Internacional 2017: as voltas que o mundo (nos) deu

Nas previsões que o Expresso fez, no início de 2017, em matéria de política internacional, não previmos a imprevisibilidade de Donald Trump — uma personalidade que marcou o ano, mas não o esgotou

Ao tentarmos antecipar 2017, insistimos em questões que praticamente desapareceram dos noticiários — como Ucrânia e Cuba — e ignoramos problemas e personalidades que acabaram por marcar a agenda — como a Coreia do Norte e Emmanuel Macron. De resto, fizemos leituras certeiras sobre a Europa, o Médio Oriente e a América Latina. E preocupamo-nos com um possível genocídio, ainda que tenhamos errado a coordenada geográfica.

TRUMP VAI CUMPRIR O PRIMEIRO ANO DE MANDATO?
A dúvida prendia-se mais com a aparente impreparação do magnata para liderar o país mais influente do mundo do que por suspeitas de que algo extraordinário pudesse afastar Donald Trump da Casa Branca, como “uma tragédia, atentado ou outro acontecimento dramático”, escrevemos. Mas indícios de que a eleição de Trump pode ter beneficiado, decisivamente, de um conluio entre membros da sua campanha e personalidades próximas do Kremlin cobriram o seu primeiro ano de mandato com um manto de suspeição. Com uma investigação à possível interferência da Rússia nas presidenciais de 2016 a decorrer em Washington, a pergunta transita para 2018, com uma ligeira adaptação: vai Trump cumprir o segundo ano de mandato?

MERKEL SERÁ REELEITA?
Defendemos que sim, e assim foi. A 24 de setembro, a chanceler alemã foi reeleita para um quarto mandato. Mas tal como previmos também, a incógnita seria com quem formaria coligação. Já lá vão mais de três meses e a Alemanha continua sem governo. Abortadas as negociações com Verdes e liberais (a chamada coligação Jamaica), em janeiro Merkel tentará convencer Martin Schulz (Partido Social-Democrata) com as suas propostas.

XENOFOBIA CRESCE NA UE?
Achamos que poderia haver um “reforço dos discursos xenófobos” na Europa. Um dos barómetros a que podemos recorrer para perceber se assim foi é o desempenho de partidos nacionalistas e de extrema-direita em atos eleitorais, em que muitos se consolidaram como forças políticas de voto. Se, em França, Marine Le Pen (Frente Nacional) falhou a presidência, na Alemanha a extrema-direita, através da Alternativa para a Alemanha, entrou no Parlamento pela primeira vez desde a II Guerra Mundial. E na Áustria, o Partido da Liberdade da Áustria entrou para a coligação de governo liderada pelo conservador Partido Popular. Em Viena, a pasta dos Negócios Estrangeiros, do Interior e da Defesa, estão nas mãos da extrema-direita.

QUEM LIDERA A ESQUERDA EUROPEIA?
A esquerda europeia continua sem um timoneiro, situação acentuada com a saída de cena de François Hollande, em França. A dissolução do Parlamento italiano, esta semana — e, consequentemente, o fim do executivo liderado por Paolo Gentiloni (Partido Democrático, centro-esquerda) —, abre as portas ao regresso de Silvio Berlusconi (direita), nas eleições que se seguirão. Se assim for, Portugal e a sua fórmula original de governo — a qual, na Europa, ninguém fica indiferente, mas que ninguém consegue replicar — continuará só na aposta à esquerda.

VAI MESMO HAVER UM BREXIT?
Apesar de destacadas personalidades britânicas, como o ex-primeiro-ministro Tony Blair, insistirem que é possível reverter o Brexit, o processo segue no sentido do divórcio. No início do ano, elencamos obstáculos que poderiam dificultar a saída do reino Unido da UE — processos judiciais, a reação da Escócia, a fronteira entre as duas Irlandas e o perigo do reacendimento da violência sectária. Mas, por enquanto, nem Londres pede a Bruxelas para ficar, nem Bruxelas pede a Londres que fique. Este será, com toda a certeza, um dos assuntos de 2018.

