Finlandeses apostam na continuidade, e na amizade com a Rússia

Sauli Niinistö foi reeleito à primeira volta das eleições presidenciais com 62.7% dos votos. Próximo de Vladimir Putin, defende que uma eventual adesão da Finlândia à NATO deve ser objeto de referendo

Os finlandeses resolveram o assunto à primeira e, no domingo, reelegerem Sauli Niinistö para um segundo mandato presidencial de seis anos. Uma vitória sem contestação já que Niinistö, de 69 anos — antigo líder do Partido da Coligação Nacional (centro-direita) —, obteve uns esmagadores 62,7% dos votos, deixando o segundo candidato mais votado, Pekka Haavisto, 59 anos, da Aliança Verde (centro-esquerda), a mais de 50%, com 12,4%.

“Estou muito surpreendido com este tipo de apoio. Terei de pensar bem em como ser merecedor dele”, afirmou o Presidente reeleito. “Não tenho intenções de fazer mudanças apenas por fazer. Continuaremos a seguir de perto o que se passa fora da Finlândia, globalmente, e se necessário então reagiremos certamente.”

Para a agência Reuters, o segredo da vitória de Niinistö, a quem se atribui uma boa relação com o homólogo russo, Vladimir Putin, foi o facto de “o seu delicado equilíbrio de laços com a vizinha Rússia e com a aliança militar NATO liderada pelos EUA ter soado bem aos eleitores”.

A Finlândia é membro da União Europeia desde 1995, mas sempre optou por se manter à margem da Aliança Atlântica para não hostilizar a Rússia, com quem partilha uma fronteira de 1340 quilómetros e um passado histórico difícil — durante a II Guerra Mundial, a União Soviética invadiu e ocupou o país, por exemplo.

Em fevereiro de 2017, uma sondagem da rádio e televisão finlandesa Yle revelava que apenas 21% dos cidadãos apoiava a adesão à NATO, enquanto 51% opunha-se. Dos sete candidatos das presidenciais de domingo, apenas um, o eurodeputado Nils Torvalds, 72 anos, do Partido Popular Sueco da Finlândia (centro), defendeu a entrada do país na NATO.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de janeiro de 2018. Pode ser consultado aqui

Contrastes persas

Aos 39 anos de vida, a República Islâmica do Irão vive cada vez mais tomada por debates em torno do que é permitido e proibido. A sociedade exige, o regime cede

Já lá vai exatamente um mês e o paradeiro daquela jovem iraniana de longos cabelos negros continua desconhecido. Zahra — chamemos-lhe assim, já que a sua identidade não foi divulgada — foi detida em Teerão após protagonizar um protesto solitário que se tornou viral nas redes sociais. A 27 de dezembro, véspera de começarem as manifestações antigovernamentais que haveriam de colocar o Irão nas manchetes internacionais, Zahra subiu a um bloco de cimento na Avenida Enqelab — uma das grandes e movimentadas artérias que rasgam a capital —, tirou o seu hijab branco da cabeça, amarrou-o à extremidade de uma vara e começou a ondulá-lo, indiferente a quem passava a pé ou de carro.

No Irão, o uso do lenço é obrigatório para as mulheres na via pública. Já os homens devem evitar calções ou T-shirts cavadas. Este código de indumentária é tão antigo quanto a própria República Islâmica, fundada em 1979. Quem se atrever a desrespeitá-lo sofre, no mínimo, uma advertência e arrisca-se a ser levado para a esquadra por um dos muitos agentes da polícia moral que passam as ruas a pente fino. Fardados ou à paisana, encaram cada transeunte como um potencial prevaricador em matéria de vestuário.

A coincidência entre o ato de coragem de Zahra e as mediáticas manifestações populares contra o custo de vida, que contagiaram pelo menos 75 cidades iranianas, tornaram a jovem um ícone involuntário daqueles protestos — que não eram os dela. E terão contribuído para um castigo severo. “Não temos notícias de que tenha sido libertada”, diz ao Expresso a ativista iraniana Masih Alinejad. “As forças de segurança estão a dizer às famílias dos detidos para não falarem para a imprensa ou com ativistas” sob pena de retaliações. “Cinco pessoas já morreram enquanto estavam detidas, é compreensível que haja uma relutância” das famílias em dar informações.

