Presença cristã na Terra Santa ameaçada por política “discriminatória” de Israel

O município de Jerusalém quer taxar propriedades eclesiásticas, até agora isentas. Em protesto, líderes de várias igrejas cristãs fecharam o Santo Sepulcro, em protesto contra o que consideram ser “uma tentativa de enfraquecimento da presença cristã em Jerusalém”

Um dos locais mais sagrados para os cristãos de todo o mundo está de porta fechada a peregrinos, turistas e público em geral por tempo indeterminado. No domingo, em frente à pesada porta de madeira do Santo Sepulcro, na Cidade Velha de Jerusalém, os líderes das três maiores comunidades cristãs representadas no seu interior justificaram a medida com a necessidade de protestarem contra a política “discriminatória” de Israel, que atenta contra a presença cristã na Terra Santa.

No centro da polémica está uma decisão do município de Jerusalém que acaba com a isenção do pagamento do imposto municipal relativo a propriedades eclesiásticas. “Há uma dívida acumulada ao longo de anos. Fizemos o que faríamos com qualquer outro cidadão”, defendeu o presidente da Câmara, esclarecendo que a medida visa apenas propriedades comerciais detidas pelas igrejas (como hotéis) e não terrenos onde existam locais de culto. “Se não está satisfeita, a Igreja está convidada a recorrer ao tribunal. Estou surpreendido que não o tenham feito”, disse Nir Barkat, citado pelo jornal “The Jerusalem Post”.

As igrejas cristãs reclamam a existência de um acordo antigo que as isenta do pagamento de impostos municipais. Datado da era otomana, recordam, foi respeitado por britânicos (que detiveram o mandato da Palestina), jordanos (que ocuparam e anexaram Jerusalém Oriental após a guerra israelo-árabe de 1948) e sucessivos governos israelitas (após a ocupação na guerra de 1967).

“Estas ações violam acordos existentes e obrigações internacionais, que garantem direitos e privilégios às igrejas, no que parece ser uma tentativa de enfraquecimento da presença cristã em Jerusalém”, defenderam os líderes cristãos, à entrada do Santo Sepulcro, numa posição de unidade inédita, tendo em conta a rivalidade e, por vezes, conflitualidade entre monges de diferentes sensibilidades cristãs, no interior do templo.

Outra medida recente que indignou os responsáveis cristãos prende-se com um projeto de lei que viabiliza — com efeitos retroativos — a expropriação de terrenos vendidos por igrejas a privados. Previsto para ser debatido no domingo, na habitual reunião semanal do Governo de Telavive, essa discussão foi adiada uma semana para que seja possível “trabalhar com as Igrejas” e tentar resolver o conflito, disse a deputada proponente Rachel Azaria, do partido Kulanu (sionista).

E se fosse com sinagogas?

Em estilo provocatório, o diário israelita “Haaretz” questionava no domingo: “Uma questão relevante é o que Israel diria se uma medida deste género fosse tomada noutro país relativamente a propriedades de sinagogas”. Em declarações ao Expresso, Adeeb Jawad Joudeh Alhusseini, o muçulmano que, diariamente, guarda as chaves do Santo Sepulcro, recorda que não é a primeira vez que a igreja é encerrada numa ação de protesto. Isso já aconteceu a 27 de abril de 1990, “durante 48 horas, quando colonos [judeus] ocuparam o Hospício de S. João”, no bairro cristão.

O Santo Sepulcro é local de visita obrigatória para qualquer cristão em peregrinação à Terra Santa. No seu interior, situa-se o Calvário, onde Jesus Cristo foi crucificado, e também o Edículo, uma construção em madeira que envolve o túmulo onde foi sepultado.

Na igreja, estão representadas seis sensibilidades cristãs — ortodoxos gregos, ortodoxos arménios, católicos romanos (franciscanos), coptas, siríacos e etíopes. Situa-se na parte leste (árabe) de Jerusalém, conquistada por Israel na Guerra dos Seis Dias (1967) e anexada em 1980, após aprovação do Parlamento de Israel.

(Foto: Entrada principal da Basílica do Santo Sepulcro, no bairro cristão da Cidade Velha de Jerusalém WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso Online, a 26 de fevereiro de 2018. Pode ser consultado aqui

Cinco derrotas que entram para a História das Coreias

O importante não é vencer, mas competir. O lema olímpico aplica-se na perfeição à participação da primeira equipa da Coreia Unida nuns Jogos Olímpicos. A equipa feminina de hóquei no gelo terminou esta terça-feira a sua participação nos Jogos de PyeongChang, só com derrotas mas com a noção do dever cumprido

Logótipo da equipa de hóquei no gelo feminina da Coreia Unida que participou nos Jogos Olímpicos de Inverno, em PyeongChang WIKIMEDIA COMMONS

Cinco jogos, cinco derrotas — e as espectadores nas bancadas do centro de hóquei de Kwandong em delírio, acenando com bandeiras da Coreia Unificada e gritando “Somos Um”. Terminou esta terça-feira, desta forma festiva e emocionada, a participação da equipa feminina coreana de hóquei no gelo, nos Jogos Olímpicos de Inverno, em PyeongChang (Coreia do Sul).