TENSÃO VOLTA AO LESTE DA UCRÂNIA?
Para Moscovo, projetar forças na Ucrânia e na Síria, simultaneamente, seria um esforço hercúleo, refletimos no início do ano. O tempo demonstraria que a prioridade da Rússia seria a Síria — o regime de Bashar al-Assad e, principalmente, a manutenção daquela posição estratégica no Mediterrâneo. A 11 de dezembro, Vladimir Putin foi à Síria dizer “missão cumprida” e anunciar o regresso a casa das tropas russas. Para seguirem para a Ucrânia, em apoio dos separatistas pró-Rússia

MAIS ATENTADOS NA EUROPA?
“A Europa é o alvo apetecível dos jiadistas do Daesh, cada vez mais acossados na Síria e no Iraque”, escrevemos no início do ano. Os factos confirmaram-no e ditaram que o Reino Unido foi o principal alvo, com cinco atentados em Londres (dois deles sobre as pontes de Westminster e de Londres) e um em Manchester, visando crianças e jovens que tinham acabado de assistir ao concerto de Ariana Grande. Em Espanha, 13 anos depois de Madrid, foi a vez de Barcelona ser atingida no coração, as Ramblas.

COMO EVOLUIRÁ A GUERRA NA SÍRIA?
Apesar do Daesh estar praticamente derrotado, a Síria continua longe da paz, com partes do território em posse dos rebeldes e Bashar al-Assad impiedoso, como desde o início, em relação ao seu próprio povo. “O país está feudalizado e o ditador depende cada vez mais da Rússia e do Irão”, projetamos. A Rússia está de saída da Síria. O aumento do protagonismo do Irão tem agitado Israel. Irá a guerra na Síria evoluir para um conflito regional pós-Daesh?

É DESTA QUE O DAESH É DESTRUÍDO?
Era uma morte anunciada no início do ano, sem se concretizar, porém, à custa de muito sangue — em batalhas no Médio Oriente (nas cidades iraquiana de Mossul e síria de Raqqa) e em atentados no Ocidente. Mais do que uma organização, com liderança e operacionais armados, o Daesh é, cada vezes mais, uma mundividência que conquista seguidores onde o Estado falha — como na desmembrada Líbia, no abandonado Sinai ou no cobiçado Afeganistão. Em Cabul, esta semana, o Daesh matou 40 pessoas num centro cultural xiita

MARINE VAI SER PRESIDENTE DE FRANÇA?
Com o Brexit e a vitória de Trump, o contexto internacional éra-lhe favorável como nunca, escrevemos. A líder da Frente Nacional (extrema-direita) chegou à segunda volta das presidenciais, mas perdeu o centrista Emmanuel Macron, um candidato em quem poucos apostavam, incluindo o Expresso. Enquanto, na Alemanha, angela Merkel tarda em organizar a casa, é Macron que surge como o novo homem forte da Europa.

CRISE DOS REFUGIADOS CONTINUA?
A chegada de barcos às costas europeias deixou de ser notícia, mas é contínua. A situação nos países de origem da maioria dos refugiados e demandantes de asilo — Síria, Afeganistão, Iémen, Somália — continua sem melhoras e, na Europa, as ilhas gregas continuam a transbordar de gente desesperada, sobretudo menores. Hoje, como no início do ano, “tem falhado a recolocação dos refugiados acolhidos por Itália e Grécia nos restantes países da União”. Um problema sem fim a vista que envergonha o Velho Continente.

PROCESSO DE PAZ VOLTA À PALESTINA?
“Dificilmente”, escrevemos, porque, então como hoje, tudo o que acontece unilateralmente envolvendo israelitas e palestinianos tem sempre um reverso. Se 2016 terminou com uma condenação histórica de Israel no Conselho de Segurança da ONU — os EUA de Barack Obama não vetaram a resolução 2334 considerando os colonatos uma “violação” do direito internacional —, este ano termina com um bálsamo para o Governo israelita. Os EUA de Donald Trump reconheceram Jerusalém como capital de Israel. Se o processo de paz já estava morto, agora ficou enterrado.