Masih, 41 anos, jornalista, é a fundadora da campanha que levou Zahra a afrontar as leis dos ayatollahs. Todas as quartas-feiras, as iranianas são desafiadas a destapar a cabeça em público ou a usar um xaile branco em protesto contra o uso obrigatório do lenço. Nas redes sociais, imagens desses gestos de resistência são identificadas com a hashtag #WhiteWednesdays (quartas-feiras brancas), num incentivo à adesão de cada vez mais mulheres.

“Em 2014, comecei a campanha My Stealthy Freedom [Minha Liberdade Furtiva] para tornar pública a vontade das iranianas em poderem escolher e a sua oposição ao hijab obrigatório. Durante três anos, a campanha decorreu essencialmente nas redes sociais”, explica a sua criadora. Então, selfies de iranianas sem hijab ou chador [véu integral que deixa à mostra apenas rosto e mãos], em poses a céu aberto, e muitas vezes na companhia dos namorados ou maridos, inundaram as páginas da campanha na internet expondo um real desejo de liberdade. “Ao fim de três anos, senti que havia mulheres suficientemente corajosas para darmos mais um passo e mostrarmos quão fortes nos sentimos”, continua Masih. “Até agora, não lhes pedi que se juntassem num sítio em concreto. Seriam atacadas por rufias e paramilitares, e seriam presas. Quero ser cuidadosa e não colocá-las em perigo.”

Vítima dos ayatollahs… e de Trump

Masih orienta tudo à distância, a partir da cidade norte-americana de Nova Iorque, onde vive exilada desde 2014 e se desdobra em aparições televisivas denunciando os entraves às liberdades no seu país. A sua profissão e o seu ativismo tornaram-na persona non grata no Irão desde 2009, quando saíram à rua os protestos contra a reeleição do Presidente conservador Mahmoud Ahmadinejad que ficaram conhecidos como Movimento Verde. A repressão das forças da ordem condenou os líderes que o encabeçaram — o ex-primeiro-ministro Mir Hussein Mussavi e o ex-presidente do Parlamento Mehdi Karroubi — a prisão domiciliária, até hoje. E forçou Masih a fugir do país.

Antes do exílio nos Estados Unidos, a ativista viveu cinco anos no Reino Unido com o estatuto de refugiada política. Hoje, a sua nacionalidade torna-a um alvo da política de proibição de vistos de Donald Trump, que visa também os detentores de passaporte iraniano. “Sou afetada de uma forma muito dolorosa. O meu filho [Pouyan, que estuda no Reino Unido] não pode viajar para me ver e eu não posso viajar para o ver”, lamenta. “Mas é claro que os maiores entraves são colocados pela República Islâmica contra o seu próprio povo. Eu não posso viajar para o Irão, tal como muitos outros jornalistas que fugiram do país, e por razões de segurança a minha família também não pode deixar o Irão.”

Masih e, em especial, as mulheres que a seguem estão, hoje, na vanguarda de uma atitude de insubordinação face às autoridades de Teerão que, aos poucos, vai corroendo os pilares teocráticos da República Islâmica e obrigando o regime a cedências no sentido da modernidade. Em julho passado, Farzaneh Sharafbafi, 44 anos, doutorada em engenharia aeroespacial, tornou-se a primeira mulher a ser nomeada CEO da Iran Air, a transportadora aérea iraniana.

Contrariamente àquilo que o estereótipo possa sugerir, a obrigatoriedade do lenço não condena as iranianas a uma vida de clausura entre as paredes do lar. Elas podem estudar, trabalhar, viajar sozinhas — ainda que para tirarem passaporte necessitem de autorização do marido (as casadas) ou do pai (as solteiras) —, escolher que caminhos trilhar, por muito que isso indisponha clérigos conservadores como Hadi Sadeqi. No ano passado, quando estalou o debate no Irão sobre se o interior dos automóveis era espaço público ou privado, o vice-chefe do sistema judicial defendeu: “Espaço privado é a parte invisível do carro, como o porta-bagagens”… A discussão surgiu após cada vez mais mulheres se recusarem a cobrir a cabeça dentro dos seus carros. Muitas, deliberadamente, deixam cair o lenço sobre os ombros quando vão ao volante.

