O silêncio do Papa face ao genocídio dos rohingya

Repressão da minoria muçulmana ganha proporções de genocídio mas Francisco não a condenou

O Papa Francisco habituou crentes e não crentes a verbalizar incómodos como nunca antes um seu antecessor tinha feito. Esperava-se, pois, que esta semana, de visita a Myanmar, antiga Birmânia, o líder da Igreja Católica se solidarizasse, de forma explícita, com o drama da minoria muçulmana, como fizera a 27 de agosto, na Praça de São Pedro: “Chegam-nos tristes notícias sobre a perseguição aos nossos irmãos e irmãs rohingya”, disse então. Não aconteceu.

Na terça-feira, num discurso na capital, Naypyidaw, com a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi a ouvi-lo, o Sumo Pontífice limitou-se a apelar à reconciliação e ao “respeito por todos os grupos étnicos e identidades”. No país, de maioria budista, o sentimento antimuçulmano é antigo, generalizado e “rohingya”, uma palavra proibida.

Francisco evitou um conflito diplomático com o país que o acolhia, mas saiu moralmente diminuído. “Quem perdeu a dignidade não foram os rohingya, mas antes aqueles que silenciaram o Papa, influenciando-o a não usar a palavra rohingya”, reagiu o ativista birmanês Khin Maung Myint, ao diário “The Guardian”, à margem da missa campal presidida pelo Papa, em Rangum.

Até à matança final

Em setembro passado, as Nações Unidas qualificaram a perseguição aos rohingya como “limpeza étnica” — a expulsão de um grupo de uma região, o que, ao abrigo do direito internacional, não é crime. Acabada de regressar dos campos de  refugiados rohingya no Bangladesh, Alicia de la Cour Venning faz uma avaliação mais severa. Para esta investigadora da Universidade Queen Mary, de Londres, está em curso uma campanha de genocídio — a destruição completa de um grupo —, que caminha a passos largos para a sua etapa final, a da matança em massa.

“O genocídio é um processo que ocorre durante um longo período, às vezes décadas”, diz ao “Expresso” a investigadora. “Começa com a estigmatização de uma comunidade, através de atos discriminatórios, continua com o assédio psicológico e/ou físico, isolando o grupo em campos ou guetos. A comunidade é sistematicamente enfraquecida e os seus membros privados de direitos humanos básicos, como a possibilidade de trabalharem, terem acesso à educação,  movimentarem-se em liberdade, de serem proprietários, de se casarem e — no caso dos rohingya — de terem cidadania. Depois de tudo isto, chega a etapa das matanças em massa.”

Aprender com a História

Foi assim na Alemanha nazi, com os judeus, e no Ruanda (1994), com os tutsis. Na  Birmânia, “a perseguição em curso segue os mesmos padrões de ações previamente reconhecidas como genocídios”, confirma Alicia de la Cour. A visita aos campos insere-se numa investigação que está a ser desenvolvida pela International State Crime Initiative. “Ouvimos relatos de como militares birmaneses, polícias e civis entraram nas aldeias dos rohingya e queimaram casas, pilharam propriedades, violaram mulheres e executaram todos os civis, incluindo mulheres, crianças e idosos, que tentavam fugir.”

Tudo acontece sem que, a nível internacional, haja um esboço de reação em socorro dos rohingya. Em defesa da Birmânia, pelo contrário, China e Rússia garantem o veto a qualquer resolução condenatória no Conselho de Segurança da ONU. E pelo mundo não falta quem abra a porta aos generais de Rangum. Em abril, o chefe das forças armadas birmanesas, Min Aung Hlaing, foi recebido em Berlim e Viena. Pela mesma altura, Israel vendia à Birmânia lanchas de patrulha rápidas e sofisticadas Super-Dvora MK III. “Sanções específicas contra os militares seria um bom começo” para tentar inverter a campanha de genocídio, defende a investigadora.