GUTERRES DÁ NOVA VIDA À ONU?
Vontade não lhe faltará, mas, como recordamos há um ano, “o cargo de secretário-geral não é executivo, pelo que exigir resultados a Guterres em dossiês complicados é um exercício teórico”. Para agravar, os EUA, que são o principal doador, está “em guerra” com a organização. Cabe a Guterres tentar contrariar essas adversidades — as limitações do cargo e a inimizade do país mais influente do mundo — com o seu humanismo.

VENEZUELA PODE IMPLODIR?
O recente caso do pernil de porco comprado a Portugal e que nunca chegou à Venezuela — que levou Nicolás Maduro a acusar Lisboa de tentativa de sabotagem do Natal dos venezuelanos — prova como, para o Presidente, acenar com “o papão do inimigo externo” continua a ser uma arma. Há um ano prevíamos que “ou Maduro reforma ou o país implode”. Este ano, da Venezuela, chegaram indícios no sentido da implosão: confrontos sangrentos nas ruas de Caracas entre populares e agentes da autoridade, cenas de disputa por comida, decisões políticas ao estilo de uma ditadura.

TEMER MANTÉM-SE NA PRESIDÊNCIA?
O Presidente do Brasil “sobreviveu” aos problemas com a justiça, como o prevíamos, mas não convence os brasileiros, a menos de um ano das eleições presidenciais de 7 de outubro. Condenado por corrupção em primeira instância, o ex-Presidente Lula da Silva lidera as sondagens, estando ainda a sua candidatura dependente dependente da decisão da segunda instância.

COMO SERÁ CUBA PÓS-FIDEL?
Cuba foi mais um dos alvos de Trump, que “prometeu cancelar o acordo que abre caminho ao fim do embargo à ilha”, alertamos. O anúncio de que Raúl Castro não será candidato às presidenciais do próximo ano adia eventuais mudanças.

EDUARDO DOS SANTOS SAI MESMO DO PODER?
A palavra “mesmo” na pergunta revela a recorrência com que, a cada novo ano, a saída de “Zedu” do poder era uma expectativa que não se confirmava. No início de 2017, garantia que não voltaria “a candidatar-se à presidência do partido”, mas fe-lo “mesmo” em relação á liderança do país também. O seu sucessor, João Lourenço, entrou de rompante, afastando familiares de cargos públicos e substituindo as chefias militares — um “terramoto político”, chamou-lhe o Expresso. 2018 ditará com que resultados.

PODE HAVER UM GENOCÍDIO NO SUDÃO DO SUL?
Em pleno século XXI, onde tudo na vida parece estar “à distancia de um clique”, falar de genocídio parece algo medieval. No início do ano, colocamos o foco sobre o Sudão do Sul. “O genocídio espreita, como alerta a ONU: violência descontrolada, violações em massa”, escrevemos. Mas foi em Myanmar (antiga Birmânia) onde esses receios se concretizaram, visando a minoria muçulmana. Pelas piores razões, ficamos a saber que o budismo também tem um lado negro e aprendemos a pronunciar uma palavra difícil — rohingya.

GUERRA CIVIL NA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO?
É um barril de pólvora que, quando explode, contamina tudo à volta, como aconteceu no final dos anos 90. O Presidente Joseph Kabila recusa-se a sair do poder (constitucionalmente deveria tê-lo feito em 2016) e o escrutínio para eleger um sucessor foi adiado para o final de 2017 e depois para 23 de dezembro de 2018. “O risco de conflito é alto”, escrevemos e reafirmamos.