Os ayatollahs vão respondendo aos desafios colocados por uma sociedade cada vez mais jovem, permeável às tecnologias e intolerante em relação aos privilégios dos clérigos com medidas ardilosas que resultam num estilo de governação bizarro

A caminho do seu 39º aniversário — que se celebra a 11 de fevereiro —, a República Islâmica do Irão está cada vez mais tomada por debates em torno do que é permitido e proibido. Segundo o último censo, realizado em 2016, dos cerca de 80 milhões de habitantes, 49,1% têm menos de 30 anos. Nunca conheceram outros líderes que não os ayatollahs, mas, à semelhança de qualquer pessoa da sua idade em qualquer parte do mundo, aspiram a ser donos da sua vida, estão de olho na internet atentos ao que se passa no mundo e sentem-se cada vez mais inconformados com os limites impostos por um regime que, na longa e gloriosa História da Pérsia — como se chamou o país até 1935 —, ocupa um período cronológico muito curto.

“Os iranianos, principalmente os da etnia persa dominante, cultivam a certeza de pertencer a uma das mais antigas e gloriosas civilizações. Alimentam com orgulho a memória de um povo que dominou boa parte do mundo graças a sucessivos impérios e cuja ciência um dia iluminou a humanidade”, escreve o jornalista Samy Adghirni, no livro “Os Iranianos” (Editora Contexto, 2014). O autor foi correspondente da “Folha de São Paulo” em Teerão, entre 2011 e 2014, tendo colaborado com o “Expresso”.

No milenar idioma sânscrito, “Irão” significa “terra dos arianos”. A noção de pertença a uma linhagem pura e, principalmente, a rivalidade com os árabes — que os persas consideram bárbaros, apesar de serem o berço cultural do Islão — impõem condicionamentos à República Islâmica. “Muitos iranianos acreditam que a sua civilização entrou em decadência a partir da invasão islâmica no século VII, que impôs uma religião revelada em árabe e disseminada por árabes, em detrimento da cultura persa”, continua o jornalista brasileiro. “Mesmo sob o atual sistema de governo teocrático xiita, a herança ancestral do Irão pulsa no dia a dia do país. A ligação com o passado pré-islâmico continua tão forte que o Irão funciona até hoje com base no calendário persa.”

A passagem de ano, por exemplo, celebra-se a 21 de março no calendário gregoriano, coincidindo com a chegada da primavera. Designada “Nowruz”, é uma tradição mística do zoroastrismo, a fé da antiga Pérsia, pioneira na ideia de um deus único e todo-poderoso. Nas casas iranianas, a mudança de ano é tradicionalmente assinalada por uma série de rituais que para os muçulmanos sunitas mais não são do que aberrações pagãs.

Leis bizarras

Por natureza e, sobretudo, por força de uma população cada vez mais esclarecida — segundo o censo de 2016, 74% da população vive em áreas urbanas e a taxa de literacia é de 87,6% (na capital sobe aos 92,9%) —, a República Islâmica está cada vez mais exposta às suas próprias contradições. Em teoria, o consumo de álcool é proibido, punível com vergastadas e, em caso de reincidência, com a pena de morte. A prática é muito diferente. Em junho de 2014, o regime foi obrigado a reconhecer a existência de um problema de alcoolismo no país ao anunciar a abertura de mais de 150 centros de reabilitação ao estilo dos Alcoólicos Anónimos.

Dos escritos do fundador à prática, há muito que os ayatollahs perceberam que a República não é perfeita. Vão respondendo aos desafios colocados por uma sociedade cada vez mais jovem, permeável às tecnologias e intolerante em relação aos privilégios dos clérigos com medidas ardilosas que resultam num sistema de governação bizarro.

A homossexualidade, por exemplo, é um crime punível com a pena de morte, para os homens, e vergastadas, para as mulheres. Em 2007, num discurso na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, o então Presidente Mahmoud Ahmadinejad expôs-se ao ridículo ao afirmar: “No Irão, não temos homossexuais como no vosso país. Não temos esse fenómeno”. Foi brindado com vaias e gargalhadas. Mas o mesmo Estado que castiga severamente a homossexualidade autoriza, incentiva e subsidia operações de mudança de sexo, com base numa fatwa (decreto) do ayatollah Khomeini, de 1986, que considera as cirurgias de redesignação sexual e os tratamentos hormonais procedimentos médicos compatíveis com os princípios religiosos. A República Islâmica considera que transexuais são heterossexuais com uma doença curável. Provando às autoridades, através de exames médicos e psicológicos, que nasceram em “corpo errado”, os iranianos transgénero têm a porta aberta para mudarem de sexo e ganharem uma nova identidade.

