ao Tratado

“É inevitável pensar que entre os visados por este Nobel está, em primeiro lugar, Donald Trump e a sua Administração absolutamente errática e irresponsável”, refere o investigador português. “Trump está a criar instabilidade e imprevisibilidade nos dois cenários internacionais com mais potencial para conflito: Coreia do Norte e Irão. Naturalmente que as provocações principais surgem da Coreia do Norte, mas é verdade que essas provocações sempre existiram e sempre foram geridas de forma a conter a ameaça, não a potenciá-la.”

Um segundo alvo deste Nobel, para este analista, são os países que “boicotaram” o Tratado para a Proibição de Armas Nucleares, aprovado a 7 de julho passado, nas Nações Unidas. O documento, que resultou do trabalho da ICAN, passou com os votos de 122 países — nenhum deles detentor de ogivas nucleares, nenhum deles membro da NATO… “A palavra é mesmo boicote, porque, com a exceção da Holanda, que votou contra, todos esses Estados estiveram ausentes da votação”, diz Bruno Oliveira Martins.

Para além de estar ausente da votação, Portugal não participou nas negociações do Tratado, uma posição antecipada a 23 de dezembro de 2016, quando votou contra a resolução 71/258 da Assembleia Geral da ONU, que estabeleceu o mandato para os países negociarem o Tratado. Portugal argumenta que “as armas nucleares dos Estados Unidos são essenciais à sua segurança”, lê-se no sítio da ICAN. Esta posição é partilhada por outros 29 países, na sua esmagadora maioria membros da NATO. “Há que dizê-lo claramente que este Nobel vai explicitamente contra uma opção de política externa portuguesa”, comenta o investigador.

https://twitter.com/antonioguterres/status/916267044353474560

No sítio da ICAN, lê-se que o Tratado entrará em vigor assim que 50 países o ratifiquem. Até ao momento, foi assinado por 53 países e ratificado por apenas três, uma meta insuficiente para que possa aumentar a pressão sobre o “clube do nuclear” — sejam os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (EUA, Rússia, China, Reino Unido e França) sejam países como Índia, Paquistão e Israel, detentores de arsenais atómicos e que nunca assinaram o Tratado de Não Proliferação Nuclear, em vigor desde 1970.

Tratado e Nobel são, por isso, instrumentos importantes para a cruzada anti-nuclear. “Obrigam a que haja um maior debate interno nos Estados e que a questão do desarmamento nuclear abandone o nicho das ONG pacifistas e entre na esfera da política real.”

O investigador do PRIO recorda que, no passado, esta fórmula já deu frutos. A 10 de outubro de 1997, a Academia Nobel atribuiu o galardão da Paz à Campanha Internacional para a Eliminação de Minas. Menos de dois meses depois, era assinado o Tratado de Otava, que entraria em vigor em 1999. “Gerou-se um grande consenso em torno de uma oposição incondicional às minas pessoais”, recorda o analista. “No caso do nuclear, estamos muito longe disso, mas este passo é importante.”

Yes, I CAN

A viver em Oslo, Bruno Oliveira Martins conhece de perto o trabalho do braço norueguês da ICAN e, através dele, a própria organização. “Julgo que a questão mais interessante em torno da ICAN é a estratégia e a lógica intelectual seguida para atingir os objetivos. A argumentação da ICAN tem a ver não com considerações geostratégicas ou geopolíticas, mas com princípios humanitários relacionados com o caráter arbitrário e desproporcional dos danos causados pelas armas nucleares.”

O investigador realça o facto da ICAN ser um movimento das bases, que emerge do seio da sociedade civil. “Está nos antípodas da política das grande potências que normalmente envolve as questões nucleares. É um movimento amplo, aberto, baseado em ONG e em muito voluntariado por parte de pessoas que efetivamente acreditam nesta causa e que entregam as suas vidas à luta por um mundo sem armas nucleares.

Subtilmente, a sigla, em inglês, ICAN tem um apelo implícito a esse voluntarismo e contributo individual: “i can” (eu posso, em inglês).

“Em vários países da NATO, sendo ou não potências nucleares — incluindo aqui na Noruega —, o trabalho desta organização, e dos seus parceiros, é sujeito a grandes pressões e críticas por parte dos governos nacionais, que os consideram idealistas e, por vezes, demagogos e populistas. Por tudo isso”, conclui, “este Nobel é efetivamente político.”

Artigo publicado no Expresso Online, a 8 de outubro de 2017. Pode ser consultado aqui