GUERRA NO MAR DO SUL DA CHINA?
“A China não vai abdicar da hegemonia sobre recifes e atóis estratégicos nesta zona do Pacífico”, escrevemos. Essa pretensão, numa área abundante em disputas territoriais, contribui para uma permanente tensão. Mas se, em 2017, falou-se de guerra no Pacífico tal deveu-se às ambições nucleares da Coreia do Norte. Diante da Assembleia Geral da ONU, Donald Trump prometeu “destruir totalmente a Coreia do Norte”. Este será um dos temas quentes do ano que se avizinha.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 29 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui

“Sou sempre culpado, até prova em contrário”

É uma voz incómoda para Israel, que já o prendeu dezenas de vezes, mas também para a Autoridade Palestiniana, que recentemente o manteve detido seis dias. Issa Amro é um dos ativistas palestinianos mais carismáticos e corajosos. Esta terça-feira, foi ouvido num tribunal militar israelita. “Querem prender-me por resistir à ocupação pacificamente”

Issa Amro, ativista palestiniano residente em Hebron KEVIN SNYMAN / WIKIMEDIA COMMONS

Issa Amro é um ativista palestiniano que não passa despercebido às forças israelitas que ocupam o território da Cisjordânia. A casa onde vive, na área de Tel Rumeida, em Hebron, fica paredes meias com um colonato problemático, onde uma pequena comunidade de judeus radicais vive protegida por militares israelitas em maior número. E fazem o que querem.

À casa de Issa — onde funciona a organização Juventude Contra os Colonatos (YAS), que fundou — rumam, diariamente, ativistas, jornalistas, políticos e diplomatas de todo o mundo, incluindo de Israel, para ouvirem, na primeira pessoa, como se (sobre)vive numa cidade onde vigora uma situação de “apartheid” que, aos poucos, vai vencendo a população palestiniana pelo cansaço. Mas não Issa.

O Expresso visitou-o em março de 2013. Os colonos tinham acabado de tentar incendiar-lhe a casa, pela calada da noite. “Apresentei queixa. Foi a quarta vez, mas nunca acontece nada. Sou sempre culpado até prova em contrário”, disse este defensor da resistência pacífica e da desobediência civil.

Esta terça-feira, Issa (Jesus, em árabe), de 37 anos, compareceu diante de um tribunal militar israelita, na prisão de Ofer (na Cisjordânia), para responder por 18 crimes, alguns deles praticados em 2010. (A acusação foi formulada apenas em 2016.) Entre as ofensas estão uma cuspidela a um colono, obstrução e insultos aos soldados israelitas, protesto ilegal, entrada em zona militar exclusiva e incitamento à desobediência civil.

Para o ativista, tudo não passa de perseguição política. “Eu divulgo muitos vídeos que os embaraça. Eles não querem palestinianos moderados por aqui, daqueles que falam com diplomatas sobre a solução de dois Estados.”

Entre os períodos em que está preso, as palestras para quem o visita, o ativismo nas redes sociais e a participação em protestos exigindo a abertura da Rua Shuhada — a principal artéria comercial de Hebron, interdita aos palestinianos há mais de 20 anos —, Issa viaja pelo mundo tentando sensibilizar decisores políticos.

A 27 de setembro passado, foi recebido em Washington D.C. por Bernie Sanders (o senador que disputou com Hillary Clinton as primárias democratas de 2016) e outros congressistas. A 28 de junho, 32 deles tinham assinado uma carta endereçada a Rex Tillerson, o secretário de Estado de Donald Trump, apelando a que os EUA influenciem Israel no sentido de uma revisão do caso de Amro.

“Organizações dos direitos humanos declararam que as ações de Amro foram consistentes com desobediência civil não-violenta, apesar da lei militar o proibir na Cisjordânia”, lê-se no último relatório sobre os direitos humanos no mundo do Departamento de Estado dos EUA.

Desde a Guerra dos Seis Dias (1967) que aquele território palestiniano está submetido a legislação militar, ao abrigo da qual uma concentração “política” de 10 ou mais pessoas requer autorização do comandante regional das forças militares — que raramente é emitida. Sem ela, incorre-se numa pena de mais de 10 anos de prisão ou numa pesada multa.

Dias antes de viajar até aos Estados Unidos, Issa foi detido pelas forças de segurança da Autoridade Palestiniana (AP), em Hebron. Nas redes sociais, ele criticara a Lei palestiniana dos Crimes Eletrónicos, que esteve na origem da prisão do jornalista Ayman al-Qawasmi, que tinha apelado à demissão do Presidente palestiniano, Mahmud Abbas. Esteve preso seis dias e foi libertado sob fiança.