Igualmente, a prostituição é estritamente proibida. Porém, a figura jurídica do “casamento temporário” (sigheh) permite a celebração de contratos de matrimónio com duração de semanas, dias, horas ou… minutos. Aceite em termos religiosos, é uma forma camuflada, e legal, de prostituição.

Se o Irão é um Estado com características únicas no mundo, tal deve-se ao pensamento de um líder carismático chamado Ruhollah Khomeini e à sua revolta interior contra a monarquia do Xá Mohammad Reza Pahlavi. Vivia Khomeini num santuário xiita na cidade iraquiana de Najaf — ali escreveu “Velayat-e-Faqih” (Governo do Jurisconsulto), onde explana o seu Estado Islâmico ideal, liderado por um “jurista justo e capaz” (“Faqih”) — quando, em 1971, uma festa luxuosa nas ruínas de Persépolis (sul) chocou os iranianos pela sua extravagância e opulência. Organizada pelo Xá para comemorar os 2500 anos da fundação do Império persa, durou cinco dias, contou com a presença de centenas de convidados dos quatros cantos do mundo, transportados desde o aeroporto por uma frota de 250 limusinas vermelhas Mercedes-Benz. Ao lado das ruínas, o Xá mandou erguer uma “cidade de tendas” sumptuosas, decoradas por um designer de interiores francês e com materiais vindos de Paris. O serviço de louça do banquete era Limoges e os empregados vestiam Lanvin. O povo foi mantido longe de todo aquele glamour, à mesma distância a que o monarca estava dos seus súbditos. Para Khomeini, tudo aquilo foi “o festival do Diabo” e mais uma demonstração da corrupção moral do regime e um incentivo a uma revolução contra o ditador ocidentalizado.

No livro “Shiismo iraniano” (ISCSP, 2000), Helder Costa Santos descreve como, ao estabelecer um sistema secular, o Xá Reza Khan lançou sementes de revolta. “Procurou ressuscitar a Antiga Pérsia e passou a empregar símbolos reveladores de uma identidade ariana; construiu novas indústrias, dotou o país com uma rede de caminhos de ferro e de linhas para o telégrafo; aboliu o véu para todas as mulheres; uma lei de 1936 vedou o acesso das mulheres com chador às salas de cinema e aos banhos públicos. Proibiu os condutores de autocarros e os taxistas de as aceitarem como utentes (…). Mais, a polícia do Xá chegou a atacar, em plena rua, as mulheres portadoras da sua indumentária tradicional. (…) ordenou que os homens usassem chapéus europeus e tornou compulsório, para ambos os sexos, o uso do vestuário europeu.”

O sistema político é híbrido, simultaneamente democrático, com cargos eleitos por voto direto e universal (como o Presidente), e absolutista, apoiado na infalibilidade do guia espiritual

Mas se a ostentação do Xá — e o terror espalhado pela sua polícia secreta, a impiedosa Savak — contribuiu decisivamente para a popularidade do movimento de Khomeini, hoje a opulência dos meios religiosos é razão de revolta popular. Este ano, e pela primeira vez, o Governo tornou públicas as verbas alocadas às fundações religiosas bem como os fundos destinados às forças militares e paramilitares — “por uma questão de transparência”, defendeu o Presidente Hassan Rohani.

A mais rica dessas fundações, a Astan-e Quds-e Razavi — que administra o santuário do Imã Reza (o oitavo dos doze imãs do xiismo iraniano), maior do que a Cidade do Vaticano e visitado, anualmente, por milhões de peregrinos iranianos e estrangeiros —, fica em Mashhad (nordeste). O turismo religioso enriqueceu a cidade, mas não os seus habitantes. Os protestos iniciados a 28 de dezembro tiveram o seu tiro de partida precisamente nessa localidade. Foram, acima de tudo, gritos de excluídos, pobres e marginalizados que vivem longe das oportunidades e do cosmopolitismo da capital — e da vida fácil dos clérigos, que a Revolução transformou em dirigentes políticos.

À espera de Mahdi

As contradições do Irão começam no próprio modelo político, assente em raízes republicanas, inspiradas na tradição revolucionária e antimonárquica europeia, e teocráticas, convictas da infalibilidade do Líder Supremo. No topo da pirâmide do poder está, hoje, o ayatollah Ali Khamenei, de 78 anos, de quem se espera que guie os muçulmanos até ao regresso de Mahdi, o imã oculto que voltará à Terra para salvar a humanidade da tirania e da barbárie. (O xiismo iraniano assenta na crença de que os ensinamentos de Maomé foram perpetuados por uma linhagem de doze imãs, descendentes do Profeta. Mahdi é o último; Ali, genro de Maomé, é o primeiro.)