“A avançada sul-coreana Kim Heewon ia enxugando as lágrimas à medida que ela e as suas companheiras de equipa iam acenando aos adeptos que as ovacionavam de pé”, lê-se na reportagem da agência Associated Press. “Alguns espectadores choraram quando as atletas fizeram um círculo no centro da pista e bateram com os sticks no gelo, num ritual antes de abandonarem o ringue.”

Pela primeira vez, uma formação coreana formada por atletas dos dois lados do paralelo 38 competiu nuns Jogos Olímpicos. A equipa foi formada dias antes do início dos Jogos de Inverno organizados pela Coreia do Sul, quando a diplomacia conseguiu inverter meses de grande tensão na península coreana — provocada por sucessivos testes nucleares realizados pela Coreia do Norte que ameaçaram fazer deflagrar uma guerra no Pacífico.

Ao autorizar a participação de atletas norte-coreanos — para além das 12 hoquistas, o Norte enviou outros 10 atletas —, Pyongyang contribuiu para uma jornada conciliadora entre as duas Coreias, desavindas desde 1948.

A relevância política da participação norte-coreana ofuscou por completo o desempenho desportivo — insignificante — da equipa unida. As hoquistas coreanas somaram derrotas em todos os jogos disputados, sofrendo 28 golos e marcando apenas dois: 0-8 e 0-2 contra a Suíça, 0-8 e 1-6 frente à Suécia e 1-4 diante o Japão.

Com a sensação do dever cumprido, as norte-coreanas regressam, agora, ao seu país, sem certezas de um dia voltarem a ver ou a falar com as coprotagonistas deste episódio histórico. É que mesmo em tempos de paz os contactos entre sul e norte-coreanos estão totalmente proibidos, seja por telefone, carta ou email.

Artigo publicado na “Tribuna Expresso”, a 20 de fevereiro de 2018. Pode ser consultado aqui

Quanto custa esbofetear um militar israelita? Depende de quem dá a estalada

Ahed Tamimi, a palestiniana de cabelos rebeldes tornada famosa após atingir à estalada um soldado israelita, vai ser presente a tribunal esta terça-feira. O seu caso revela a persistência palestiniana na luta contra a ocupação israelita e expõe a dualidade com que Israel aplica a lei nos territórios que controla consoante se trata de alguém israelita ou palestiniano

Ahed Tamimi e Yifat Alkobi D.R.

“Morte para Ahed Tamimi”, “não há lugar neste mundo para Ahed Tamimi”. Pela calada da noite, no passado dia 1 de fevereiro, paredes da aldeia palestiniana de Nabi Saleh, perto de Ramallah, no território ocupado da Cisjordânia, foram grafitadas com ameaças a uma filha da terra. Os habitantes não viram quem vandalizou a aldeia, mas têm uma suspeita: “Os colonos escreveram que Ahed deve ser morta para assustar os habitantes de Nabi Saleh”, defendeu Bassem Tamimi, pai da jovem visada, em declarações ao sítio Mondoweiss. Nas redes sociais, acrescentou, um grupo de colonos já tinha declarado que iria esperar pela libertação da rapariga no exterior da prisão de HaSharon, onde está detida, para matá-la. “Temo pela minha filha. Não só por ser palestiniana, mas porque a sua cara tornou-se tão conhecida que toda a gente sabe com exatidão quem ela é e como se parece.”

Ahed Tamimi — 17 anos feitos a 31 de janeiro — foi presa a 19 de dezembro após um vídeo em que surge a esbofetear e pontapear um soldado israelita se ter tornado viral nas redes sociais. As imagens foram captadas quatro dias antes, pela mãe da jovem, Nariman, que também está detida, acusada de “incitamento”. Não era a primeira vez que Ahed surgia de punho cerrado, ameaçando bater em militares armados até aos dentes. Esta terça-feira, será presente a um juiz para responder por aquelas estaladas e pontapés e por outras afrontas ao longo dos anos.

Ahed não é a primeira mulher palestiniana a ser detida por Israel no âmbito de protestos antiocupação. Nem tão pouco a primeira menor. Este domingo, por exemplo, foi libertada Razan Abu Sal, oriunda do campo de refugiados de Arroub, entre Belém e Hebron (Cisjordânia), condenada a 16 de janeiro a quatro meses de prisão e uma multa de 2500 shekels (580 euros) pelo arremesso de pedras. Razan tem… 13 anos. Mas várias razões contribuem para que o caso de Ahed seja especial, ao ponto de ter centrado atenções em todo o mundo como nenhum outro anteriormente.

“Ahed Tamimi tem estado, desde os oito anos de idade, na fila da frente das manifestações semanais do comité popular da sua aldeia contra a ocupação militar israelita, em geral, e contra o colonato de Halamish, em particular, que usa ilegalmente as fontes de água dos palestinianos”, explica ao Expresso Giulia Daniele, investigadora no Centro de Estudos Internacionais do ISCTE (Lisboa).