Hebron — que, à semelhança de Jerusalém, é sagrada para as três religiões monoteístas (ali se situa o túmulo de Abraão) — é uma espécie de conflito dentro do conflito. É a única cidade palestiniana que tem colonos judeus no seu interior.

De visita a Hebron, em março passado, onde conheceu Issa Amro, o ator norte-americano Richard Gere comparou a ordem ali vigente às Leis de Jim Crow, nos EUA, que instituíram a segregação racial entre 1876 e 1965. “Isto é exatamente como era o velho sul da América. Os negros sabiam onde podiam ir. Não podiam beber daquela fonte, não podiam ir àquele lugar, não podiam comer naquele sítio. Estava claro, e não se pisava o risco se não se quisesse levar um pontapé na cabeça ou ser linchado.” É ao que se arrisca Issa Amro, diariamente, na Palestina.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui

Uma vitória tardia que não acaba com a guerra

Dos quatro países da “primavera árabe” onde os protestos populares derrubaram ditadores, o Iémen foi o último, efetivamente, a punir o seu. O desaparecimento de Ali Abdullah Saleh, assassinado por quem se aliara até à véspera, não significa, porém, o fim da guerra

Já lá vão sete anos, cumprem-se exatamente este domingo. Num ato desesperado, Mohamed Bouazizi, um vendedor ambulante tunisino, auto-imolou-se pelo fogo em protesto contra a apreensão, pela polícia, da sua banca de fruta. A indignação popular tomou conta das ruas da Tunísia e motivou outros árabes a revoltarem-se contra quem os governava de forma quase absoluta.

Quatro ditadores sucumbiram à chamada “primavera árabe”: o tunisino Zine El Abidine Ben Ali (exilado na Arábia Saudita), o egípcio Hosni Mubarak (preso, julgado e, entretanto, libertado), o líbio Muammar Kadhafi e o iemenita Ali Abdullah Saleh. De todos, Kadhafi foi, à época, aquele que teve o fim mais inglório — capturado por uma milícia e executado como um vulgar criminoso, com as imagens do seu cadáver, captadas por telemóvel, a circularem pelas redes sociais.

Em sentido oposto, Saleh foi o único que conseguiu sair do poder pelo próprio pé. No âmbito de um acordo assinado a 23 de novembro de 2011, e mediado pelo Conselho de Cooperação do Golfo, transferiu o poder para o seu vice-presidente, Abdu-Rabbo Mansur al-Hadi, em troca de imunidade.

Mas Saleh — que fora Presidente do Iémen durante 33 anos — não resistiu à tentação do poder. A viver em Sana e com a sua influência intacta junto de sectores da sociedade iemenita, ajudou, em setembro de 2014, os rebeldes huthis a conquistar a capital e a depor o governo de Hadi. Mais de três anos depois, há precisamente 15 dias, seria assassinado por esses mesmos aliados. Como acontecera com Kadhafi, imagens do seu cadáver chegaram às redes sociais, num ato final de humilhação.

“As tensões entre Saleh e os huthis vinham a aumentar há algum tempo, não aconteceram de um dia para o outro”, comenta ao Expresso Noha Aboueldahab, investigadora do Brookings Institution (EUA) e autora do livro “Transitional Justice and the Prosecution of Political Leaders in the Arab Region: A comparative study of Egypt, Libya, Tunisia and Yemen” (2017).

A rutura final aconteceu a 2 de dezembro quando Saleh, na televisão, anunciou o fim da aliança com os huthis e mostrou-se aberto ao diálogo com a Arábia Saudita. Esta tem em curso uma operação militar no país visando derrotar os huthis (que são apoiados pelo arqui-inimigo Irão) e devolver o poder ao Presidente deposto, Hadi.

Saleh sobreviveria dois dias a essa cambalhota política. “Ele interpretou mal as tensões com os huthis e pensou que podia confiar no apoio dos sauditas para ficar à cabeça do jogo político no Iémen”, diz Noha Aboueldahab. “Errou ao não prever a reação dos huthis quando anunciou a sua aliança com os sauditas. E dado que estes não estão ‘no terreno’ no Iémen [apenas efetuam bombardeamentos aéreos], Saleh e quem lhe era leal ficaram à mercê no confronto com os huthis, e não foram bem sucedidos.”