Pretextos para reprimir

O drama dos rohingya tem epicentro num estado ora designado Rakhine (terminologia birmanesa) ora Arakan, palavra inglesa que deriva da designação… portuguesa: Arracão (ver ao lado). Estende-se ao longo de 560 km da costa oeste, junto ao Golfo de Bengala, e abriga 3,2 milhões de habitantes: 2,1 milhões são budistas e mais de um milhão, muçulmanos. Entre as duas comunidades, a tensão é constante.

A mais recente vaga de violência seguiu-se à morte de 12 agentes das forças de segurança, a 25 de agosto, em ataques contra postos de fronteira levados a cabo pelo Exército de Salvação dos Rohingya do Arracão (Arsa), “um pequeno grupo, mal organizado e mal armado, uma ameaça muito baixa para o governo”, garante Alicia de la Cour. “A razão que leva à formação destes grupos decorre da discriminação constante e da opressão por parte do Estado birmanês. Os grupos pegam em armas como resposta à política criminosa do Governo.”

Os ataques do Arsa dão às autoridades “um pretexto para reprimirem. É o que têm feito, uma punição coletiva contra os civis rohingya”. Desde agosto, mais de 600 mil já se fizeram à estrada, rumo ao Bangladesh e aos campos junto à cidade de Cox Bazar — Hiram Cox (1760-1799) foi um diplomata britânico que se destacou na área da reabilitação de refugiados. Com eles levaram a roupa do corpo e um sonho: “Querem todos regressar”, diz a investigadora. “É a terra deles.”

ROHINGYA NÃO CONTAM

135 grupos étnicos, com direito a solicitarem cidadania birmanesa, foram identificados numa lei de 1982. Os rohingya ficaram de fora

2014 foi o ano do último censo na Birmânia. Os rohingya foram excluídos, a não ser que se registassem como “bengalis”, o que muito poucos fizeram

A LEI DA GEOGRAFIA E A PRESENÇA PORTUGUESA

A palavra rohingya não vem nos dicionários. Mas a geografia ajuda a perceber a sua presença num país abordado por portugueses

Para tentar explicar ao “Expresso” as origens da maldição dos rohingya na Birmânia, Maria Ana Marques Guedes socorre-se de um mapa. “Enquanto reino, o Arracão teve uma independência bastante razoável em relação à Birmânia por razões geográficas. Está separado do resto do território pela cadeia montanhosa Arakan Yoma e está virado para o Golfo de Bengala e para o Bangladesh, que já era muçulmano quando os portugueses lá chegaram, e com quem o Arracão sempre teve mais relações comerciais do que com a Birmânia”, diz esta doutorada pela Universidade Nova de Lisboa, com investigação desenvolvida na Birmânia. “Julgo que os rohingya são descendentes desses muçulmanos. O termo é discutidíssimo por historiadores e linguistas. Não vem sequer nos dicionários.”

Por causa dessa particularidade geográfica, quando o rei Tabinshwehti (1516/50) unificou a Birmânia, o Arracão ficou de fora. Só seria conquistado em 1785, muito depois da abordagem dos portugueses, no século XVI, atraídos pelas riquezas da Birmânia. “Foi o maior exportador de arroz até ao fim da II Guerra Mundial e ainda tem os melhores rubis do mundo”, diz a professora.

Os portugueses, que tentaram conquistar o Arracão e Pegu (a capital), fizeram uma ocupação não oficializada pelo Estado luso da Índia. O mercenário Filipe de Brito Nicote chegou a ter uma fortaleza no Sirião. “No princípio do século XVII, os portugueses chegaram a raptar um príncipe birmanês de seis anos. Educaram-no em Lisboa e tentaram pô-lo no trono de Arracão, para depois verem legitimada a presença portuguesa.”

(Foto: Chegada de membros da etnia rohingya ao campo de refugiados de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh, em novembro de 2017 OLIVIA HEADON / IOM / UN MIGRATION AGENCY)

Artigos publicados no “Expresso”, a 1 de dezembro de 2017. O primeiro artigo foi republicado e adaptado no “Expresso Online”, a 1 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui

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