Em Nabi Saleh, a revolta palestiniana contra a ocupação israelita tem um alvo específico: o colonato de Halamish, uma comunidade de judeus ortodoxos estabelecida em 1977 que não para de crescer às custas de hectares de terra confiscados aos palestinianos. Em 2009, os colonos apoderaram-se da nascente de Ein el Qaws, perto da aldeia, obrigando os habitantes a procurarem fontes alternativas para irrigar oliveiras e árvores de fruto.

As manifestações contra a ocupação ganharam então um caráter mais regular e Ahed tornou-se uma presença permanente e cada vez mais indiscreta. Em 2012, a Turquia atribuiu-lhe o Prémio Handala para a Coragem na sequência de imagens onde ela surge a confrontar militares israelitas que tinham levado preso o seu irmão. Quando foi recebê-lo, Ahed teve direito a um encontro com Recep Tayyip Erdogan, então primeiro-ministro e hoje presidente da Turquia.

Um segundo aspeto que faz de Ahed especial, diz Giulia Daniele, decorre do facto de ela pertencer à família Tamimi, um clã muito ativo na luta contra a ocupação, por força do seu impacto na aldeia onde vive. Bassem, o pai de Ahed, já foi, também ele, preso e condenado a prisão pela justiça israelita.

A farta cabeleira de Ahed — tão rebelde como ela —, os seus olhos azuis e os meios que utiliza nos protestos também contribuem para a composição do ícone. “Ela não aparenta ser uma jovem ativista palestiniana, não cai nos cânones que Israel e o Ocidente em geral atribuem às mulheres palestinianas. Como é possível que uma jovem com aquele aspeto possa lutar contra os soldados israelitas utilizando uma máquina fotográfica ou um cartão vermelho?” O recurso a câmaras fotográficas ou de filmar é frequente nas manifestações semanais antiocupação em aldeias como Bilin, Nilin ou Kafr Qaddum: visam registar o uso excessivo da força com que Israel retalia os protestos.

Giulia Daniele identifica ainda uma quarta razão para o destaque dado a Ahed: ela é a prova de que “a luta popular e não-violenta palestiniana continua, apesar da ocupação ilegal israelita se tornar, dia após dia, mais violenta e mais enraizada — parece infinita”.

Dois pesos, duas medidas

Ahed está a ser julgada num tribunal militar, tratada como uma ameaça à segurança de Israel. “Em muitos casos, os palestinianos são julgados por acusações falsas ou ficam presos sem qualquer acusação”, as chamadas “detenções administrativas”, muito frequentes. “Aos palestinianos aplica-se a lei militar, enquanto aos colonos israelitas, que ali moram ilegalmente, tal como em Jerusalém Oriental, aplica-se a lei civil”, refere Giulia Daniele. “Obviamente, tratando-se de tribunais diferentes, há também diferentes penalizações e tratamentos.”

Ahed responde por 12 acusações, algumas delas — como o arremesso de pedras e a interferência nos deveres de um soldado — relativas a episódios passados anos antes da bofetada que a pôs atrás das grades. Arrisca uma pena de prisão entre os 12 e os 14 anos. Pelo mesmo “crime” — uma bofetada a um soldado israelita —, e por cinco outras condenações (entre elas o arremesso de pedras, o ataque a um polícia israelita e conduta desordeira), Yifat Alkobi, uma colona judia de Hebron, “não foi presa uma única vez”, escreveu o diário israelita “Haaretz”, a 5 de janeiro. “A agressora [judia], que deu uma bofetada a um soldado que tentava impedi-la de atirar pedras, foi levada para interrogatório mas libertada sob fiança no mesmo dia, e autorizada a ir para casa” — impune.

A diferença de tratamento entre a palestiniana Ahed e a israelita Yifat expõe a dualidade de sistemas legais que Israel aplica nos territórios que controla, consoante o acusado é israelita ou palestiniano. No caso de Ahed, sabe-se hoje que agiu movida pela revolta, ao saber que um primo de 15 anos tinha sido alvejado na cabeça, uma hora antes, por um agente da segurança israelita. Mohammed sobreviveu, mas perdeu parte do crânio e tem a cara desfigurada.

Na perspetiva de Giulia Daniele, autora do livro “Women, Reconciliation and the Israeli-Palestinian Conflict: The Road Not Yet Taken” (Routledge, 2014), Ahed Tamimi é uma palestiniana na linha de outras mulheres carismáticas que têm contribuído para uma forma feminina de protestar no conflito israelo-palestiniano. São exemplos Hanan Ashrawi, figura central dos Acordos de Oslo e do nascimento da Autoridade Nacional Palestiniana, Amal Khreishe, líder da Sociedade das Mulheres Trabalhadoras Palestinianas para o Desenvolvimento (PWWSD) e Naila Ayesh (diretora do Centro para os Assuntos das Mulheres na Faixa de Gaza).