O carácter híbrido deste sistema contribui para a coexistência de instituições democráticas, eleitas por sufrágio direto e universal (como a Presidência e o Parlamento), e órgãos nomeados pelo poder religioso. Os partidos políticos têm pouca relevância, tudo girando em torno de dicotomias que colocam os iranianos em lados opostos da barricada em momentos de tensão política e social: conservadores versus reformistas, ortodoxos versus moderados, teóricos versus pragmáticos.

A divisão sente-se também nos corredores do poder religioso. O visual típico de um clérigo inclui um turbante, cuja cor faz toda a diferença. O turbante-padrão é branco, mas quem possui o título de seyyed (que distingue os descendentes do Profeta Maomé) usa o modelo preto. É o caso do líder espiritual, Ali Khamenei, mas não do Presidente Hassan Rohani, que usa turbante branco.

Há quase 40 anos, a chegada ao poder dos ayatollahs colocou no Irão o rótulo de Estado fanático e intolerante, imagem acentuada após o 11 de Setembro, quando os Estados Unidos inscreveram a República Islâmica no “eixo do mal” dos países que apoiavam o terrorismo. Em épocas de cerco internacional, o fantasma da ingerência estrangeira nos assuntos internos, com que as autoridades de Teerão gostam de acenar, é um argumento ao qual os iranianos são sensíveis. Em 1979, a Revolução surgiu como o culminar de décadas de descontentamento popular face à permeabilidade do regime do Xá em relação ao Ocidente. O episódio mais revoltante, para os iranianos, foi a deposição do primeiro-ministro nacionalista e democraticamente eleito Mohammed Mossadegh, em 1953, às mãos de uma operação com a assinatura da CIA. O governante atrevera-se a nacionalizar a indústria do petróleo, em prejuízo dos interesses ocidentais.

Durante os mais recentes protestos, o príncipe herdeiro do trono iraniano, Reza Pahlavi, de 57 anos, que vive exilado nos EUA, defendeu, em entrevista à agência Reuters, que a Administração Trump devia encorajar as empresas de tecnologia a providenciarem serviços de comunicações facilitadores das manifestações antirregime no Irão. No Twitter, o escritor brasileiro Paulo Coelho trocou o português pelo inglês para se socorrer da História e recordar ao príncipe herdeiro algo determinante na ascensão dos clérigos ao poder: “Cala-te! A Savak está morta, e o povo iraniano irá manifestar-se em defesa do seu país se tu, alguma vez, apelares a outro golpe de Estado como aquele orquestrado pela CIA em 1953”, twitou a 4 de janeiro.

Mais distante no tempo, no século XIX, a Revolta do Tabaco também contribuiu para uma certa desconfiança coletiva crónica dos iranianos em relação às intenções externas. Em 1890, o Xá Nasir al-Din concedeu aos ingleses o monopólio total sobre a produção, venda e exportação do tabaco por um período de 50 anos. Essa concessão originou uma rebelião popular liderada pelo clero e que contou com o apoio dos comerciantes de Teerão.

Há escassos oito meses, a reeleição do Presidente Hassan Rohani demonstrou que as reservas dos iranianos em relação aos estrangeiros não são cegas. Nas presidenciais de 19 de maio, o candidato moderado, apologista do diálogo com o Ocidente, tinha como principal trunfo o acordo internacional sobre o nuclear iraniano (2015), pelo qual Teerão aceitou colocar o seu programa atómico sob supervisão internacional em troca do levantamento de sanções. Rohani venceu à primeira volta, com 57,1% dos votos, contra 38,3% de Ebrahim Raisi, o candidato favorito do Líder Supremo e zelador da milionária Astan-e Quds-e Razavi.

O escrutínio teve uma taxa de afluência às urnas de 73,3%, reveladora do compromisso dos iranianos para com o sistema que os governa desde 1979. É verdade que, no quotidiano, os iranianos têm de lidar com as rusgas da polícia moral e dos basiji — uma força paramilitar voluntária leal à Revolução —, mas o regime só mostra os músculos quando se sente ameaçado, e não se mete dentro das casas das pessoas, onde de tudo acontece às escondidas.