“Governar o Iémen é como dançar sobre cabeças de serpentes”, disse, em 2009, Ali Abdullah Saleh, numa entrevista ao jornal “Al-Hayat”. “A mudança de alianças que Saleh promoveu é uma estratégia política que lhe permitiu a permanência no poder durante quase quatro décadas”, diz a investigadora. “Mas levou também à sua morte” — uma espécie de vitória tardia, para os partidários da “primavera iemenita”.

No Iémen, Saleh sempre foi um protagonista, mesmo quando não estava no poder. “Foi certamente um obstáculo a um acordo de paz no Iémen, mas não era o único. Infelizmente, atores internacionais — nomeadamente o Conselho de Cooperação do Golfo, os Estados Unidos, a União Europeia e as Nações Unidas — também foram obstáculos a um acordo de transição efetivo no Iémen”, defende Noha Aboueldahab, para quem o destino do país foi traçado em 2011.

“O acordo de transição assinado em Riade há seis anos e as conversações para a Conferência para o Diálogo Nacional que se seguiram tinham falhas graves. Foram estruturadas para manter Saleh — ou pelo menos o seu partido Congresso Geral do Povo — no poder dando a impressão de que partidos da oposição e outros atores também teriam uma palavra a dizer à mesa das conversações. Não foi o que aconteceu, e contribuiu para a carnificina que se seguiu no Iémen desde 2011.”

Mais derramamento de sangue

À semelhança do que aconteceu na Síria, a “primavera iemenita” evoluiu para uma guerra civil sangrenta de que resultou uma grande tragédia humana. Hoje, para além das balas e bombas, morre-se também de fome e de doenças há muito erradicadas na maioria do planeta, como a difteria e a cólera.

O desaparecimento de Saleh não ditará o fim dessa grande tragédia, prevê Noha Aboueldahab. “Agora que morreu, sauditas e emiratis ficam sem o seu poderoso jogador iemenita com quem contavam voltar a fazer uma aliança para acabar com a guerra, ditando os termos” da paz. “Enquanto Riade e Abu Dabi têm outras opções para onde se virarem, a morte de Saleh vai significar mais combates, mais derramamento de sangue.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui

Golfo cada vez mais revolto

Refém do bloqueio ao Qatar, decretado, há meio ano, por três dos seus membros, o Conselho de Cooperação do Golfo realizou a sua cimeira anual esta terça-feira. Sem brilho e com um anúncio preocupante: Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos estabeleceram uma parceria em separado

Não há como esconder — ou remendar — a crise no Golfo Pérsico. Reunido esta terça-feira, no Kuwait, para a sua cimeira anual, o Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) exibiu brechas que fazem temer pelo seu futuro.

Previsto para durar dois dias, o encontro entre seis países ribeirinhos ao Golfo esgotou a agenda — não tornada pública — em apenas um, “com todos os delegados a deixarem o Kuwait após uma sessão à porta fechada”, reporta a Al-Jazeera.

Fundado em 1981, o CCG vive a sua pior crise de sempre. Há precisamente meio ano, a 5 de junho, três dos seus membros cortaram relações diplomáticas e decretaram um bloqueio por terra, mar e ar contra um quarto membro. De um lado, Arábia Saudita, Bahrain e Emirados Árabes Unidos (EAU), a que se junto o Egito (todos Estados árabes sunitas), do outro o Qatar, acusado de apoiar o terrorismo e de ter uma relação próxima com o arqui-inimigo Irão (país persa xiita).

Esta divergência agravou-se nesta cimeira, no Kuwait, país que tem tentado servir de mediador nesta crise. Segundo um comunicado emitido pelo ministério dos Negócios Estrangeiros dos Emirados Árabes Unidos, este país juntamente com a Arábia Saudita celebraram uma nova parceria militar e comercial, à margem da organização regional.