“Não só há uma presença feminina nestes protestos, como também uma presença histórica e crucial para a relevância do movimento nacional palestiniano na sua complexidade”, diz Giulia Daniele. “A partir da Nakba [o êxodo dos palestinianos após a criação de Israel, a que chamam “catástrofe”] em 1948, o movimento das mulheres palestinianas desempenhou um papel fundamental na luta contra os ocupantes israelitas. Na sua especificidade, elas tiveram de protestar contra uma dupla opressão: uma externa – a ocupação militar israelita – e uma interna – a própria sociedade patriarcal.”

Conclui Giulia Daniele: “Hoje, o papel das mulheres palestinianas é muito importante, sobretudo ao nível das bases, embora seja impossível falar de um único movimento, dado haver uma variedade de perspetivas e práticas políticas entre as diferentes organizações de mulheres. Há diferenças entre ativistas laicas e religiosas, entre ativistas da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, entre as mais jovens e as mais velhas, entre as do mundo rural e as de áreas urbanas”. Todas, porém, partilham dois grandes objetivos: o fim da ocupação militar israelita e o direito à autodeterminação do povo palestiniano.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 12 de fevereiro de 2018 e republicado no Expresso Online, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui

Muita neve, tecnologia 5G e um ‘c’ maiúsculo para guiar os atletas dos Jogos Olímpicos de Inverno até à Coreia certa

Nos anos 80, os Jogos Olímpicos de Seul foram, para a Coreia do Sul, um palco de debute internacional após décadas de ditadura. Consolidada a democracia, o país quer agora impressionar com a sua capacidade tecnológica. Os Jogos de Inverno, em PyeongChang (assim mesmo, com um ‘c’ maiúsculo pelo meio), que começam esta sexta-feira (a RTP2 transmite a abertura às 11h), são a montra

Há precisamente 30 anos, a Coreia do Sul entrava para o clube restrito dos países organizadores dos Jogos Olímpicos. Seul acolhia a 24ª edição de verão, a última dos tempos da Guerra Fria, marcada pelo fim dos boicotes políticos em larga escala que feriram os Jogos de Montreal (1976), Moscovo (1980) e Los Angeles (1984). Marcada também pela entrada “em prova” do doping, que atiraria para fora das pistas o velocista canadiano Ben Johnson, que entrara no Olimpo precisamente em Seul.

Para os portugueses, Seul foi inesquecível pelo ouro conquistado por Rosa Mota, na maratona. Para os sul-coreanos, o evento foi, acima de tudo, uma festa de debutante para um país que acabara de conquistar a democracia, após décadas de governos autoritários, e uma montra das capacidades do seu povo.

“O principal objetivo dos Jogos de Seul foi o aumento da visibilidade global da Coreia do Sul. E uma das grandes consequências foi o acelerar da democratização da sociedade sul-coreana”, diz ao “Expresso” Alan Bairner, professor de Teoria do Desporto e da Vida Social, na Universidade Loughborough (Reino Unido). Inversamente, “os Jogos nada fizeram para melhorar as relações entre as duas Coreias e podem até ter contribuído para isolar ainda mais a Coreia do Norte e torná-la um país voltado para dentro”.

Em junho de 1987, a sensivelmente um ano dos Jogos, manifestações gigantescas por todo o país desafiaram o regime de Chun Doo-hwan que, aos olhos do povo, perdera toda a legitimidade moral desde o massacre de Kwangju, em 1980 (mais de 2000 mortos). Os protestos eram o culminar de anos de turbulência que chegaram a fazer soar os alarmes na sede do Comité Olímpico Internacional (COI), em Lausana (Suíça): se a desordem se generalizasse em Seul, os Jogos mudariam de local, alertou o presidente do COI, o catalão Juan Antonio Samaranch.

Em vésperas de ter sobre si as atenções do mundo, o regime sul-coreano acusou a delicadeza da situação e conteve-se na repressão aos protestos. A 29 de junho, chegava a tão aguardada notícia que acalmaria as ruas: ainda antes dos Jogos, haveria eleições presidenciais, por voto direto e universal.

Apresentação do país ao mundo

“Organizar os Jogos Olímpicos teve um grande efeito psicológico junto dos sul-coreanos que encararam o evento como ‘a prova do reconhecimento internacional de que a Coreia era uma nação a caminho do progresso’”, diz ao “Expresso” Lee Dae-teak, professor de Convergência de Engenharia Desportiva, na Universidade Kookmin, Seul. “O país estava, oficialmente, a ser apresentado ao mundo e a mostrar as suas capacidades. Governo e população deram o seu melhor e sentiram um grande orgulho” no que foi feito.

À semelhança do que acontecera com o Japão, o primeiro país asiático a organizar os Jogos, em 1964, que não se poupou a esforços para honrar a sua reintegração na comunidade das nações, após a derrota na II Guerra Mundial, e mostrar ao mundo o milagre económico — construindo recintos modernos e colocando a eletrónica ao serviço do desporto —, a Coreia do Sul esperava que os Jogos de 1988 confirmassem a sua maioridade democrática e o seu potencial económico. Não por acaso, quem liderou a comissão de candidatura de Seul foi Chung Ju-yung, fundador do grupo Hyundai, um dos famosos conglomerados sul-coreanos (“chaebol”), como a Samsung e a LG.