À semelhança do que aconteceu em 2009 e no mês passado, sempre que há protestos no Irão é mais tentador pensar-se que talvez sejam o embrião de uma revolução que irá derrubar o regime do que encará-los como algo que acontece em muitos outros países: há insatisfação, as pessoas saem à rua, há violência e repressão e a situação acalma. Foi este o guião da última jornada de protestos, como já tinha sido nas manifestações de há oito anos. Talvez Estado e sociedade se tenham acomodado um ao outro.

(Foto: Jeans por baixo de roupa negra, à passagem de um funeral FARHAD BABAEI)

Artigo publicado na revista E” do “Expresso”, a 27 de janeiro de 2018, e  republicado no “Expresso Online”, a 4 de fevereiro de 2018. Pode ser lido aqui

Irão levanta bloqueio à aplicação Telegram

Fim das restrições coincide com abrandamento dos protestos antigovernamentais. Teerão acusa o popular serviço de troca de mensagens de ajudar à mobilização dos manifestantes

O Irão levantou as restrições impostas ao popular serviço de mensagens Telegram, noticiou, este domingo, a agência iraniana IRNA. “A rede social Telegram está agora disponível nas redes sem fios e de dados.”

O serviço foi normalizado no sábado à noite, coincidindo com um abrandamento nos protestos antigovernamentais que tomaram as ruas de cerca de 80 cidades iranianas desde finais de dezembro. Para o Governo de Teerão, esta rede social é uma poderosa ferramenta de mobilização dos manifestantes.

“As manifestações tornaram-se violentas em alguns locais como resultado de provocações por parte de certos elementos estrangeiros que usaram o serviço de mensagens Telegram”, justifica a IRNA.

A aplicação — que tem cerca de 40 milhões de utilizadores, numa população de 80 milhões — ficou sob fogo do regime dos “ayatollahs” após ter sido usada para incitamento a “conduta odiosa, ao uso de cocktails Molotov, à revolta armada e agitação social”, como denunciou, no Twitter, o ministro iraniano das Telecomunicações, MJ Azari Jahromi.

No mesmo dia, o fundador e CEO da Telegram fez “mea culpa”, anunciou a suspensão do canal onde esse incitamento foi feito e alertou os utilizadores para a existência de “linhas que não devem ser atravessadas”, twitou Pavel Durov.

https://twitter.com/durov/status/947179988213624832?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E947179988213624832%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fexpresso.pt%2Finternacional%2F2018-01-14-Irao-levanta-bloqueio-a-aplicacao-Telegram

O bloqueio da aplicação Telegram foi uma das medidas tomadas pelo Governo iraniano para tentar conter os maiores protestos antigovernamentais realizados no país desde o Movimento Verde de 2009, que contestou a reeleição do Presidente conservador Mahmud Ahmadinejad.

Outras medidas passaram pelo uso da força: a repressão das forças de segurança provocou, pelo menos, 22 mortos e mais de 1000 detidos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de janeiro de 2018. Pode ser consultado aqui

Tunisinos de volta às ruas para mostrar “cartão amarelo” ao Governo

Tal como em 2011, quando saíram às ruas para exigir a “queda do regime”, os tunisinos estão de volta às grandes manifestações. Desta vez, não com objetivos políticos mas para protestarem contra as medidas de austeridade que chegaram com o novo ano

Faz este domingo sete anos que, após quase um mês de manifestações populares, o Presidente Zine el-Abidine Ben Ali foi deposto na Tunísia. Foi, aliás, o primeiro ditador a tombar no contexto da Primavera Árabe.

A data será assinalada no país com novos protestos de rua, convocados pela oposição ao Governo e engrossados por um descontentamento popular generalizado decorrente da entrada em vigor, no primeiro dia do ano, de medidas de austeridade — que têm originado grandes protestos desde segunda-feira.

O aumento de preços atinge bens de consumo e combustíveis. Subiram também impostos sobre os veículos, as comunicações e a internet, bem como taxas alfandegárias sobre algumas importações.

Sobretudo à noite, alguns protestos resultaram em confrontos violentos entre manifestantes e polícia. Em comunicado, o Governo disse que respeitaria o direito dos tunisinos a manifestarem-se, mas que não toleraria atos de vandalismo.

Segundo o Ministério do Interior, desde segunda-feira, foram detidas 778 pessoas, incluindo 16 “extremistas islâmicos”. “Estamos preocupados com o grande número de detenções”, reagiu o porta-voz do Alto comissário da ONU para os Direitos Humanos. “Cerca de um terço dos detidos têm entre 15 e 20 anos de idade”, acrescentou Rupert Colville. “Apelamos às autoridades que assegurem que as pessoas não sejam detidas de forma arbitrária e que os direitos dos detidos sejam respeitados, e que ou sejam acusados ou libertados rapidamente.”

A Tunísia é o caso de sucesso entre os países bafejados pela Primavera Árabe, mas a situação política ainda é muito instável. O atual governo – de unidade nacional – é o nono desde a saída de cena do ditador. Para dificultar a recuperação económica, o crucial sector do turismo tem-se ressentido da vaga de ataques islamitas de 2015. A 26 de junho, na zona turística de Sousse (nordeste), um atentado provocou a morte de 38 estrangeiros, incluindo uma cidadã portuguesa.

Há sete anos, o tiro de partida para os protestos — e para a queda do regime tunisino — teve na sua origem razões económicas. Então, na cidade de Sidi Bouzid (centro), Mohammed Bouazizi, um vendedor ambulante imolou-se pelo fogo, a 17 de dezembro de 2010, em protesto contra a apreensão, por parte da polícia, do seu carrinho de frutas e legumes. Desta vez, os manifestantes dizem que não está em causa o regime, mas antes as suas dificuldades para pôr comida nas suas mesas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de janeiro de 2018. Pode ser consultado aqui

Nova lei israelita dificulta divisão de Jerusalém

Dominado por partidos nacionalistas e religiosos, o Parlamento de Israel reviu a lei sobre Jerusalém. Mesmo que, no futuro, o Governo de Telavive e a Autoridade Palestiniana acordem a partilha da Cidade Santa, a transferência de território terá de ser aprovada por dois terços dos deputados israelitas

O sismo político desencadeado pelo reconhecimento de Jerusalém como capital do Estado de Israel, por parte dos Estados Unidos, provocou uma réplica, esta terça-feira, no Parlamento de Israel. Iam os trabalhos madrugada dentro quando o Knesset aprovou legislação que faz depender, no futuro, a cedência de território de Jerusalém de uma maioria parlamentar qualificada.

Aprovada por 64 votos a favor, 51 contra e uma abstenção, a Lei Jerusalém Unida exige o “sim” de dois terços para que o controlo sobre qualquer área de Jerusalém seja transferido para uma entidade estrangeira, política, governamental ou de outro tipo.

Sem o especificar, este diploma significa que, mesmo que a divisão de Jerusalém seja acordada, em negociações de paz, entre o Governo de Telavive e a Autoridade Palestiniana, a sua concretização ficará dependente da vontade de, no mínimo, 80 dos 120 deputados israelitas.

Jerusalém explode, tudo explode

A nova lei foi proposta por Shuli Moalem-Refaeli, deputada do partido Casa Judaica, uma formação política religiosa, ortodoxa e sionista, liderada pelo ultranacionalista ministro da educação Naftali Bennett. “O objetivo da lei é impedir concessões no âmbito de acordos diplomáticos”, admitiu Shuli Moalem-Refaeli, durante este processo parlamentar. “Jerusalém nunca estará sobre a mesa das negociações.”

Na bancada da oposição, o deputado Nahman Shai, da União Sionista (coligação de centro-esquerda que integra o Partido Trabalhista) criticou o novo diploma, alertando para o potencial de conflito do estatuto de Jerusalém. “Não precisamos de novas leis sobre Jerusalém, já vimos o que acontece no Monte do Templo”, disse, aludindo à violência desencadeada no verão passado quando da imposição de novos procedimentos de segurança no acesso à Esplanada das Mesquitas. “Quando Jerusalém explode, tudo explode.”

Foi na Guerra dos Seis Dias (1967) que Israel ocupou a parte oriental de Jerusalém (que os palestinianos desejam para capital do futuro Estado palestiniano e onde se situam os lugares sagrados das três religiões monoteístas).

Em 1980, através de uma lei votada no Knesset, esse território foi anexado e a Cidade Santa decretada como “capital una e indivisível de Israel”. Com a nova legislação, o Governo de Telavive mostra que a anexação da Cidade Santa é um processo sem retorno.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de janeiro de 2018. Pode ser consultado aqui