A nova aliança entre Riade e Abu Dabi visa “a cooperação e coordenação” entre os dois países “em todos os campos a nível militar, político, económico, comercial e cultural”. Teme-se, porém, que contribua para esvaziar a organização e intensificar, ainda mais, os antagonismos nesta região estratégica.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui

O silêncio do Papa face ao genocídio dos rohingya

Repressão da minoria muçulmana ganha proporções de genocídio mas Francisco não a condenou

O Papa Francisco habituou crentes e não crentes a verbalizar incómodos como nunca antes um seu antecessor tinha feito. Esperava-se, pois, que esta semana, de visita a Myanmar, antiga Birmânia, o líder da Igreja Católica se solidarizasse, de forma explícita, com o drama da minoria muçulmana, como fizera a 27 de agosto, na Praça de São Pedro: “Chegam-nos tristes notícias sobre a perseguição aos nossos irmãos e irmãs rohingya”, disse então. Não aconteceu.

Na terça-feira, num discurso na capital, Naypyidaw, com a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi a ouvi-lo, o Sumo Pontífice limitou-se a apelar à reconciliação e ao “respeito por todos os grupos étnicos e identidades”. No país, de maioria budista, o sentimento antimuçulmano é antigo, generalizado e “rohingya”, uma palavra proibida.

Francisco evitou um conflito diplomático com o país que o acolhia, mas saiu moralmente diminuído. “Quem perdeu a dignidade não foram os rohingya, mas antes aqueles que silenciaram o Papa, influenciando-o a não usar a palavra rohingya”, reagiu o ativista birmanês Khin Maung Myint, ao diário “The Guardian”, à margem da missa campal presidida pelo Papa, em Rangum.

Até à matança final

Em setembro passado, as Nações Unidas qualificaram a perseguição aos rohingya como “limpeza étnica” — a expulsão de um grupo de uma região, o que, ao abrigo do direito internacional, não é crime. Acabada de regressar dos campos de  refugiados rohingya no Bangladesh, Alicia de la Cour Venning faz uma avaliação mais severa. Para esta investigadora da Universidade Queen Mary, de Londres, está em curso uma campanha de genocídio — a destruição completa de um grupo —, que caminha a passos largos para a sua etapa final, a da matança em massa.

“O genocídio é um processo que ocorre durante um longo período, às vezes décadas”, diz ao “Expresso” a investigadora. “Começa com a estigmatização de uma comunidade, através de atos discriminatórios, continua com o assédio psicológico e/ou físico, isolando o grupo em campos ou guetos. A comunidade é sistematicamente enfraquecida e os seus membros privados de direitos humanos básicos, como a possibilidade de trabalharem, terem acesso à educação,  movimentarem-se em liberdade, de serem proprietários, de se casarem e — no caso dos rohingya — de terem cidadania. Depois de tudo isto, chega a etapa das matanças em massa.”

Aprender com a História

Foi assim na Alemanha nazi, com os judeus, e no Ruanda (1994), com os tutsis. Na  Birmânia, “a perseguição em curso segue os mesmos padrões de ações previamente reconhecidas como genocídios”, confirma Alicia de la Cour. A visita aos campos insere-se numa investigação que está a ser desenvolvida pela International State Crime Initiative. “Ouvimos relatos de como militares birmaneses, polícias e civis entraram nas aldeias dos rohingya e queimaram casas, pilharam propriedades, violaram mulheres e executaram todos os civis, incluindo mulheres, crianças e idosos, que tentavam fugir.”

Tudo acontece sem que, a nível internacional, haja um esboço de reação em socorro dos rohingya. Em defesa da Birmânia, pelo contrário, China e Rússia garantem o veto a qualquer resolução condenatória no Conselho de Segurança da ONU. E pelo mundo não falta quem abra a porta aos generais de Rangum. Em abril, o chefe das forças armadas birmanesas, Min Aung Hlaing, foi recebido em Berlim e Viena. Pela mesma altura, Israel vendia à Birmânia lanchas de patrulha rápidas e sofisticadas Super-Dvora MK III. “Sanções específicas contra os militares seria um bom começo” para tentar inverter a campanha de genocídio, defende a investigadora.