No Parque Olímpico de Seul, recordações dos Jogos de há 30 anos. Debaixo da Porta da Paz Mundial, arde uma chama MARGARIDA MOTA

Trinta anos depois, a Coreia do Sul volta a organizar uns Jogos Olímpicos, desta vez de inverno, entre 9 e 25 de fevereiro, na cidade de PyeongChang, 700 metros acima do nível do mar.

“Não há tanto entusiasmo como antes. Na verdade, antes de ser anunciada a participação da Coreia do Norte, a popularidade do evento em PyeongChang era muito baixa”, continua Lee Dae-teak. “Em 1988, muitos coreanos pensavam que os Jogos eram necessários, já que nos davam uma oportunidade para aparecermos e nos afirmarmos. Com essa experiência, os coreanos abriram os olhos ao mundo e perceberam que faziam parte dele. Hoje, com PyeongChang, factores como ‘os primeiros Jogos’ ou ‘a nossa apresentação’ ou ainda ‘a competitividade da Coreia’ não são mais atrativos. Talvez o único interesse seja os Jogos de inverno em si mesmos. Julgo que estes serão os últimos Jogos que os coreanos organizam desta maneira… ou seja, ‘organizar primeiro e pensar depois’! Gastámos demais e estamos pouco conscientes de que não valem tanto como os de 1988.”

Soohorang, um tigre branco, é a mascote dos Jogos de PyeongChang. Na mitologia coreana, o tigre simboliza confiança, força e proteção

A convite da Korea Foundation, o “Expresso” visitou o Parque Desportivo de Alpensia, onde decorrerão provas de esqui. Numa apresentação para jornalistas europeus, Nancy Park, a porta-voz do evento, salientou a forte aposta na tecnologia com que PyeongChang pretende deslumbrar o mundo. “Seremos os primeiros Jogos a providenciar serviços de telecomunicações em 5G, que presentemente é 20 vezes mais rápido do que 4G”, disse.

Haverá um autocarro com acesso à quinta geração de telemóveis, realidade virtual de 360 graus (com óculos que permitem envolver num cenário virtual), visão omnidirecional a partir do ponto em que se encontram os atletas, imagens 3D sem óculos e hologramas. Robôs humanoides farão tarefas de relações públicas, prestarão informações e trabalharão como porteiros. Um robô já participou no transporte da tocha olímpica.

No plano desportivo, PyeongChang organizará provas em 15 modalidades, para atletas de 93 países — os russos competirão sob bandeira olímpica. Portugal estará presente com dois atletas: Ke Quyen Lam, em Esqui Cross Country, e Arthur Hanse, em Esqui Alpino.

Após descerem a pista de saltos, no Parque Desportivo de Alpensia, os esquiadores caem sobre o relvado do Gangwon Football Club, por estes dias coberto de neve MARGARIDA MOTA

Em Alpensia, saltam à vista alguns cuidados com os custos do evento. Com 150 metros de altura, a torre dos saltos de esqui, por exemplo, está integrada no complexo do Gangwon Football Club. Após descerem a pista de saltos, os esquiadores caem sobre o relvado daquele clube da primeira divisão sul-coreana, por estes dias sob um manto de neve.

Nancy Park refere que as infraestruturas já têm destino após o evento. “Dos 12 locais de competição, seis já existiam anteriormente, estão a ser utilizados há anos. Em relação aos outros, temos planos para todos. Os apartamentos onde vão ficar os atletas e a ‘aldeia dos media’ já foram totalmente vendidos. Depois dos Jogos, haverá gente a ocupá-los.”

Mas PyeongChang não escapa ao desperdício. Com capacidade para 35 mil lugares — na cidade vivem pouco mais de 40 mil pessoas —, o estádio olímpico será desmantelado após o evento. Servirá apenas para acolher as cerimónias de abertura e encerramento (também dos Jogos Paralímpicos, que decorrerão entre 9 e 18 de março).

“Gastamos muito orçamento, algo que não é razoável nem explicável”, diz o professor Lee Dae-teak. “Construímos várias infraestruturas novas que poderiam ter sido construídas ou reconstruídas noutras cidades” — uma possibilidade viabilizada pela Agenda 2020, do COI, que visa, entre outros, racionalizar custos com a organização dos Jogos Olímpicos. “A província de Gangwon e o Governo não aceitaram essa opção. Muitas infraestruturas não terão um uso efetivo após os Jogos. E exigirão gastos com manutenção. Decidiram construir uma nova encosta alpina para ser usada apenas cinco dias e numa montanha que era área natural protegida há 500 anos.”

Fatura emitida aos contribuintes

Nos dias que correm, organizar os Jogos Olímpicos não é mais (apenas) uma questão de orgulho e poder. O dispêndio de milhões em infraestruturas, que muitas vezes ficam depois ao abandono, e a degradação das aldeias olímpicas, que transformam locais de glória em cidades fantasma, é cada vez mais questionado pelas populações de potenciais cidades anfitriãs.

A própria ideia de que os Jogos arrastam benefícios sem fim para os municípios que os acolhem foi sendo contrariada por experiências mal sucedidas. A maioria dos países organizadores sofreu o chamado “efeito de vale”, recebendo grandes investimentos no período que antecedeu o evento e uma queda abrupta dos mesmos no período subsequente. Nalguns casos, os contribuintes foram chamados a pagar pesadas faturas durante muitos anos, como os canadianos que só em 2006 acabaram de pagar o imposto relativo aos custos dos Jogos Olímpicos de Montreal, realizados em… 1976.

GUSTAVO SILVASC /  WIKIMEDIA COMMONS

No ano passado, os habitantes de Budapeste mostraram um cartão vermelho à realização dos Jogos na capital da Hungria. A cidade tinha em curso uma candidatura à edição de 2024 quando uma petição assinada por mais de 250 mil pessoas e manifestações nas ruas questionaram esse interesse. A Hungria acabaria por retirar-se da corrida, deixando o “sprint” final para Paris e Los Angeles: numa decisão inédita, a capital francesa ficou com os Jogos de 2024 e a cidade norte-americana com a edição seguinte, de 2028. Com esta fórmula de atribuição dos Jogos, o COI esquece-se, durante algum tempo, que o rol de cidades interessadas em receber o evento é cada vez mais pequeno.

“Ironicamente, um dos exemplos mais antigos de uma derrota de uma potencial cidade anfitriã em grande parte devido à oposição popular foi Nagoya, no Japão, que abriria caminho à vitória de Seul. Nagoya não se retirou mas simplesmente não tinha apoio local como Seul”, explica Alan Bairner. “É cada vez mais difícil para cidades pequenas justificar a organização de grandes eventos desportivos devido aos custos envolvidos e à necessidade de pesadas medidas de segurança. Isso pode explicar por que razão estes eventos estão, mais do que nunca, a realizar-se em países mais autoritários, como a Rússia [Jogos de inverno de 2014, em Sochi, e Mundial de Futebol de 2018] e a China [Jogos de verão de 2008 e de inverno em 2022, ambos em Pequim] que podem dar-se ao luxo de os acolher e já têm grandes operações de segurança dentro de portas.” O Mundial do Qatar em 2022 é outro exemplo.

Coreia do Sul 1 — Portugal 0

Entre as duas jornadas olímpicas, a Coreia do Sul acolheu também o Mundial de Futebol de 2002 (co-organizado com o Japão) e o Campeonato do Mundo de Atletismo, em 2011, em Daegu. Em todo o mundo, apenas mais quatro países tiveram capacidade organizativa para montar todos estes grandes eventos: Alemanha, França, Itália e Japão.

O Mundial de Futebol foi especial a vários níveis. Um misto de orgulho nacional e de dinâmica de grupo empurrou a seleção da casa até às meias finais. “Foi talvez o símbolo mais forte da nova era. O sucesso imprevisto da equipa nacional no campo correspondia à extraordinária energia dos cidadãos na demonstração do seu apoio coletivo, traduzido em multidões de pessoas nas ruas quando a seleção nacional jogava”, lê-se no livro “A History of Korea”, de Kyung Moon Hwang (Palgrave Macmillan, 2010).

Treinada pelo holandês Guus Hiddink, a equipa sul-coreana excedeu as expectativas, levando milhões a encherem praças, parques e outros espaços públicos para assistir às partidas em ecrãs gigantes. “Quando a equipa nacional, um competidor insignificante, venceu Portugal [1-0], um dos favoritos do Mundial, e avançou para os oitavos de final, essas multidões entraram em erupção, e cresceram ainda mais no jogo seguinte contra a Itália, outra potência perene”, continua o autor. A Coreia do Sul venceu a fase de grupos — deixando pelo caminho Portugal, treinado por António Oliveira —, nos oitavos derrotou a Itália de Cannavaro, Gattuso e Del Piero e nos quartos de final a Espanha de Casillas, Hierro e Raúl.

À medida que as ruas se enchiam de ansiedade e euforia, “tornava-se claro que essas grandes concentrações de pessoas iam muito além do futebol; diziam respeito a um desejo incontrolável de experimentar diretamente um novo modelo de conexão social”. A Coreia do Sul ficaria em quarto lugar (perdeu o último lugar do pódio para a Turquia) e o torneio seria ganho pelo Brasil, que conquistou o penta após derrotar a Alemanha por 2-0.

Praça de Seul lotada de adeptos, durante o Mundial de 2002, na capital sul-coreana WIKIMEDIA COMMONS

Para os sul-coreanos, estes grandes eventos são também uma forma de esclarecerem equívocos em relação à sua identidade. Quando Pyeongchang se aventurou na corrida olímpica, “o comité de candidatura decidiu transformar em maiúscula o ‘c’ do nome da cidade”, diz ao “Expresso” Songjae Lim, membro do comité organizador. A medida visou criar uma distinção, pelo menos visual, que minimizasse uma confusão recorrente entre Pyeongchang e Pyongyang, a capital norte-coreana, e acautelar que todas as delegações aterrassem na Coreia certa…

A medida não foi 100% eficaz e, ainda no ano passado, um jato empresarial da Gulfstream, transportando patrocinadores dos Jogos, foi notícia ao aterrar por engano na Coreia do Norte. “Paramos na pista e o piloto comunicou-nos o erro. Ficamos estarrecidos com o que nos poderia acontecer”, recordaria um dos oito passageiros. “Ele disse-nos que ficassemos sentados e calmos. Um tripulante de cabine abriu a porta e pudemos ver homens armados em uniforme em frente ao avião.”

Foram mandados descer do aparelho e as malas inspecionadas. O profuso “merchandising” olímpico que transportavam contribuiu para um rápido esclarecimento do equívoco. E lá seguiram viagem para a Coreia do Sul.

Pior sorte teve o queniano Daniel Olomae Ole Sapit, membro da tribo maasai, registado para participar numa conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade, em outubro de 2014, em PyeongChang. Quando o avião em que seguia iniciou a descida, começou a temer o pior ao não conseguir vislumbrar a grande e moderna cidade de Seul que tinha em mente. Aterrou em Pyongyang, foi detido durante mais de quatro horas, mas tudo se resolveu a bem. Pagou cerca de 500 dólares para garantir o regresso e assinou um documento prometendo jamais voltar a entrar na Coreia do Norte sem visto. Em declarações ao jornal “The Wall Street Journal”, diria: “Pyongyang, PyeongChang… para um africano, que diferença faz?”

(Foto principal: Durante o processo de candidatura aos Jogos, o “c” de PyeongChang foi transformado em maiúscula para que a cidade não fosse confundida com a capital norte-coreana, Pyongyang POCOG – COMITÉ ORGANIZADOR DOS JOGOS OLÍMPICOS DE PYEONGCHANG)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso, a 8 de fevereiro de 2018. Pode ser consultado aqui

Uma trégua olímpica com um facto inédito, um visitante inesperado e um crime que não vai ser punido

A participação de atletas norte-coreanos nos Jogos Olímpicos de Inverno, que começam, esta sexta-feira, em PyeongChang (Coreia do Sul), salva um evento que ameaçava passar despercebido. Mais importante, abre a porta do diálogo a dois países desavindos há mais de 70 anos

Pista para as provas de patinagem artística, na Arena de Gelo de Gangneung POCOG – COMITÉ ORGANIZADOR DOS JOGOS OLÍMPICOS DE PYEONGCHANG

Dez meses antes dos Jogos Olímpicos de Seul, já lá vão quase 30 anos, um avião da Korean Air que descolara de Bagdade (Iraque) com destino à capital sul-coreana explodiu nos céus do Mar de Andamão, perto da costa oeste da Tailândia. A bordo do voo 858 seguiam 104 passageiros e 11 tripulantes, na sua esmagadora maioria cidadãos sul-coreanos. Naquele fatídico 29 de novembro de 1987, ninguém sobreviveu.

A explosão foi provocada por uma bomba deixada num compartimento de bagagem por um casal de espiões norte-coreanos, que fintou a morte desembarcando na escala em Abu Dabi, Emirados Árabes Unidos. Intercetados no Bahrain, ingeriram cianeto quando sentiram que a sua captura estava iminente. O homem morreu, a mulher sobreviveu. Numa conferência de imprensa, em janeiro de 1988 — forçada a confessar, tolhida pelos remorsos ou simplesmente dizendo a verdade —, a terrorista, Kim Hyon-hui, afirmou que aquele atentado tinha sido ordenado “pessoalmente e por escrito” por Kim Jong-il (pai do atual líder norte-coreano, Kim Jong-un), e que um dos objetivos era assustar os países que tencionavam participar nos Jogos Olímpicos de Seul.

Quinze anos depois, um outro grande evento desportivo organizado pela Coreia do Sul coincidiria com mais um episódio sangrento envolvendo as duas Coreias. Com o Mundial de Futebol a decorrer — coorganizado com o Japão —, quatro marinheiros sul-coreanos foram mortos durante uma intensa batalha naval, no Mar Amarelo, envolvendo embarcações do Norte e do Sul. (Não há informação sobre vítimas do lado norte-coreano.)

“Estes eventos desportivos atraem atenção mediática e política a nível internacional, o que confere à Coreia do Norte uma oportunidade para captar a atenção da comunidade internacional e demonstrar posições de força ou de diplomacia consentâneas com o seu interesse nacional”, explica ao Expresso Rui Saraiva, professor de Ciência Política na Universidade de Hosei (Japão). “A intenção da Coreia do Norte não é necessariamente minar eventos desportivos, apenas reafirmar o seu interesse nacional. No caso do Mundial de Futebol de 2002, essa ligação não pôde ser totalmente comprovada.”

Em PyeongChang, o “curling” será uma das modalidades em competição POCOG – COMITÉ ORGANIZADOR DOS JOGOS OLÍMPICOS DE PYEONGCHANG

Edição após edição, os Jogos Olímpicos, em especial, vêm sendo uma espécie de barómetro de uma relação conflituosa que dura desde o fim da Segunda Guerra Mundial — agravada por uma guerra (1950-1953) que terminou com a assinatura de um armistício, mas nunca com um tratado de paz. Nos Jogos de Inverno que começam, esta sexta-feira, na cidade sul-coreana de PyeongChang, é inequívoca a vontade bilateral numa trégua. Após meses de provocações verbais belicistas entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte — que levaram Donald Trump a prometer, nas Nações Unidas, a “destruição total da Coreia do Norte” e Pyongyang a ameaçar os EUA com “um mar de fogo inimaginável” —, a Coreia do Norte substituiu a retórica do confronto pela do diálogo e anunciou a sua participação nos Jogos de PyeongChang.

Haverá em competição 10 atletas norte-coreanos, mais 12 hoquistas que integrarão a equipa conjunta feminina de Hóquei no Gelo, que participará sob bandeira da Coreia Unificada — um facto inédito na História dos Jogos Olímpicos e do conflito coreano.

Um par de patinadores norte-coreanos treina na Arena de Gelo de Gangneung POCOG – COMITÉ ORGANIZADOR DOS JOGOS OLÍMPICOS DE PYEONGCHANG

Igualmente sem precedentes, na delegação norte-coreana irá um membro da família Kim, que governa o país desde 1948 ao estilo de uma república dinástica. Kim Yo-jong, 28 anos, a irmã mais nova do líder norte-coreano e sua discreta assessora, será o primeiro membro da família a atravessar o paralelo 38, a fortificada fronteira entre as duas Coreias.

“A presença da irmã de Kim Jong-un confere uma importância acrescida à delegação norte-coreana”, refere Rui Saraiva. “E permitirá, mais facilmente, a abertura de canais diplomáticos formais e informais entre a Coreia do Norte e os líderes de várias nações que vão estar presentes no evento.”

Para a “festa” coreana que se projeta, na quarta-feira atravessou a fronteira um dos maiores grupos de norte-coreanos em tempos de paz. Nele vieram “cheerleaders”, desportistas, jornalistas, representantes do comité olímpico e o ministro dos Desportos, Kim Il-guk, num total de 280 pessoas. Na véspera, chegou de “ferry” uma orquestra de 137 músicos, que vai atuar durante os Jogos.

Da delegação norte-coreana, faz parte um grupo de “cheerleaders”, com a missão de animar as bancadas em PyeongChang e mostrar a beleza, juventude e felicidade de quem vive a norte

No plano diplomático ou militar, a Coreia do Norte tem sempre uma mesma linha condutora — “a sobrevivência do regime”, diz o docente da Universidade de Hosei. “A política externa norte-coreana guia-se por considerações pragmáticas ou realistas. Aliás o pragmatismo é, no meu entender, um ‘princípio’ comum dos países da Ásia Oriental. Nos próximos anos, o Ocidente vai surpreender-se mais com o que une estes países do que com aquilo que os separa.”

Mas há algo de que Pyongyang não abdica — “o princípio da não intervenção nos seus assuntos internos por parte de outros Estados”, acrescenta o professor português. “Enquanto os outros atores relevantes num possível processo de diálogo não aceitarem esta condição, esse processo estará condenado ao fracasso.”

A Coreia do Sul acolhe os Jogos Olímpicos pela segunda vez, 30 anos após os de Seul POCOG – COMITÉ ORGANIZADOR DOS JOGOS OLÍMPICOS DE PYEONGCHANG

A curto prazo, porém, a relação intracoreana está destinada ao sucesso. “Antes da decisão da participação da Coreia do Norte, a curiosidade dos sul-coreanos em relação ao evento era muito baixa”, diz ao Expresso Lee Dae-teak, professor de Convergência de Engenharia Desportiva, na Universidade Kookmin, Seul. “Com essa decisão, os Jogos podem ser verdadeiramente designados de ‘Olimpíadas da Paz’.”

Para que assim seja, a Coreia do Sul está disposta a fazer cedências… Em PyeongChang, será — conscientemente — ignorada uma lei de 1948 que visa “restringir atos contra o Estado que ponham em perigo a segurança nacional”, tais como… acenar com bandeiras norte-coreanas. Em contexto de desanuviamento, como o que se pretende em PyeongChang, tudo é relativo. Nos sítios de competição, a bandeira norte-coreana ondulará ao lado das dos restantes 92 países participantes — Portugal compete com Ke Quyen Lam, em Esqui Cross Country, e Arthur Hanse, em Esqui Alpino —, içada não por militares sul-coreanos, mas por voluntários. E em caso de vitória, subirá no mastro com glória, ao som do hino nacional.

Em PyeongChang, as duas Coreias competirão separadas, mas, sexta-feira, na cerimónia de abertura, desfilarão juntas, atrás da bandeira da Coreia Unificada — como já aconteceu nos Jogos de Sydney (2000) e de Atenas (2004). O desporto a dar o exemplo à política.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 8 de fevereiro de 2018. Pode ser consultado aqui