Pretextos para reprimir

O drama dos rohingya tem epicentro num estado ora designado Rakhine (terminologia birmanesa) ora Arakan, palavra inglesa que deriva da designação… portuguesa: Arracão (ver ao lado). Estende-se ao longo de 560 km da costa oeste, junto ao Golfo de Bengala, e abriga 3,2 milhões de habitantes: 2,1 milhões são budistas e mais de um milhão, muçulmanos. Entre as duas comunidades, a tensão é constante.

A mais recente vaga de violência seguiu-se à morte de 12 agentes das forças de segurança, a 25 de agosto, em ataques contra postos de fronteira levados a cabo pelo Exército de Salvação dos Rohingya do Arracão (Arsa), “um pequeno grupo, mal organizado e mal armado, uma ameaça muito baixa para o governo”, garante Alicia de la Cour. “A razão que leva à formação destes grupos decorre da discriminação constante e da opressão por parte do Estado birmanês. Os grupos pegam em armas como resposta à política criminosa do Governo.”

Os ataques do Arsa dão às autoridades “um pretexto para reprimirem. É o que têm feito, uma punição coletiva contra os civis rohingya”. Desde agosto, mais de 600 mil já se fizeram à estrada, rumo ao Bangladesh e aos campos junto à cidade de Cox Bazar — Hiram Cox (1760-1799) foi um diplomata britânico que se destacou na área da reabilitação de refugiados. Com eles levaram a roupa do corpo e um sonho: “Querem todos regressar”, diz a investigadora. “É a terra deles.”

ROHINGYA NÃO CONTAM

135 grupos étnicos, com direito a solicitarem cidadania birmanesa, foram identificados numa lei de 1982. Os rohingya ficaram de fora

2014 foi o ano do último censo na Birmânia. Os rohingya foram excluídos, a não ser que se registassem como “bengalis”, o que muito poucos fizeram

A LEI DA GEOGRAFIA E A PRESENÇA PORTUGUESA

A palavra rohingya não vem nos dicionários. Mas a geografia ajuda a perceber a sua presença num país abordado por portugueses

Para tentar explicar ao “Expresso” as origens da maldição dos rohingya na Birmânia, Maria Ana Marques Guedes socorre-se de um mapa. “Enquanto reino, o Arracão teve uma independência bastante razoável em relação à Birmânia por razões geográficas. Está separado do resto do território pela cadeia montanhosa Arakan Yoma e está virado para o Golfo de Bengala e para o Bangladesh, que já era muçulmano quando os portugueses lá chegaram, e com quem o Arracão sempre teve mais relações comerciais do que com a Birmânia”, diz esta doutorada pela Universidade Nova de Lisboa, com investigação desenvolvida na Birmânia. “Julgo que os rohingya são descendentes desses muçulmanos. O termo é discutidíssimo por historiadores e linguistas. Não vem sequer nos dicionários.”

Por causa dessa particularidade geográfica, quando o rei Tabinshwehti (1516/50) unificou a Birmânia, o Arracão ficou de fora. Só seria conquistado em 1785, muito depois da abordagem dos portugueses, no século XVI, atraídos pelas riquezas da Birmânia. “Foi o maior exportador de arroz até ao fim da II Guerra Mundial e ainda tem os melhores rubis do mundo”, diz a professora.

Os portugueses, que tentaram conquistar o Arracão e Pegu (a capital), fizeram uma ocupação não oficializada pelo Estado luso da Índia. O mercenário Filipe de Brito Nicote chegou a ter uma fortaleza no Sirião. “No princípio do século XVII, os portugueses chegaram a raptar um príncipe birmanês de seis anos. Educaram-no em Lisboa e tentaram pô-lo no trono de Arracão, para depois verem legitimada a presença portuguesa.”

(Foto: Chegada de membros da etnia rohingya ao campo de refugiados de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh, em novembro de 2017 OLIVIA HEADON / IOM / UN MIGRATION AGENCY)

Artigos publicados no “Expresso”, a 1 de dezembro de 2017. O primeiro artigo foi republicado e adaptado no “Expresso Online”, a 1 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui